domingo, 18 de maio de 2008

Religião, Ortodoxia e Intelecto

Como prometido na apresentação do livro “Remembering in a World of Forgetting – Thoughts on Tradition and Postmodernism” de William Stoddart, vou deixar aqui uma tradução de alguns trechos de três dos seus ensaios publicados nesta obra. A minha escolha recaiu sobre a segunda parte do livro, dedicada ao que precisamos de saber para “relembrar” e recuperar o “sentido do sagrado” (usando a expressão frequentemente usada por Seyyed Hossein Nasr), e mais especificamente os três ensaios em que Stoddart reflecte sobre os conceitos de religião, ortodoxia e Intelecto, fundamentais à compreensão de muitos dos textos dedicados ao estudo das doutrinas Tradicionais e da Sophia Perennis.


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RELIGIÃO

Etimologicamente, religião é aquilo que liga, mais especificamente aquilo que liga o homem a Deus. A religião interessa ao homem por duas razões: em primeiro lugar, é ela que explica a natureza e o significado do universo, ou “justifica os modos de Deus para com o homem” (isto é teodiceia); e em segundo lugar, porque elucida qual o papel e o propósito do homem no universo, ou o ensina a se libertar das suas limitações, constrições e terrores (isto é soteriologia).

Em primeiro lugar, a religião é uma doutrina de unidade: Deus é um, e é Ele a origem e o fim do universo e do homem. O homem, no entanto, separou-se de Deus – através da “Queda” de acordo com o Cristianismo, através da ignorância de acordo com as religiões Arianas. Consequentemente, a religião é também um caminho de “retorno”, um método de união. É um caminho sacramental, um meio para a salvação.

Quaisquer que sejam as designações atribuídas, estas duas componentes estão sempre presentes: teodiceia e soteriologia; doutrina e método; teoria e prática; dogma e sacramento; unidade e união.

A doutrina, ou a teoria, está relacionada com a mente (ou, ao nível mais elevado, com o “Intelecto”, no significado metafísico preciso do termo medieval Intelectus, Nous no Grego, ou Buddhi em Sânscrito); o método, ou a prática, está relacionada com a vontade. A religião, para ser verdadeira, deve sempre envolver simultaneamente a mente e a vontade.

A segunda, ou prática, componente da religião pode ser dividida em duas: nomeadamente, adoração e moralidade. A adoração, o designado elemento sacramental, toma geralmente a forma de participação nos rituais revelados (públicos ou privados) de uma dada religião, tendo em vista a conformidade da vontade do homem com as normas do Absoluto, ou por outras palavras, com a vontade de Deus. A moralidade, o elemento social, está relacionada com “fazer as coisas que devem ser feitas e não fazer as coisas que não devem ser feitas”. Alguns dos conteúdos da moralidade são universais: “não matarás”, “não roubarás”, etc.; e outros são específicos da religião em questão: “não farás ícones”, “aquilo que Deus uniu, que nenhum homem separe”, etc.

Chegámos desta forma aos três elementos que René Guénon considerou como características definidoras de todas as religiões: dogma, adoração e moralidade. Quando levado a um grau mais elevado ou mais intenso, nomeadamente o da espiritualidade ou misticismo, estes transformam-se, nas palavras de Frithjof Schuon, em: verdade, via espiritual e virtude. O propósito de uma via espiritual é a assimilação ou realização de verdade divina – noutras palavras, conhecer e amar efectivamente Deus.

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O aspecto mais importante da religião é que ela não tem origem humana. A religião não é inventada pelo homem, mas revelada por Deus. Cada religião é uma revelação da Realidade Última. A revelação Divina é um aspecto sine qua non; sem ela não existe religião mas apenas uma ideologia de origem humana, na qual não existe qualquer garantia de verdade e, sobretudo, nenhum meio de sacramento ou de salvação.

O aspecto fundamental que se segue em termos de importância é a tradição. Depois de ser revelada, a religião é transmitida – inalterada na sua essência, mas frequentemente mais elaborada na sua expressão – de geração em geração, pelo poder da tradição. E finalmente, directamente ligada à tradição, surge o aspecto de ortodoxia, o qual é visto como um princípio da verdade, ou, na prática, como a preservação da pureza doutrinal.

