terça-feira, 30 de setembro de 2008

Conhece-te a ti próprio

A filosofia vulgar iria consumir imenso tempo. Eu agora não tenho tempo livre para essas questões; queres que te diga porquê? Tenho que me conhecer primeiro, tal como diz a inscrição Délfica; ser curioso sobre coisas que não me dizem respeito, enquanto ainda em ignorância de mim próprio, seria ridículo. [Platão - Fedro]

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

A Filosofia Perene

O seguinte texto é uma tradução do ensaio de Frithjof Schuon publicado inicialmente no livro "The Unanimous Tradition: Essays on the Essencial Unity of All Religions", editado por Fernando Ranjit e traduzido por William Stoddart, e recentemente incluído no livro "The Underlying Religion - An Introduction to the Perennial Philosophy", editado por Martin Lings e Clinton Minnar.


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O termo philosophia perennis, correntemente utilizado desde a Renascença e à qual os neo-escolásticos deram bastante uso, significa a totalidade das verdades primordiais e universais – e, por essa razão, dos axiomas metafísicos – cuja formulação não pertence a nenhum sistema em particular. Da mesma forma, poderíamos nos referir a uma religio perennis, designando-se através deste termo a essência de todas as religiões; isto significa a essência de todas as formas de adoração, todas as formas de oração e de todos os sistemas de moralidade, tal como a sophia perennis é essência de todos os dogmas e de todas as expressões de sabedoria. Preferimos o termo sophia em relação ao de philosophia, pela simples razão que o segundo termo é menos directo e porque invoca associações com um sistema de ideias totalmente profano e demasiadas vezes aberrante.

A chave para a eterna sophia é a pura intelecção ou, por outras palavras, o discernimento metafísico. “Discernir” é “separar”: separar o Real e o ilusório, o Absoluto e o contingente, o Necessário e o possível, Ātmā e Māyā. A acompanhar o discernimento, em forma de complemento e de um modo operativo, está a concentração, a qual une: isto significa tornar-se completamente consciente – a partir do ponto inicial da terrena e humana Māyā – do Ātmā, o qual é simultaneamente absoluto e infinito.

De acordo com alguns dos Pais da Igreja, “Deus tornou-se homem para que o homem se possa tornar Deus”; uma fórmula audaciosa e elíptica que poderíamos parafrasear ao estilo do Vedānta, dizendo que o Real se tornou ilusório para que o ilusório se pudesse tornar real; Ātmā tornou-se Māyā para que Māyā compreende-se Ātmā. Esta é a verdadeira definição de Revelação e do Revelador; de Dharma e do Avātara.

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O erro decisivo do materialismo e do agnosticismo é a incapacidade para ver que as experiências diárias da nossa vida são de uma forma imensurável inferiores à estatura da nossa inteligência humana. Se os materialistas estivessem correctos, esta inteligência seria um luxo inexplicável; sem o Absoluto, a capacidade para a conceber não teria uma causa. A verdade do Absoluto coincide com a própria substância do nosso espírito; as várias religiões actualizam objectivamente aquilo que está contido na nossa mais profunda subjectividade. A Revelação é no macrocosmos aquilo que a intelecção é no microcosmos; o Transcendente é imanente no mundo, de outra forma o mundo não existiria, e o Imanente é transcendente em relação ao individual, de outra forma não o poderia suplantar.

Aquilo que dissemos em relação ao alcance da inteligência humana também se aplica à vontade, no sentido que a livre vontade prova a transcendência do seu objectivo essencial, para o qual o homem foi criado e pelo qual o homem é homem; o ser humano é proporcional a Deus, e é apenas em Deus e através Dele que ele é totalmente livre.

Poderíamos fazer uma observação análoga para o caso da alma humana; a nossa alma prova Deus pelo facto de ser proporcional à natureza divina, e é o assim por compaixão, amor desinteressado, generosidade – e, por essa razão, em última análise, por objectividade, a capacidade para se transcender; é isto, precisamente, que caracteriza a inteligência e a vontade do homem.

E é nestas fundações da natureza humana – imagem da natureza divina – que a religio perennis tem a sua raiz.

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A expressão doutrinal mais directa da sophia perennis é sem dúvida o Advaita Vedānta, com as suas noções de Ātmā, de Māyā, e de Tat tvam asi; mas esta doutrina é também encontrada, de uma forma ou de outra, mesmo que em alguns casos apenas esporadicamente, nos esoterismos sapienciais de todas as grandes religiões, e isto tem necessariamente de assim ser uma vez que em qualquer religião normal – e, assim, intrinsecamente ortodoxa – é ela própria uma expressão indirecta e simbólica da eterna sophia.

Citámos atrás uma fórmula patrística que resume o Cristianismo e ao mesmo tempo expressa a religio perennis: “Deus tornou-se homem para que o homem se possa tornar Deus.” No Islão, o ênfase não está no mistério da Manifestação Divina; está na Unidade Divina e, assim, na Realidade Divina, juntamente com as consequências que esta essencialmente compreende; a expressão fundamental deste facto está no seu testemunho de fé: “Não existe divindade (= realidade) excepto a (única) Divindade (= Realidade).” No Islão, o que salva não é, em primeiro lugar, a Manifestação Divina; é a aceitação, através da inteligência, da Unidade Divina, e posteriormente o facto de retirar daí todas as consequências.

Discernir o Real; concentrar-nos nele, ou mais precisamente, no mais possível dele que nos é acessível; e depois conformar a moralidade à sua natureza; este é o Caminho, o único que existe. No Cristianismo, o Real está como que absorvido – com vista à salvação do homem – na sua Manifestação humana, Cristo; a concentração é realizada através da união com Ele, sem esquecer os sacramentos que conferem as correspondentes graças; a conformidade moral exige humildade e caridade, e nesta perspectiva, o Cristianismo não pode ser distinguido de qualquer outra perspectiva espiritual, excepto pela coloração sentimental específica que atribui a estas virtudes.

Quanto ao Judaísmo, este é peculiar pelo facto de pôr toda a ênfase em Deus como o parceiro do Seu Povo Escolhido, sendo a Lei a ligação entre as duas partes; podemos dizer também que é o último que recebe toda a ênfase, uma vez que está situado entre Deus e Israel; se Israel é o Povo de Deus, Deus pela Sua parte é o Deus de Israel, o pacto sendo firmado pela Lei de Sinai. O drama entre Deus e o seu Povo reflecte o drama entre Ātmā e Māyā, com toda a sua ambiguidade e toda a sua glória final, do ponto de vista duplo de ritmos cósmicos e da Apocatástase.

