quinta-feira, 13 de novembro de 2008

A Lei de Manu

De um modo algo acidental, a conclusão da leitura do livro Introduction to Hindu Dharma e a decisão de o recomendar neste espaço, coincidiu com a necessidade, por razões distintas, de voltar a um livro de René Guénonaqui referido, Introdução ao estudo das doutrinas Hindu, nomeadamente a um capítulo, a Lei de Manu, em que a definição de dharma é analisada e discutida pelo autor. Rapidamente, tomei a decisão de me dedicar à sua tradução, para que esta complementasse, de certa forma, a apresentação do referido livro. Aqui fica uma primeira versão.


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A Lei de Manu


Como um exemplo do tipo de ideia apta a provocar confusão nas mentes Ocidentais, e que se deve à ausência de um termo equivalente no seu próprio vocabulário, podemos citar a concepção traduzida pela palavra Sânscrita dharma; os orientalistas têm proposto variadas traduções para a palavra, mas a maior parte destas são apenas aproximações grosseiras ou mesmo completamente erradas, em resultado sobretudo da usual confusão dos pontos de vista a que nos referimos anteriormente. Assim, a palavra dharma é por vezes traduzida por ‘religião’, apesar do ponto de vista religioso ser aqui inaplicável; adicionalmente, deverá ser claramente compreendido que não é a concepção de uma doutrina, erradamente considerada como religiosa, que esta palavra designa. Por outro lado, se for uma questão de cumprimento de rituais, os quais não são, da mesma forma, de carácter religioso, estes são descritos na sua totalidade pela palavra karma, cujo significado mais geral é ‘acção’, mas que aqui é considerada num sentido especial e como que técnico. Para aqueles que pretendem a todo o custo ver uma religião na tradição Hindu, existiria ainda aquilo que acreditam ser um aspecto moral, e é especialmente este que eles designariam como dharma; desta forma, de acordo com as circunstâncias, várias interpretações mais ou menos secundárias têm surgido, como ‘virtude’, ‘justiça’, ‘mérito’, e ‘dever’, todas estas exclusivamente ideias morais e, por essa mesma razão, sem expressar de forma alguma a ideia em questão. O ponto de vista moral, sem o qual estas ideias não têm qualquer significado, não pertence à Índia; já insistimos suficientemente neste ponto, e inclusivamente já referimos que até o Budismo, apesar de talvez se poder considerar que o possa ter introduzido, nunca fez qualquer avanço desse tipo ao longo do caminho do sentimentalismo. Adicionalmente, podemos ainda referir que estas mesmas ideias não são todas igualmente essenciais para o próprio ponto de vista moral; isto é, existem algumas delas que não são comuns a todas as concepções morais: por exemplo, a ideia de dever ou de obrigação está ausente na maior parte dos antigos códigos de moralidade, entre outros, pode-se referir o dos Estóicos, e apenas recentemente, especialmente a partir de Kant, esta adquiriu um papel tão preponderante. Uma coisa importante de referir em relação a este aspecto, e uma vez que é uma das mais frequentes origens de erro, é que ideias ou pontos de vista que se tornaram habituais tendem, por essa mesma razão, a parecer essenciais; é por essa razão que são feitas tentativas para as introduzir nas interpretações de todo o tipo de concepções, inclusivamente naquelas mais remotas no tempo e no espaço, apesar de muitas vezes não ser necessário recuar muito no tempo para descobrir a sua verdadeira fonte.

Tendo referido estes aspectos sobre as falsas interpretações mais comummente encontradas, procuraremos mostrar, da forma mais clara possível, aquilo que deve ser verdadeiramente entendido por dharma. Tal como indica o significado da sua raiz verbal dhri, da qual deriva, esta palavra, no seu sentido mais geral, denota simplesmente ‘modo de ser’; é, de certa forma, a natureza essencial de um ser, compreendendo o somatório das suas qualidades ou características particulares, e determinando, em virtude das tendências ou disposições que implica, o modo pelo qual este ser se deve conduzir, seja de uma forma geral, seja em relação a cada circunstância particular. A mesma ideia pode ser aplicada não apenas a um único ser mas também a uma colectividade organizada, a uma espécie, a todos os seres incluídos num ciclo cósmico ou estado de existência, ou mesmo a toda a ordem do Universo; a um nível ou outro, significa, assim, conformidade com a natureza essencial dos seres, o qual é realizado na hierarquia ordenada em que todos os seres têm o seu lugar, e é também, em consequência, o equilíbrio fundamental ou harmonia integral resultante desta disposição hierárquica, o que é nada mais do que precisamente o que a ideia de ‘justiça’ significa quando liberta do seu carácter especificamente moral.