Em resumo, os conteúdos essenciais que constituem uma religião são o dogma, a adoração e a moralidade; e a indispensável “estrutura” ou “receptáculo” da religião compreende revelação, tradição e ortodoxia.


ORTODOXIA

Actualmente, e com grande frequência, a ortodoxia é entendida como sendo simplesmente uma forma de intolerância: um grupo de pessoas impondo o seu ponto de vista a outros. Em relação a este aspecto é, no entanto, útil lembrar o primeiro ponto do “Caminho das Oito Vias” do Budismo: a “compreensão correcta” ou “pensamento correcto”. É óbvia a razão pela qual o “pensamento correcto” deve aparecer em primeiro lugar, pois, quer em termos lógicos, quer em termos práticos, antecede a “actuação correcta”. E qual é a palavra que significa “correcto pensamento”? Essa palavra é precisamente “ortodoxia” (com origem no Grego).

Para ser mais preciso: 2 + 2 = 4 é ortodoxia; 2 + 2 = 5 é inortodoxia. Bastante simples – mas funciona da mesma forma a níveis mais elevados. Uma outra forma de abordar a questão é a seguinte: mesmo nas actuais circunstâncias, muitas pessoas ainda preservam a noção de “pureza moral”, atribuindo-lhe elevada estima. A ortodoxia é a “pureza intelectual”, sendo esta um prelúdio essencial para a graça. Visto desta perspectiva – e longe de “impor pontos de vista a outros” – a ortodoxia não é mais do que uma referência para a primazia e prioridade da verdade. A ortodoxia é, na verdade, o princípio de verdade que existe nos mitos, símbolos e dogmas, os quais são a linguagem da revelação.

Tal como a moralidade, a ortodoxia pode ser universal (quando em conformidade com a verdade) ou específica (quando em conformidade com uma dada religião). Ela é universal quando afirma que Deus é incriado, absoluto ou infinito. É específica quando afirma que Jesus é Deus (Cristianismo), ou que Deus toma a forma tripartida de Brahmâ, Vishnu e Shiva (Hinduísmo).

A noção de ortodoxia é especialmente importante num mundo em que as grandes religiões se tornaram explicitamente conscientes da sua mútua existência, vivendo os seus aderentes em grande proximidade.


INTELECTO

Actualmente, em linguagem corrente, a palavra “intelecto” é usada descuidadamente como um sinónimo de “mente”. Os autores tradicionalistas, pelo contrário, seguindo a Escolástica Medieval, usam esta palavra com um significado diferente e especial; frequentemente recorrendo à utilização da forma com a letra inicial maiúscula. Esta palavra, Intelecto, é usada como sinónimo de “Espírito”. Qual é então o seu significado?

O Intelecto é a faculdade inata de conhecimento objectivo. Como exemplos imediatamente aparentes deste conhecimento embutido na substância humana podemos referir o sentido de lógica, a nossa capacidade para a aritmética, o nosso sentido de justiça e a nossa noção do certo e do errado. Estas faculdades, juntamente com aquilo que é designado por “consciência”, pertencem todas ao Intelecto.

As características do Intelecto são o seu carácter intuitivo, a sua objectividade e a sua supra-formalidade ou supra-individualidade. A operação do Intelecto é por vezes designada por “intuição intelectual” ou “intelecção”.

Toda a gente sabe que o homem é constituído por alma e corpo; mas na verdade o homem é um ternário: ele compreende Espírito (Intelecto), alma e corpo. Na Idade Média, este ternário era designado por Spiritus, anima, corpus. A alma é imortal, mas ao mesmo tempo é formal, individual e subjectiva. O Espírito ou Intelecto é imortal, simultaneamente supra-formal, universal e objectivo.

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Acima de tudo, o Intelecto é a faculdade que permite ao homem conceber o Absoluto e de conhecer a Verdade. É a fonte da sua capacidade para a objectividade, ou a sua habilidade – em oposição aos animais – para se libertar da prisão da subjectividade. É a própria definição do estado humano. Tal como Frithjof Schuon referiu várias vezes: “O Intelecto pode conhecer tudo o que é conhecível”. Isto deve-se ao facto do Conhecimento do Coração ou gnôsis ser inato e presente em nós num estado virtual. Esta virtualidade terá de ser realizada através de um processo que na doutrina Platónica corresponde ao “relembrar” (anamnesis), o qual, em última análise, é semelhante à prática Cristã de “relembrar Deus” (memoria Dei). “O reino dos Céus está em ti”.