Completamente diferente das religiões Semitas e mesmo das religiões Arianas é o Budismo, apesar de ele próprio nascer num meio Ariano e teísta: nesta perspectiva, o Absoluto­‑Infinito não toma a forma de uma divindade objectiva que é ao mesmo tempo transcendente, imanente e omnipotente, mas aparece unicamente – pelo menos a priori – sob os aspectos de um estado interior que na realidade está para além todos os estados imagináveis, sendo, precisamente, o Estado absoluto e infinito. O conceito de Nirvāna, apesar de claramente não-teísta, não é “ateísta” uma vez que implica a noção de Absoluto, Infinito e Realidade Perfeita, os quais não podem ser o vazio, excepto em aparência e em comparação com o mundo das formas e das paixões. De outro ponto de vista, Nirvāna é objectivado na forma do Buddha, o que nos transporta de volta para a fórmula patrística já citada, e a qual podemos parafrasear nos seguintes termos: o Nirvāna (o “Estado Divino”) tornou-se Samsāra (= o mundo) para que o Samsāra se possa tornar Nirvāna; o Nirvāna tornado Samsāra não é mais do que o Buddha, o qual é na prática Deus como Logos ou Avātara.

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A própria expressão philosophia perennis, e o facto da maioria daqueles que a utilizaram eram Tomistas, e por essa razão Aristotélicos, levanta a questão sobre qual é, neste contexto, o valor da sabedoria Grega, sobretudo porque esta é geralmente apresentada como um mero sistema de pensamento humano. Em primeiro lugar, por sabedoria Grega referimo-nos, não apenas a uma qualquer filosofia da Antiguidade Clássica, mas essencialmente ao Platonismo com as suas raízes Pitagóricas e o seu prolongamento com Plotino; neste sentido, pode até ser aceite o Aristotelismo, mas na condição expressa que esta seja combinada – como no espírito dos filósofos Muçulmanos – com o Platonismo no seu sentido mais lato, do qual é, dessa forma, como que uma dimensão particular mais ou menos secundária. Por esta razão, devemos ter em consideração o seguinte, que é essencial: a sabedoria Grega pressupõe, por um lado, a iniciação nos Mistérios, e por outro, a prática das virtudes; basicamente, pertence à gnose – ao jñāna dos Hindus – mesmo quando lida com coisas que não têm qualquer ligação com o conhecimento; claramente, o Aristotelismo não é um jñāna, mas, de qualquer forma, deriva de uma perspectiva desta ordem.

O Aristotelismo é uma metafísica que cometeu o erro de se abrir ao mundo, em direcção às ciências, em direcção à experiência, mas a qual não é menos logicamente válida para tudo isso, enquanto que o Platonismo contempla o Céu, os arquétipos, os valores eternos.

Se por um lado o espírito Grego – através do Aristotelismo mas também e sobretudo através dos sofistas e dos cépticos – deu origem à aberração que é a profana e racionalista filosofia, também providenciou – sobretudo através do Platonismo – elementos que foram significativamente úteis, não só para as várias teologias de origem Semita, mas também às especulações esotéricas que as acompanharam e que a elas se sobrepõem; não devemos esquecer que para alguns Sufis, Platão goza de um prestígio digno de um profeta, e que Mestre Eckhart se referiu a ele como “aquele grande pastor” que “descobriu o caminho antes de Cristo ter nascido”.

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Situado num sentido nas antípodes da filosofia Grega – e alguns ficarão certamente surpreendidos que lhes façamos referência – estão as variadas e muito desiguais tradições que podem ser classificadas sobre o epíteto do xamanismo. Por um lado, esta corrente tradicional, testemunha tardia da Tradição Primordial, deu origem à antiga religião da China, e a partir daí às suas duas cristalizações complementares, o Confucionismo e o Taoísmo; é a esta corrente que todas as antigas religiões Mongóis pertencem, o Xintoísmo, o Bön e as religiões de Genghis Khan.

Por outro lado, esta mesma corrente é manifestada no xamanismo dos Índios da América, apesar de com formas muito diferentes das assumidas na Ásia; mas o xamanismo Americano tem um aspecto comum com o da Ásia – e, além do mais, é um aspecto que caracteriza todo o xamanismo Hiperbóreo – nomeadamente o facto de ser fundado no culto dos fenómenos da natureza e, assim, numa espécie de “panteísmo” imanente, por outras palavras, visualizando a natureza virgem como a Manifestação do Principio Divino, e não de outra forma.

Obviamente, o interesse do xamanismo não reside no seu abuso de magia e de oráculos; ele reside no facto de ter a sua raiz na natureza virgem e no seu sentido primordial do sagrado, e da “primordialidade” das suas expressões de culto, incluindo o fenómeno característico de “auto-profetismo”, a partir do qual, para além do mais, a função do xamã deriva por exteriorização. A Escritura sagrada do xamanismo está contida, não num livro, mas nos símbolos da natureza, por um lado, e na substância da alma, por outro, a alma reflectindo e prolongando o mundo externo; daqui resulta que se, por um lado, os dogmas desta religião estão expressos pelos sinais da natureza que nos rodeiam, por outro, a alma tem acesso aos mistérios na medida que for capaz de, moralmente e espiritualmente, se libertar das aparências e entrar em contacto com a sua própria essência supernatural. Tudo isto é verdade em princípio e virtualmente, e não deverá resultar no esquecimento da degeneração de vastos sectores do xamanismo; mas não são os factos humanos acidentais que nos interessam aqui, mas sim o princípio visualizado e a sua realidade fundamental.