Considerada desta forma, como um princípio de ordem e, dessa forma, como uma organização e disposição inerente, quer seja a um ser, quer seja a um grupo de seres, dharma pode ser considerada, num certo sentido, como oposto a karma, a qual é simplesmente a acção através da qual esta disposição se irá manifestar exteriormente, admitindo sempre que a acção é normal, ou por outras palavras, admitindo que se conforma com a natureza dos seres e dos estados de existência a que estes pertencem, bem como com as relações resultantes em consequência. Nestas circunstâncias, aquilo que é adharma, ou contrário ao dharma, não é ‘pecado’ no sentido teológico da palavra, nem é “mau” no sentido moral, uma vez que estas palavras são igualmente desconhecidas para a mente Hindu; é apenas ‘não-conformidade’ com a natureza dos seres, desequilíbrio, rotura da harmonia, destruição ou perturbação das relações hierárquicas. Sem dúvida, na ordem universal, o somatório total de todos os desequilíbrios particulares resulta sempre no equilíbrio total, o qual nada pode destruir; mas a cada instante, considerado separadamente e por si próprio, o desequilíbrio é possível e concebível, e onde quer que ocorra na ordem social ou outra, não existe absolutamente qualquer necessidade de lhe atribuir algo com carácter moral ou defini-lo como algo que é contrário, na sua própria esfera, à ‘lei de harmonia’ que governa simultaneamente a ordem humana e cósmica. O significado de ‘lei’ assim definido e, tendo o cuidado de a distinguir de todas as aplicações particulares e derivativas que podem dela resultar, pode ser aceite como uma tradução de dharma, sem dúvida imperfeita, mas menos inexacta do que outros termos emprestados das línguas Ocidentais; deve ser enfatizado mais uma vez que, no entanto, não é uma lei moral que está aqui em questão; da mesma forma, as noções de lei científica e lei social ou judicial referem-se, por definição, apenas a casos especiais.

A ‘lei’ pode, por transposição analógica, ser considerada em princípio como uma ‘vontade universal’, a qual, no entanto, não permite que subsista na sua concepção nada de pessoal, nem, por razões ainda mais fortes, nada de antropomórfico. A expressão desta vontade em cada estado de existência manifestada é designada por Prajāpati ou ‘Senhor de seres produzidos’; e em cada ciclo cósmico particular, esta mesma vontade é manifestada como o Manu que oferece a cada ciclo a sua lei própria. Manu não deve, assim, ser tomado como o nome de uma personagem mítica, lendária ou história; é, na realidade, o nome de um princípio, o qual pode ser definido, de acordo com o significado da raiz verbal manas, como uma ‘inteligência cósmica’ ou ‘pensamento que reflecte a ordem universal’. Por outro lado, este princípio é ainda considerado como um protótipo do homem, o qual é designado por manava enquanto considerado, essencialmente, como um ‘ser pensante’, caracterizado pela posse de manas, a faculdade mental ou racional; o conceito de Manu é, desta forma, equivalente, pelo menos em certos aspectos, ao que outras tradições, em especial a Cabala Judaica e o esoterismo Islâmico, referem como Homem Universal, ou ao que os Taoistas designam por ‘o Rei’. Já vimos atrás que o nome Vyāsa não se refere a um homem mas sim a uma função; nesse caso, no entanto, a função é, de uma forma geral, histórica, enquanto Manu representa uma função cósmica que apenas se pode tornar histórica quando aplicada especificamente à ordem social, mas sem este facto pressupor, por si mesmo, qualquer tipo de ‘personificação’. De facto, a lei de Manu, para qualquer ciclo ou colectividade, não é mais do que a observância das relações hierárquicas naturais existentes entre os seres sujeitos às condições especiais daquele ciclo ou colectividade, em conjunto com todo o corpo de preceitos normalmente associados. Não propomos aprofundar aqui no aspecto dos ciclos cósmicos, sobretudo porque seriam necessárias longas explicações para tornar a teoria plenamente inteligível; iremos simplesmente referir que a relação entre estes não é cronológica mas sim lógica e causal, cada ciclo sendo determinado na sua totalidade pelo ciclo precedente e determinando, por sua vez, o ciclo seguinte, através de uma contínua produção governada pela ‘lei da harmonia’ que estabelece a analogia fundamental entre todos os modos de manifestação universal.

Quando se trata da sua aplicação à esfera social, a ‘lei’, a qual toma nesse momento o seu sentido jurídico específico, pode ser formulado num shāstra ou código que, enquanto expressão da ‘vontade cósmica’ a um determinado nível, é referida como Manu ou, mais precisamente, a Manu do actual ciclo; mas é evidente que esta atribuição não torna Manu o autor da shāstra, pelo menos não no seu sentido vulgar em que algo puramente humano se diz ser o trabalho de um determinado autor. Aqui, mais uma vez, tal como no caso dos textos Védicos, não existe uma origem histórica definitivamente atribuível e, inclusivamente, como já explicámos, a questão de tal origem não tem qualquer consequência do ponto de vista doutrinal. No entanto, é de notar uma distinção importante entre os dois casos: enquanto os textos Védicos são descritos pelo termo shruti, denotando o resultado de uma inspiração directa, o dharma-shāstra pertence apenas à classe dos textos tradicionais designados por smriti, cuja autoridade tem um carácter menos fundamental; entre os textos desta classe estão também incluídos os Purānas e os Itihāsas, os quais os académicos Ocidentais consideram ser apenas poemas mitológicos ou épicos, não compreendendo o profundo simbolismo que os torna algo bem diferente do que entendemos vulgarmente por ‘literatura’. Fundamentalmente, a distinção entre shruti e smriti é equivalente à diferença entre a pura e directa intuição intelectual e a consciência reflexiva de ordem racional, a primeira aplicável exclusivamente ao domínio dos princípios metafísicos, e a última exercendo a sua actividade sobre os objectos de conhecimento no plano individual, tal como é necessariamente o caso quando estão em questão aplicações de ordem social ou outras. Apesar deste aspecto, a autoridade tradicional do dharma-shāstra não deriva, de forma alguma, dos autores humanos cuja tarefa foi a sua formulação, sem dúvida inicialmente na forma oral, e mais tarde na forma escrita, razão pela qual estes autores foram mantidos desconhecidos e inidentificáveis; a sua autoridade deriva exclusivamente do facto deste representar a verdadeira expressão da lei de Manu, ou seja, da sua conformidade com a ordem natural das existências para as quais está destinada governar.

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