Intelecto e Espírito são os dois lados da mesma moeda, o primeiro relacionado com o teórico e o doutrinal, o último relacionado com o prático e o realizável. Eles estão relacionados com os modos objectivo (ou discriminativo) e subjectivo (unitivo) de conhecer, respectivamente.

Os três elementos ou “níveis” na constituição humana podem ser resumidos da seguinte forma:


Foi referido como actualmente se confunde o “intelectual” com o “mental” ou o “racional”. De facto, ao contrário do Intelecto, o qual se encontra “acima” da alma, a mente ou a razão é um conteúdo da alma, tal como o são outras faculdades como a vontade, os afectos ou sentimentos, a imaginação e a memória.

O Espírito, apesar de “criado”, é supra-formal ou universal, e é directamente tocado pelo Divino. É o único elemento supra-individual, “arquétipo” ou objectivo da constituição humana. O Espírito é, desta forma, a “medida” da alma e nunca o oposto. O erro fundamental dos psicólogos, como por exemplo Jung, é a incapacidade para distinguir entre alma e Espírito, resultando consequentemente na sua abolição do último. De uma só vez é abolida a capacidade para a objectividade e, em consequência, para a espiritualidade. O caos e os danos resultantes deste fatal e anti-Platónico acto de cegueira são incalculáveis.

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É apropriado introduzir ainda algumas considerações sobre a Divindade. “Normalmente” em teologia fala-se de Deus e do homem. Por outro lado, em teologia mística, ou em metafísica universal – tal como evidenciado, por exemplo, por Shankara no Hinduísmo, por Mestre Eckhardt no Cristianismo, e Ibn ‘Arabi no Islão – é feita a distinção no seio da Divindade, entre “Deus” e “Divindade” [Godhead], entre “Criador” e “Essência Divina”, entre “Deus pessoal” e “Deus impessoal”, entre “Ser” e “Supra-Ser”.

A Divindade é absoluta, a criação é relativa. No entanto, existe no Absoluto (a Essência Divina) uma prefiguração do relativo, e esta é o Deus Pessoal ou Criador. Esta prefiguração da criação no “Incriado” é o “Logos Incriado”.

Adicionalmente, na criação, a qual é relativa, existe uma reflexão do Absoluto, o Espírito ou o Intelecto. Objectivamente, esta reflexão do Absoluto no relativo (ou do Incriado no criado) revela-se na Verdade, na Beleza, na Virtude, no Símbolo e no Sacramento. Manifesta-se ainda no Profeta, no Redentor, no Tathâgatha, no Avatâra. Esta reflexão do Absoluto no relativo é o “Logos criado”. Sem o Logos (com as suas duas “Faces”, criado e incriado), não seria possível qualquer contacto entre o homem e Deus. Sem o Logos, existiria um dualismo fundamental e não um “Não-dualismo” (Advaita). As espiritualidades ou misticismos de todas as grandes religiões ensinam que é através da união (pela oração e sacramento) com o “Logos criado” que o homem pode alcançar união com Deus.

Entendendo, no seio do homem, os três níveis Spiritus, anima e corpus, e entendendo, em Deus, os dois níveis Criador e Essência Divina, obtemos cinco níveis. Estes são designados por “Cinco Níveis da Realidade” ou “Cinco Presenças Divinas”, e podem ser representados da forma apresentada de seguida.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

William Stoddart

William Stoddart nasceu em 1925 na vila de Carstairs no Sul da Escócia. Os seus estudos iniciais foram sobretudo dedicados às línguas modernas, tendo estudado Francês, Alemão e Espanhol na Universidade de Glasgow. Ainda nesta Universidade acabou por mudar para medicina, tendo posteriormente frequentado as Universidades de Edimburgo e Dublin.