Estes sobreviventes da Tradição Primordial contêm uma mensagem que se dirige a cada homem consciente da vocação humana, e esta é uma consciência do carácter sagrado do santuário universal constituído pela natureza virgem, a qual inclui tanto a mais modesta flor como as estrelas; é também a consciência da imanência, nas profundezas do coração, de uma e total Revelação. Mas esta verdade seria reduzida a nada na prática sem a seguinte, a qual o xamanismo não nos pode dar, nomeadamente que a religio perennis, como Doutrina integral e Caminho de salvação, é inerente nas grandes e intrinsecamente ortodoxas tradições da humanidade, e que é nelas que devemos procurar e não noutro local.

domingo, 7 de setembro de 2008

Jean Borella

Jean Borella nasceu em Nancy a 21 de Maio de 1930, recebeu uma educação católica de sua mãe francesa e pai italiano, aviador militar de carreira que faleceu em 1937 na sequência de um acidente de aviação. Graduou-se em filosofia em 1953 e sucedeu a Georges Valin no ensino de filosofia na Universidade de Nancy, onde leccionou sobre metafísica e história da filosofia até 1995. Dirigiu a revista Conaissance des Religions (1991-1993) e publicou diversos artigos relacionados com o pensamento católico e com outros assuntos. Jean Borella aderiu à doutrina Platonista e à perspectiva metafísica do vedanta que Georges Valin lhe havia revelado. Foi também profundamente influenciado pelos escritos de René Guénon, ainda que tenha seguido de forma crítica a visão daquela personalidade no que se refere ao Cristianismo. Homem erudito e dedicado à oração, Jean Borella personifica a antítese do “cristão moderno” e reabilita o princípio de um conhecimento metafísico e de uma capacidade “naturalmente sobrenatural da inteligência” no aprofundamento da verdade.


Bibliografia

Autor:
La charité profanée, Editions Dominique Martin Morin. (anciennement Edt du Cèdre, 1979).
Le sens du surnaturel, Ad Solem, Genève 1996 (édition revue et augmentée ; 1er édition. 1986, La Place Royale) ; trad. Anglaise, T § T Clark, Edimbourg, 1998).
Traité du signe symbolique, L’Age d’Homme (édition revue et corrigée du Mystère du signe, maisonneuve et Larose, 1989).
La crise du symbolisme religieux, L’Age d’Homme, 1990 ; trad. Roumaine, Institutul European, Iasi, 1995.
Esotérisme guénonien et mystère chrétien, L’Age d’Homme, 1997 ; trad. Italienne et anglaise en cours.
Symbolisme et réalité, Ad Solem, 1997 ; trad. Italienne, Servitium Editrice, Gorle, 2000.
Penser l’analogie, Ad Solem, Genève 2000.
The secret of the Christian Way. A contemplative Ascent through the Writings of Jean Borella, edited and translated by John Champoux with a Foreword by Wolfgang Smith, State University of New York Press, Albany, 2001.
Le poème de la Création. Traduction de la Genèse 1-3, Ad Solem, 2002.

Em colaboração:
Saint Thomas d’Aquin, Commentaire de l’Epître aux Romains, trad., annotation et tables par Dom Jean Eric Stroobant de Saint-Eloy et Jean Borella, Cerf, 1999.
Saint Thomas d’Aquin, Commentaire de la Ier Epître aux Corinthiens, Cerf, 2003.

Não publicados:
Fausses évidences et vérités de bon sens : Un philosophe catholique face au monde moderne.

Outros:
« Intelligence spirituelle et Surnaturel » in Eric Vatré, La Droite du Père, Enquête sur la Tradition catholique aujourd’hui, Trédaniel, 1994.
« Comment définir la Tradition », in Arnaud Guyot-Jeanin, Enquête sur la Tradition, Trédaniel, 1994.
« Spre o teorie a unitatil religilor » in Bogdan Mihai Mandache, Teofania Interiora. Dialoguri cu teologi catolici contemporani, Editura Presa Buna, Iasi, 1996.

Prefácios:
Abbé Henri Stéphane, Introduction à l’ésotérisme chrétien I, Editions Dervy.
Patricia Douglas Viscomte, La quête de Raphaël, Editions Fideliter.
Georges Vallin, Lumières du Non-dualisme, Presses Universitaires de Nancy.

Posfácios:
Abbé Henri Stéphane, Introduction à l’ésotérisme chrétien II ; « De l’ésotérisme chrétien », Edition Dervy.

Estudos:
« Gnose et gnosticisme chez René Guénon » (Les dossiers H : René Guénon, L’Age d’Homme, 1984).
« Du symbole selon René Guénon » ( Les cahiers de l’Herne : René Guénon, 1985).


Publicações no "Sabedoria Perene":

Caminhando através dos segredos de S. Tiago e de J. Borella

Caminhando através dos segredos de S. Tiago e de J. Borella


Como uma criança que nasce e descobre que tem pés para firmar na terra e que está capacitada para caminhar, também os autores deste espaço o pretendem fazer em direcção da Verdade, utilizando este espaço virtual para mapear, ainda que de forma certamente imperfeita, esse mesmo percurso.

Assim, resultaram reunidas as condições ideias para materializar de algum modo o referido percurso e pedalar ao longo de um dos muitos caminhos de peregrinação que conduzem a Santiago de Compostela, permeando pelo coração da Galiza e acumulando visitas a alguns dos mais emblemáticos marcos distribuídos ao longo da distância transmutadora que separa o peregrino de Santiago de Compostela e que lhe guia o coração pelos sinais e símbolos utilizados na arte e na arquitectura, pela natureza e, bem assim, pela tradição impregnada no mesmo caminho celeste que reflecte sobre a Terra o outro caminho – o ‘Caminho de Santiago’, que tantos outros homens ao longo de tantos outros séculos também percorreram.


Tendo presente que o Caminho de Santiago, contrariamente a outras formas de culto religioso em que a presença física num determinado local é um objectivo em si, é particularmente uma peregrinação cristã interna (logo esotérica), cada uma das pedaladas que materializavam o caminho externo foram poderosa, sábia e bondosamente potenciadas pelo livro “O Segredo do Caminho Cristão - Uma Ascensão Contemplativa Através dos Escritos de Jean Borella, editado e traduzido por G. John Champoux e publicada em 2001 pela State University of New York Press.



Esta obra que nos permitiu capturar o ambiente envolvente do caminho e penetrar pelo nosso interior, apresenta a seguinte organização:

Foreword (Wolfgang Smith)
Preface/acknowlegements (G. John Champoux)
Prologue: The Gnosis with a True Name

The First Stage: Contemplating God Through His Vestiges in the Universe
1. Trinity and Creation

The Second Stage: Contemplating God in His Vestiges in the Sense World
2. The Inevitable “Failure” of Nicholas of Cusa
3. The Essence of the Symbol

The Third Stage: Contemplating God through His Image Stamped upon Our Natural Powers
4. The Constitution of Man According to the New Testament

The Fourth Stage: Contemplating God in His Image Reformed by the Gifts of Grace
5. Love and Gnosis in the Crucified Mediator
6. The Human Ternary and the Opening of the Heart in the Old Testament

The Fifth Stage: Contemplating the Divine Unity through Its Primary Name which Is Being
7. Love of Self and Love of God

The Sixth Stage: Contemplating the Most Blessed Trinity in Its Name which is Goog
8. The Trinitarian Functions of the Hypostases

The Seventh Stage: The Sabbath of Rest and Ecstasy
9. The essence and Forms of the “Body of Christ”
10. The “Body of Christ” and the Work of Salvation
11. The Metaphysics of the Eternal Exposition

Endnotes
Select Bibliography
Name and Theme Index
Scriptural Index



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segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Tributo de Martin Lings a René Guénon

A tradução apresentada na presente publicação corresponde a um texto transcrito de uma lição dada por Martin Lings no Outono de 1994 no Instituto do Príncipe de Gales em Londres, patrocinada pela Temenos Academy. Este texto foi publicado no Número 1 - Volume 1 do Sophia Journal em 1995.


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No que diz respeito ao início da vida de René Guénon o nosso conhecimento é muito limitado devido à sua extrema reticência. A sua objectividade, a qual é um aspecto da sua grandeza, fê-lo compreender os males do subjectivismo e individualismo no mundo moderno, o que o impeliu, talvez em demasia, na direcção oposta; evitando de todas as formas falar sobre si próprio. Desde a sua morte, têm sido escritos livros atrás de livros e os seus autores têm, sem dúvida, sentido uma enorme frustração por serem incapazes de descobrir diversas coisas e, em resultado, livros atrás de livros contêm erros factuais.


Aquilo que sabemos é que nasceu em Blois, França, em 1886, e que era o filho de um arquitecto; teve uma educação tradicional Católica e era um excelente aluno em filosofia e matemática. Mas com a idade de 21 ele já estava em Paris, no mundo do ocultismo, o qual estava em grande agitação naquela altura, por volta de 1906-08. E os perigos daquele mundo foram talvez nele contrabalançados pelo facto de ser mais aberto a amplas perspectivas. Por volta desta altura, em Paris, entrou em contacto com alguns Hindus da escola Advaita Vedanta, um dos quais o iniciou na sua própria linha Shivaita de espiritualidade. Não temos detalhes da altura ou local e parece que ele nunca falou sobre esses Hindus nem parece ter mantido o contacto após um ou dois anos. Mas aquilo que aprendeu com eles encontra-se nos seus livros e os seus encontros com eles foram claramente providenciais. Estes contactos devem ter sido extremamente intensos enquanto duraram. Os seus livros são precisamente aquilo que era e é necessário como antídoto para a crise do mundo moderno.


Pela altura em que tinha quase 30 anos, a sua inteligência fenomenal permitiu-lhe ver exactamente o que estava errado no Ocidente moderno, e essa mesma inteligência tinha-lo trazido para fora dele totalmente. Eu próprio me lembro desse mundo no qual e para o qual Guénon escreveu os seus primeiros livros, na primeira década a seguir à Primeira Grande Guerra, um mundo monstruoso tornado impenetrável pela euforia: a Primeira Grande Guerra tinha sido a guerra para acabar com a guerra. Agora nunca mais haveria uma outra guerra; e a ciência tinha provado que o homem era descendente do macaco, isto é, ele tinha progredido dos primatas, e agora este progresso iria continuar sem nada que o impedisse; tudo iria tornar-se melhor, melhor e melhor. Eu estava na escola nessa altura e lembro-me de ser ensinado estas coisas, com apenas uma hora por semana a ser ensinado o oposto nas aulas de religião. Mas a religião no mundo moderno já tinha há muito sido encostada a um canto. Desse canto ela protestava conta a euforia, mas sem resultado.


Hoje a situação é consideravelmente pior e consideravelmente melhor. Ela é pior porque os seres humanos degeneraram ainda mais. Podemos ver bem mais faces maldosas do que se viam nos anos 20, se tal me é permitido dizer, ou, pelo menos, é essa a minha impressão. Ela é melhor porque já não existe qualquer euforia. O edifício do mundo moderno está a cair em ruína. Grandes fissuras estão a surgir por toda a parte, através das quais se pode penetrar como nunca foi possível. Mas é ainda pior porque a Igreja, ansiosa para não ficar atrás dos tempos, se tornou cúmplice da modernidade.


Mas para voltar aos anos 20, lembro-me de um político proclamar, como alguém se atreveria actualmente, “Estamos agora na manhã gloriosa do mundo.” E nesta mesma altura, escreveu Guénon deste maravilhoso mundo, “É como se um organismo com a sua cabeça cortada continuasse a viver uma vida, intensa e desordenada.” (retirado de Este e Oeste publicado a primeira vez em 1924).


Parece que Guénon não manteve contactos adicionais com o Hindus e sem dúvida eles regressaram à Índia. Entretanto, ele foi iniciado numa ordem Sufi, a qual seria a sua casa espiritual para o resto da sua vida. De entre os males que viu à sua volta ele era muito preocupado com o preconceito anti-religioso que era particularmente comum entre os designados intelectuais Franceses. Ele tinha a certeza que algumas dessas pessoas eram, no entanto, virtualmente inteligentes e seriam capazes de responder à verdade se esta lhes fosse claramente exposta. Este preconceito anti‑religioso surgiu porque os representantes da religião tinham gradualmente se tornado menos inteligentes e mais e mais centrados em considerações sentimentais. Especialmente na Igreja Católica, onde a divisão da comunidade em clero e leigos era sempre enfatizada, um leigo tinha de confiar na Igreja, não sendo sua função pensar sobre coisas espirituais. Os homens leigos inteligentes colocariam questões a padres que não teriam capacidade de responder e que se refugiariam na ideia que a inteligência e o orgulho estavam intimamente ligados. E, assim, não é difícil ver como este preconceito extremamente anti-religioso surgiu especialmente em França.


Guénon colocou-se então a seguinte questão: Uma vez que estas pessoas rejeitaram o Cristianismo, serão elas capazes de aceitar a verdade quando expressa nos termos Islâmicos do Sufismo, os quais estão proximamente relacionados com os Cristãos em vários aspectos? Ele decidiu que elas não seriam, que diriam que era outra religião; que tinham tido religião a mais. No entanto, O Hinduísmo, a religião viva mais antiga, é à superfície muito diferente, quer do Cristianismo, quer do Islamismo, e, assim, ele decidiu confrontar o mundo Ocidental com a verdade tendo por base o Hinduísmo. Foi com este fim que escreveu a sua geral Introdução ao Estudo das Doutrinas Hindu. O livro foi publicado em 1921, seguido em 1925 por aquela que é talvez a sua maior obra, O Homem e o Seu Devir de acordo com o Vedanta.