Com o decorrer da sua vida viria a entregar-se ao estudo das grandes tradições religiosas do mundo, em grande parte devido ao seu encontro com os trabalhos de Coomaraswamy, Guénon e Schuon, viajando extensivamente pela Europa, Norte de África, Turquia, Índia e Ceilão.

Foi autor de três livros: “Hinduism and its Spiritual Masters”, “Outline of Budhism” e “Sufism: The Mystical Doctrines and Methods of Islam”, tendo contribuído com diversos artigos para prestigiadas revistas da especialidade. Foi ainda editor assistente da publicação “Studies in Comparative Religion” durante vários anos. Os seus livros e ensaios são reconhecidos pela sua clareza e, em particular, pelo seu carácter “sintético”, ou melhor, “essencialista”.

Teve ainda um papel fundamental na tradução de numerosos livros, salientando-se as suas traduções das obras de Frithjof Schuon e Titus Burckhardt.


Publicações no “Sabedoria Perene”:

terça-feira, 13 de maio de 2008

Remembering in a World of Forgetting

De férias e em viagem pelo país onde a saudação nacional “namaste” significa literalmente “saúdo o divino dentro de ti”, o Nepal, decidi levar um livro que não exigisse grandes períodos de concentração, dado que a probabilidade deles existirem era muito reduzida. A escolha pendeu para um dos últimos livros publicados pela World Wisdom, um trabalho de edição elaborado por Mateus Soares de Azevedo e Alberto Vasconcellos Queiroz que reúne um conjunto de 19 curtos ensaios, 9 deles nunca antes publicados, escritos por uma das grandes vozes da Tradição e do Perenialismo, William Stoddart. Este autor é conhecido pela sua esplêndida capacidade de síntese e por ser um dos autores perenialistas com uma linguagem mais acessível, pelo que a escolha parecia ser acertada.

O livro, Remembering in a World of Forgetting – Thoughts on Tradition and Postmodernism, tal como refere um dos editores, Soares de Azevedo, confronta na sua globalidade o facto de que a verdade sobre Deus (o Absoluto), o homem (o relativo) e a salvação (ponte que o Absoluto abre ao relativo) foi totalmente esquecida, vivendo o mundo actual em “esquecimento”, sendo fundamental “relembrar”.

Aquilo que a nossa sociedade actual “esqueceu” e aquilo que é urgente que ela “relembre” são as respostas que Stoddart nos oferece ao longo dos seus ensaios, alertando-nos para a nossa responsabilidade para agir, sendo a primeira obrigação a de relembrar as verdades que se encontram inscritas nos nossos corações. Pois como diz uma antiga tradição Oriental: “Deus está mais próximo de nós que a nossa própria veia jugular”.

Esta obra encontra-se dividida em três partes. A primeira lida com o “esquecimento”, enquanto que as duas restantes com a teoria e a prática do “relembrar”:

I – Forgetting – DECLINE or what we have forgotten
1. Progress or the kali-Yuga?
2. Meaning behind the Absurd
3. Traditional and Modern Civilization
4. Ideologiacal Obstacles to the Spiritual Life
5. Religious and Ethnic Conflict
6. The Flaws of the Evolutionist Hypothesis
7. The Flaws of Democracy

II – Remembering (theory) – TRUTH or what we have to know
8. What is Religion?
9. What is Orthodoxy?
10. What is the Intelect?
11. Frithjof Schuon and the Perennialist School
12. The Masculine and the Feminine
13. The Role of Culture in Education

III – Remembering (practise) – SPIRITUALITY or what we have to do
14. What is Mysticism?
15. The Role of Obedience in Spirituality
16. Spirituality in Islam: Aspects of Islamic Esoterism
17. Spirituality in Christianity: A Visit to Mount Athos
18. Spirituality in Hinduism: A Visit to the Jagadguru
19. Spirituality in Budism: The Meaning of Tantra


A escolha revelou-se acertada pois foi possível encaixar os excelentes ensaios de Stoddart nos curtos tempos livres que surgiam, aliando a beleza das paisagens com a beleza das verdades expostas brilhantemente pelo autor. Aqui fica um exemplo dessa beleza e a promessa de publicar brevemente alguns trechos destes ensaios.