Ele não poderia ter escolhido uma melhor forma para a sua mensagem de verdade para o Ocidente, pois o Hinduísmo tem uma objectividade que resulta de ter sido revelada ao homem numa era remota em que ainda não existia a necessidade de estabelecer uma distinção entre o esoterismo e o exoterismo, e essa objectividade significa que a verdade não teve de ser velada. Ainda na Antiguidade Clássica os Mistérios, ou seja, o esoterismo, eram apenas para alguns. No Hinduísmo, no entanto, eles eram a norma e as mais elevadas verdades podiam ser faladas de forma directa. Não havia a questão de “Não lances as tuas pérolas aos porcos” e “Não dês coisas sagradas aos cães”. As religiões irmãs do Hinduísmo, por exemplo, as religiões da Grécia e de Roma, há muito que tinham desaparecido. Mas graças ao sistema de castas, tendo os Brahmins como salvaguarda da religião, temos hoje um Hinduísmo que ainda se encontra vivo e que ao longo deste século produziu flores de santidade.


Um dos pontos a ser referido em primeiro lugar é a questão da distinção que deve ser feita ao nível divino e que é feita em todos os esoterismos, não podendo ser feita exotericamente, ou seja, nas religiões dadas actualmente às massas – a distinção entre o Absoluto e o início, a partir daí, da relatividade. O Absoluto que é Um, Infinito, Eterno, Imutável, Indeterminado, Incondicionado, é representado no Hinduísmo pela monossílaba Aum, e é designado por Atmâ, que significa o Si, e Brahma, a qual é uma palavra neutra que serve para enfatizar que está para além de toda a dualidade, tal como o masculino e feminino. E é também designado por Tat (Aquilo), tal como no Sufismo, onde o Absoluto é por vezes designado por Huwa (Ele). Depois, temos o que corresponde em outras religiões ao Deus pessoal, Ishvara, o que corresponde já ao início da relatividade, uma vez que diz respeito à manifestação, o termo que os Hindus usam para a criação, e a criação é claramente o inicio da dualidade – Criador e criado. Ishvara está ao nível divino, no entanto, é o princípio da relatividade.


Em todo o esoterismo encontramos a mesma doutrina. Mestre Eckhart encontrou dificuldades com a Igreja porque insistiu em fazer a distinção entre Deus e Divindade [Godhead] – Gott und Gottheit. Ele usou o segundo termo para o Absoluto, isto é, para o Absoluto Absoluto, e usou o segundo termo para o Absoluto relativo. Podia ter sido o oposto, mas ele precisava de fazer alguma distinção. No Sufismo, falamos da Essência Divina e nos Nomes Essenciais de Deus, tais como O Uno, A Verdade, O Todo-Sagrado, O Vivo, O Infinitamente Bom, al-Rahmân, o qual contem as raízes de todo o bem e o qual é também um nome da Essência Divina. Abaixo disso existem os Nomes das Qualidades, como o Criador, o Misericordioso, no sentido daquele que tem Misericórdia pelos outros, e isso é claramente o início de uma dualidade. Em todos os esoterismos esta distinção é feita mesmo ao nível da Divindade. Ela não pode existir abaixo do esoterismo porque resultaria na ideia de dois Deuses; uma divisão na Divindade seria excessivamente perigosa nas mãos da massa de fiéis. A Unidade Divina tem que ser mantida a todo o custo.


Guénon, no seu livro, traça com toda a claridade a hierarquia do universo a partir do Absoluto, do Deus pessoal, até ao logos criado, isto é, buddhi, que é a palavra que significa intelecto e que tem três aspectos – Brahmâ (desta vez a palavra é masculina), Vishnu e Shiva. Falando apenas da hierarquia dos universos, estes devas (esta é linguisticamente a mesma palavra que a palavra Latina deus), têm o nível do que designaríamos por arcanjos. O Hinduísmo é, no entanto, tão subtil que apesar de serem criados eles podem ser invocados como Nomes do Absoluto porque descendem do Absoluto e regressam ao Absoluto. Eles podem ser invocados no sentido do Brahmâ Absoluto, no sentido de Atmâ, no sentido de Aum.


A doutrina Hindu, tal como o Génesis, fala de duas águas. O Corão fala de dois oceanos, as águas superiores e as águas inferiores. As águas superiores representam o aspecto mais elevado do mundo criado, isto é, do mundo manifestado, correspondendo aos diferentes níveis nos quais existem os diferentes paraísos. É tudo parte do próximo mundo do ponto de vista deste mundo. As águas inferiores representam o mundo do corpo e da alma, e tudo é uma manifestação do Absoluto.


Em O Homem e o Seu Devir de acordo com o Vedanta, Guénon, após traçar a manifestação do homem e mostrar com todo o detalhe qual é a sua natureza, procede mostrando como, de acordo com a doutrina Hindu, o homem pode regressar à sua fonte absoluta. Acaba com a suprema possibilidade de unidade com o Absoluto, uma unidade que já se encontra presente. Um rapaz Brahmin com a idade de oito anos é iniciado pelo seu pai e as palavras murmuradas aos seus ouvidos, “Tu és Aquilo” [Thou art That], sendo o significado de tu és o Absoluto, tat vam asi. Isto mostra o quanto estamos longe da religião tal como é compreendida no mundo moderno. Mas essa verdade, que no Sufismo é designada por o segredo, al-sirr, está necessariamente em todo o esoterismo nos tempos actuais, caso contrário não mereceria o nome de esoterismo.


Outro aspecto do Hinduísmo que serve de veículo perfeito para a mensagem de Guénon é a amplitude da sua estrutura. Nas religiões mais recentes, é como que a Providência tivesse encaminhado a humanidade para um vale cada vez mais estreito: a abertura é a mesma mas a perspectiva horizontal é cada vez mais estreita porque o homem não consegue receber mais do que apenas uma parte. A doutrina Hindu do samsâra, ou seja, da eterna corrente de inúmeros mundos que foram manifestados, e dos quais o universo é constituído, originaria todo o tipo de distracções. De qualquer forma, quando estamos a falar de um Absoluto, Divindade Eterna, a ideia que essa Infinitude produziu apenas um único mundo ao manifestar-se não satisfaz a inteligência. A doutrina do samsâra por outro lado, satisfaz, mas os mundos que foram manifestados são inumeráveis.


Outro ponto a este respeito é o facto do Hinduísmo possuir uma surpreendente versatilidade. Ele depende em primeiro lugar da Revelação Divina. Os Vedas e os Upanishades são revelados; o Bhagavad Gita é geralmente considerado como revelado mas não a totalidade do Mahâbhârata, o épico “inspirado” a que pertence o Gita. No Hinduísmo, esta distinção entre revelação, sruti, e inspiração, smriti, é assinalada claramente, tal como o é no Judaísmo e no Islão: O Pentateuco, ou seja, os primeiros cinco livros do Antigo Testamento, foram revelados a Moisés, o Livro dos Salmos a David, o Corão a Maomé. Isto é algo que, de uma maneira geral, os Cristãos não compreendem. Eles têm dificuldade em entender, no Antigo Testamento por exemplo, a diferença entre o Pentateuco e os Livros dos Reis e as Crónicas, os quais são apenas história sagrada, sem dúvida inspirada, mas de forma alguma revelada. Para os Cristão a revelação é Jesus Cristo, a Palavra feita carne; o conceito da “Palavra feita livro”, a qual é uma revelação paralela, não entra na sua perspectiva.


O Hinduísmo tem ainda os avatâras, e isso um Cristão pode compreender, ou seja, as manifestações, as descidas, da Divindade. É claro que o Cristianismo não reconhece as descidas dos avatâras Hindus, pois para o Cristão comum apenas existiu uma única descida e essa foi o próprio Cristo, mas o Hinduísmo reconhece a descida como uma possibilidade inexaurível e nomeia dez avatâras que ajudaram a manter a vitalidade da religião até aos dias actuais. O nono avatâra, o qual é chamado de avatâra estrangeiro, é o próprio Buda, apesar de aparecer na índia, ele não foi para os Hindus mas claramente para o mundo Oriental. A amplitude do Hinduísmo é também visível na sua prefiguração do exoterismo, o qual é o reconhecimento das Três Vias. Estas são ainda Vias de retorno a Deus – as três margas – a via do conhecimento, a via do amor, e a via da acção – três vias que correspondem às inclinações e afinidades de diferentes seres humanos.


Outro aspecto que torna os termos Hindus tão ajustados para passar aos Europeus a sua mensagem, é que eles têm, como Arianos, uma afinidade com o Hinduísmo, pois as suas raízes estão nas religiões da Antiguidade Clássica, as quais são religiões irmãs do Hinduísmo; a sua estrutura era claramente semelhante à do Hinduísmo. É claro que elas degeneraram em completa decadência e estão agora desaparecidas. No entanto, a nossa herança reside nelas e Guénon oferece-nos a possibilidade de uma misteriosa renascença num sentido puramente positivo através da sua mensagem da verdade em termos Hindus. Esta afinidade não deve ser, no entanto, exagerada, e Guénon nunca, tanto quanto sabemos, aconselhou a ninguém que não fosse Hindu que se tornasse Hindu.


A sua mensagem foi sempre uma mensagem de estrita ortodoxia num esoterismo, mas ao mesmo tempo de igual reconhecimento de todas as outras ortodoxias, mas este propósito não era de forma alguma académico. O seu motto foi vincit omnia veritas, a Verdade conquista tudo, mas implicitamente o seu motto era “Procura e encontrarás, bate e a porta te será aberta”. Implícito nos seus textos está a certeza que eles aparecerão providencialmente para aqueles que forem qualificados para receber a sua mensagem e os impelirão a procurar e, dessa forma, descobrir um caminho.


Guénon estava consciente de ter uma função e sabia o que pertencia à sua função e o que não pertencia. Ele sabia que não era a sua função ter discípulos; ele nunca teve nenhum. A sua função era ensinar como preparação para uma via em que as pessoas pudessem encontrar por elas próprias, e esta preparação implicava preencher as lacunas provocadas pela educação moderna. A primeira destas lacunas é a incapacidade de compreender o significado do transcendente e o significado da palavra intelecto em consequência, uma palavra que continuou a ser utilizada, mas que no sentido tradicional da palavra, correspondente ao Sânscrito buddhi, foi simplesmente esquecida no mundo ocidental. Guénon insistiu nos seus textos em dar a esta palavra o seu verdadeiro significado, o qual é a percepção das realidades transcendentes, a faculdade que pode ver as coisas do próximo mundo, e os seus prolongamentos na alma são aquilo que pode ser designado por intuições intelectuais, as quais são as luzes preliminares que antecedem o momento da intelecção total.


Ficamos com a impressão de que Guénon deve ter tido uma iluminação intelectual numa idade muito jovem. Ele deve ter pressentido directamente verdades espirituais com o intelecto no seu verdadeiro sentido. Ele preencheu as lacunas explicando o significado dos ritos, o significado dos símbolos, a hierarquia dos mundos. Na educação moderna o próximo mundo é deixado totalmente de fora, enquanto que na Idade Média os estudantes eram ensinados sobre a hierarquia das faculdades e, correspondentemente, da hierarquia do universo.


Vamos agora por uns instantes falar a um nível mais pessoal, mas talvez possa não ser sem interesse. Quando li os livros de Guénon no princípio dos anos trinta foi como se tivesse sido atingido por um relâmpago e compreendi que aquilo era a verdade. Eu nunca tinha visto a verdade exposta da forma como o foi na mensagem de Guénon, que existiam várias religiões e que todas deveriam ser tratadas com reverência; elas eram muito diferentes porque eram destinadas a pessoas diferentes. Fazia todo o sentido e era ao mesmo tempo para a glória de Deus porque qualquer pessoa com um nível de inteligência razoável, quando ensinada aquilo que nos ensinavam na escola, teria inevitavelmente que perguntar: então e o resto do mundo? Porque é que as coisas eram geridas desta forma? Porque é que a verdade foi dada em primeiro lugar apenas aos Judeus, a um só povo? E depois foi ordenado que o Cristianismo fosse espalhado pelo mundo, mas porquê tão tarde? E nos tempos antigos? Estas questões nunca eram respondidas, mas quando li Guénon eu soube que aquilo que ele dizia era a verdade e que eu teria que fazer algo em relação a isso.


Escrevi a Guénon. Traduzi um dos seus primeiros livros, Este e Oeste, para o Inglês, e mantive correspondência com ele em relação à tradução. Em 1930, Guénon deixou Paris após a morte da sua mulher e foi para o Cairo onde viveu durante vinte anos até à sua morte, em 1951. Uma das minhas primeiras ideias ao ler os livros de Guénon foi enviar cópias ao meu melhor amigo que tinha estudado comigo em Oxford, pois sabia que ele teria a mesma reacção que eu. Ele regressou ao Ocidente e seguiu o mesmo caminho que eu já tinha encontrado, um caminho do tipo do referido por Guénon nos seus livros. Depois, ao precisar de trabalho, aceitou um lugar de professor na Universidade do Cairo, e enviei-lhe o número da caixa postal de Guénon. Guénon era extremamente reservado e não dava a sua morada a ninguém; ele queria desaparecer. Ele tinha inimigos em França e suspeitava que eles o queriam atacar através de magia. Eu não tenho a certeza disto mas sei que Guénon tinha imenso receio de ser atacado por certas pessoas e desejava manter-se desaparecido, afundar-se no mundo Egípcio onde estava, o mundo do Islão. Assim, o meu amigo teve que esperar muito tempo até que Guénon tivesse aceitado encontrar-se com ele. Quando finalmente se encontraram Guénon afeiçoou-se imediatamente a ele e disse-lhe que podia ir a sua casa sempre que desejasse.


No Verão de 1939 fui visitar o meu amigo ao Cairo e enquanto lá estava a guerra começou. Eu tinha aulas para dar na Lituânia nessa altura e, uma vez que não podia regressar, fui forçado a ficar no Egipto. O meu amigo, que por essa altura se tinha tornado como que membro da família de Guénon, recolhendo o seu correio e ajudando-o em muitas outras coisas, levou-me a conhecer Guénon. Um ano depois estava a andar a cavalo no deserto com o meu amigo quando o seu cavalo fugiu com ele e o matou em resultado de um acidente. Nunca esquecerei o momento em que tive de ir dar a notícia a Guénon. Quando o fiz ele chorou durante uma hora. Não tive opção senão tomar o lugar do meu amigo. Eu já tinha sido posto à vontade para frequentar a sua casa e muito rapidamente me tornei como que parte da família. Foi obviamente um enorme privilégio. A mulher de Guénon não sabia ler e apenas falava Árabe. Rapidamente aprendi Árabe e consegui falar com ela. Era um casamento muito feliz. Eles estavam casados há sete anos e não tinham qualquer filho e Guénon, que já estava a ficar com alguma idade – ele era bastante mais velho que ela – não tinha tido filhos com a sua primeira mulher, razão pela qual foi inesperado quando eles começaram a ter filhos. Tiveram ao todo quatro filhos. Eu visitava Guénon praticamente todos os dias. Fui a primeira pessoa a ler o Reino da Quantidade, o único livro que escreveu enquanto estava com ele pois os outros livros já tinham sido todos escritos. Ele deu-me a ler capítulo a capítulo. Tive ainda a oportunidade de lhe dar o meu próprio primeiro livro, The Book of Certainty, o qual lhe dei igualmente capítulo a capítulo. Foi um grande privilégio conhecer tal pessoa.


Durante este tempo uma questão muito importante foi resolvida. Os Hindus com quem Guénon havia estabelecido contacto em Paris tinham lhe dado uma ideia errada, uma ideia não estritamente Hindu, sobre o Budismo. O Hinduísmo reconhece o Buddha como o nono avatâra de Vishnu apesar de alguns Hindus manterem a ideia que ele não era um avatâra, que ele era apenas um kshatriya revoltado, um membro da casta real, contra os Brahmins e foi esta ideia que Guénon aceitou. Consequentemente ele escreveu sobre o Budismo como se este não fosse uma das grandes religiões do mundo. Ananda Coomaraswamy, Frithjof Schuon e Marco Pallis decidiram em conjunto procurar elucidar Guénon sobre esta questão. Guénon mostrou-se muito aberto a ser persuadido e em 1946 levei Marco Pallis a ver Guénon e como resultado ele aceitou que estava enganado e que os erros deveriam ser corrigidos nos seus livros. Marco Pallis começou a mandar-lhe listas com as páginas que precisavam de ser corrigidas.


Guénon praticamente não saía de casa excepto quando nos vinha visitar. Eu mandava um carro para o apanhar e ele vinha visitar-nos com a sua família cerca de duas vezes por ano. Nessa altura vivíamos perto das pirâmides fora de Cairo. Saí com ele apenas uma vez quando fomos visitar a mesquita de Sayyidnâ Husayn perto de al‑Azhar. Ele tinha uma presença incrível; era fantástico ver o respeito com que ele era tratado. À medida que entrou na mesquita ouvia-se as pessoas sussurrar de todo o lado dizendo “Allâhumma salli ‘alâ Sayyianâ Muhammad,” ou seja, “Que Deus faça chover bênções sobre o profeta Maomé”, o que é uma forma de expressar grande reverência a alguém. Ele tinha uma presença luminosa e os seus maravilhosos olhos, uma das suas mais impressionantes características, retiveram o seu lustre até numa idade muito avançada.


Ao nível do seu livro sobre o Vedanta temos o livro que escreveu sobre símbolos, intitulado Símbolos Fundamenteais: A Linguagem Universal da Ciência Sagrada, publicado após a sua morte a partir dos artigos que foi escrevendo para a revista Études Traditionelles. Era maravilhoso ler estes artigos à medida que apareciam mês após mês, mas este livro transporta-nos de volta para os tempos pré-históricos, tal como no O Homem e o Seu Devir de acordo com o Vedanta, mas numa forma mais abrangente. Tudo é obviamente um símbolo, não poderia existir se não fosse um símbolo, mas os símbolos fundamentais são aqueles que expressam eloquentemente aspectos da Verdade Suprema e do Caminho Supremo. Por exemplo, um destes aspectos do Caminho e da Verdade é aquilo que é designado por “eixo do mundo”, eixo que atravessa de todos os estados elevados a partir do centro deste estado. Este é o significado do que é designado por Árvore da Vida. A Árvore da Vida é simbolizada por várias árvores particulares: o carvalho, o freixo, a figueira e outras em todo o mundo. O eixo é o próprio Caminho, o caminho de retorno ao Absoluto. É igualmente simbolizado por objectos criados pelo homem: a escada, o mastro, armas como a lança, e o pilar central de edifícios. Como os arquitectos sabem, muitos edifícios são construídos em torno de um eixo central que, na realidade não está lá, não se encontra materializado. Muitas vezes nas casas tradicionais a lareira é o centro da casa e a chaminé a partir da qual o fumo sobe é outra figura do eixo. E coisas que são normalmente horizontais podem ser igualmente símbolos do eixo: uma ponte também é um símbolo do eixo do mundo. Veja-se o título de Pontífice, o fazedor da ponte, o qual é dado a mais elevada autoridade espiritual da Igreja – a ponte, que é a ponte entre o Céu e a terra.


Outro símbolo fundamental é o rio. Existem três aspectos associados ao rio: a passagem do rio simboliza a passagem deste mundo para um mundo mais elevado, sempre, mas depois existe o próprio rio. Existe a dificuldade de subir contra o curso do rio o que simboliza as dificuldades do caminho espiritual, de regressar à nossa fonte contra a corrente. Existe também o simbolismo de movimento na outra direcção, a do oceano, de regressar finalmente ao oceano; este é outro símbolo do Caminho. No seu livro, entre muitos outros símbolos, Guénon aborda o simbolismo da montanha, da gruta, do ciclo temporal. No ciclo temporal, os solstícios de verão e do inverno são os portões dos deuses de acordo com o Hinduísmo. Os portões dos deuses do solstício de inverno, no signo de Capricórnio; os portões dos ancestrais no solstício de verão, no signo de Caranguejo.


Como referi, Guénon não gostava de falar sobre si próprio e eu respeitei a sua reticência, nunca lhe coloquei questões e acho que ele apreciava isso. Resumindo o que era a sua função, pode-se dizer que a esta era, num mundo cada vez mais abundante de heresia e pseudo-religião, relembrar ao homem do século vinte a necessidade de ortodoxia, a qual pressupõe, em primeiro lugar, a intervenção divina, e em segundo lugar, uma tradição que transmita fielmente de geração em geração aquilo que o Céu revelou. Neste sentido, estamos extremamente em dívida para com ele por ter restaurado ao mundo a palavra ortodoxia com todo o rigor do seu significado original, ou seja, rectidão de opinião, uma rectidão que compele o homem inteligente não só a rejeitar a heresia, mas também a reconhecer a validade de todas aquelas fés que estão conforme os critérios com os quais essas fés dependem para a sua ortodoxia.


Na base desta universalidade, a qual é muitas vezes conhecida como religio perennis, foi também função de Guénon lembrar-nos que as grandes religiões do mundo não são apenas meios para a salvação do homem, mas que frequentemente estão para além disso, mesmo durante esta vida, duas possibilidades esotéricas que correspondem àquilo que era conhecido na Antiguidade Greco-Romana como mysteria pava e mysteria magna, os “Grandes Mistérios” e os “Pequenos Mistérios”. O primeiro é o caminho de retorno à perfeição primordial perdida na queda. O segundo, que pressupõe o primeiro, é o caminho da gnosis, o cumprimento do preceito “conhece-te a ti próprio”. Este fim último é designado no Cristianismo por deificatio, no Hinduísmo, por yoga, união e moksha, libertação, no Budismo, por nirvana, isto é, extinção de tudo o que é ilusório. E no misticismo Islâmico, isto é, no Sufismo, por tahaqquq, o que significa realização tendo sido referido por um sheikh Sufi como auto-realização em Deus. Os Mistérios, e especialmente os Grandes Mistérios, são explicitamente ou implicitamente o tema central dos escritos de Guénon, mesmo na Crise do Mundo Moderno e no Reino da Quantidade. Ele demonstra que os problemas em questão tiveram a sua origem na perda da dimensão dos mistérios, isto é, da dimensão dos mistérios do esoterismo. Ele encontra a origem de todos os problemas do mundo moderno no esquecimento dos mais elevados aspectos da religião. Ele estava consciente de ser um pioneiro, e vou terminar simplesmente com uma citação de algo que ele disse de si próprio, “Tudo o que fizermos ou dissermos servirá para oferecer aqueles que vierem posteriormente as facilidades que nós próprios não tivemos. Aqui como em todo o lado, é o início do trabalho que é o mais difícil.”

Martin Lings

Martin Lings nasceu em Lancashire, em Inglaterra, em 1909 e efectuou os seus estudos na Universidade de Oxford, formando-se em literatura Inglesa. Depois de ensinar Inglês na Polónia, foi nomeado para professor na Universidade de Kaunas na Lituânia, onde ficou até ao ano de 1939. Ensinou literatura Inglesa no Cairo, em especial Shakespeare. Em 1955, já regressado ao seu país natal, foi nomeado curador da Biblioteca Árabe, posteriormente da Biblioteca Oriental, da Biblioteca de Londres, posto que manteve até à sua reforma em 1973. Recebeu o seu Doutoramento da Universidade de Londres em 1959.

Martin Lings foi um dos principais impulsionadores da “escola” Tradicionalista ou Perenealista, bem como um aclamado autor, editor, tradutor, académico e poeta, cujo trabalho se focou na relação entre Deus e o homem através da doutrina religiosa, as escrituras, o simbolismo, a literatura e a arte. Foi um perspicaz metafísico e ensaísta, estudioso das grandes religiões da humanidade, mais conhecido, no entanto, pelos seus textos dedicados ao Islão e à sua tradição esotérica, o Sufismo.

Martin Lings deixou este mundo a 12 de Maio de 2005, com a idade de noventa e seis anos, na sua casa no sul de Inglaterra.


Principais trabalhos:

The Book of Certainty: The Sufi Doctrine of Faith, Vision, and Gnosis;
A Moslem Saint of the Twentieth Century: Shaikh Ahmad Al-Alawi: His Spiritual Heritage and Legacy;
Ancient Beliefs and Modern Superstitions;
Shakespeare in the Light of Sacred Art;
The Elements, and Other Poems;
The Heralds, and Other Poems;
What is Sufism?
The Quranic Art of Calligraphy and Illumination;
Muhammad: His Life Based on the Earliest Sources;
The Eleventh Hour: The Spiritual Crisis of the Modern World in the Light of Tradition and Prophecy;
Symbol and Archetype: A Study of the Meaning of Existence;
Mecca: From Before Genesis Until Now;
Sufi Poems: A Mediaeval Anthology;
A Return to the Spirit: Questions and Answers


Publicações no “Sabedoria Perene”: