domingo, 14 de dezembro de 2008

A universalidade da arte sagrada

Aproveitámos, numa anterior publicação, a recente abordagem da arte neste espaço para apresentar um autor fundamental e ilustre perenialista que ainda não constava entre as grandes personalidades que temos vindo a introduzir e dar a conhecer através das suas obras. Trata-se de Titus Burckhardt, eminente metafísico e estudioso da arte tradicional, cuja importância se deve equiparar à de Guénon, Coomaraswamy e Schuon.

Apresentado o autor, publica-se agora uma tradução de um ensaio seu, A Universalidade da Arte Sagrada, publicado inicialmente na sua obra, Sacred Art in East and West, e republicado na obra a si dedicada, The Essential Titus Burckhardt, editada por William Stoddart e publicada pela World Wisdom em 2003.

Neste ensaio, Burckhardt, não só nos oferece uma clara exposição de como deve ser entendida a arte sagrada, como, através de uma demonstração da sua erudição, viaja a diferentes mundos tradicionais para nos mostrar como esta arte se manifesta em formas muito distintas, mantendo, ao mesmo tempo, a sua “Essência Divina”.


Quando os historiadores de arte aplicam o termo “sagrado” a todas as obras que tenham um tema religioso, escapa-lhes o facto da arte ser essencialmente forma. Uma arte não pode ser considerada sagrada pelo simples facto dos seus temas derivarem de verdades espirituais; a sua linguagem formal deve também derivar da mesma fonte.

Este não é, de forma alguma, o que ocorre em artes religiosas tais como a dos períodos da Renascença e do Barroco, as quais, no que respeita ao estilo, em nada diferem da arte fundamentalmente profana desses períodos; nem os seus temas, que retiram da religião de uma forma totalmente exterior e literária, nem os seus sentimentos devocionais com que é muitas vezes permeada, nem mesmo a nobreza da alma que ocasionalmente aí encontra a sua expressão, são suficientes para lhe conferir um carácter verdadeiramente sagrado. Nenhuma arte merece o epíteto de sagrada a não ser que as suas próprias formas reflictam a visão espiritual característica de uma determinada religião.

Toda a forma “transporta” uma qualidade particular do ser. O tema religioso de uma obra de arte pode estar meramente sobreposto a uma forma, caso em que lhe faltará toda a relação com a “linguagem” formal da obra, como é demonstrado pela arte Cristã desde a Renascença. Tais produções são meras obras de arte profanas com temas religiosos. Por outro lado, não existe arte sagrada que seja profana na sua forma, pois existe uma rigorosa analogia entre a forma e o espírito. Uma visão espiritual encontra necessariamente a sua expressão numa dada linguagem formal. Se esta linguagem foi esquecida – com o resultado que uma, assim designada, arte sagrada retira as suas formas a partir de todo o tipo de arte profana – significa que uma visão espiritual das coisas não mais existe.

Seria infrutífero procurar desculpar o estilo proteiforme de uma arte religiosa, ou o seu carácter impreciso e mal definido, com base na universalidade do dogma ou da liberdade do espírito. Apesar de reconhecido que a espiritualidade em si é independente da forma, isto não implica que possa ser expressa e transmitida por qualquer tipo de forma. Através da sua essência qualitativa, a forma tem um lugar na ordem sensorial análogo ao da verdade na ordem intelectual; esta é a importância da noção Grega eidos. Do mesmo modo que uma forma mental, tal como um dogma ou uma doutrina, pode ser uma reflexão adequada, apesar de limitada, de uma Verdade Divina, também uma forma sensorial pode restaurar uma verdade ou uma realidade que transcende os planos das formas sensoriais e do pensamento.

Cada arte sagrada é, assim, fundada numa ciência de formas ou, por outras palavras, no simbolismo inerente às formas. Deverá ser mantido em mente que um símbolo sagrado não é apenas um sinal convencional; ele manifesta o seu arquétipo em virtude de uma determinada lei ontológica. Como observou Ananda Coomaraswamy, um símbolo sagrado é, num certo sentido, aquilo que expressa. Por esta razão, o simbolismo tradicional nunca é desprovido de beleza. Em relação a uma visão espiritual do mundo, a beleza de um objecto não é mais do que a transparência das suas limitações existenciais.

Uma arte digna desse nome é bela porque é verdadeira. Não é possível nem necessário que cada artista ou artesão envolvido na arte sagrada seja consciente da Lei Divina inerente às formas; ele saberá apenas alguns dos seus aspectos, ou certas aplicações que surgem a partir dos limites e regras do seu ofício. Estas regras irão permitir pintar um ícone, moldar um vaso sagrado, ou praticar caligrafia de uma forma liturgicamente válida, sem ser necessário que ele conheça o significado último dos símbolos com que trabalha. É a tradição que transmite os modelos sagrados e as regras de trabalho e, dessa forma, garante a validade espiritual das formas. A tradição possui um poder secreto que é comunicado a uma civilização e que determina mesmo aquelas artes e ofícios cujos objectivos imediatos não incluem nada de sagrado. Este poder cria o estilo de uma civilização tradicional. Um estilo – algo que não pode ser limitado a partir do exterior – é perpetuado sem dificuldade, de uma forma quase orgânica, apenas pelo poder do espírito que qual é animado.

Um dos mais tenazes preconceitos modernos é aquele que se opõe às regras impessoais e objectivas de uma arte, resultante do receio de reprimir o génio criativo. Na realidade, não existe qualquer obra tradicional – uma governada por princípios imutáveis – que não consagre uma significante expressão de alegria criativa na alma; o individualismo moderno, por outro lado, produziu, à excepção de algumas obras de génio apesar de espiritualmente estéreis, toda a fealdade – a infindável e desesperada fealdade – das formas que preenchem a “vida quotidiana” dos nossos tempos.

Uma das condições fundamentais para a felicidade é saber que tudo o que fazemos tem um significado eterno; mas quem, nos tempos actuais, pode ainda conceber uma civilização em que todos os seus aspectos vitais se encontram desenvolvidos “à imagem dos Céus”? Numa sociedade teocêntrica, a mais humilde actividade participava nesta graça celestial.

O objectivo último da arte sagrada não é evocar sentimentos ou comunicar impressões; ela é um símbolo e, como tal, utiliza meios simples e primordiais. Não pode, em caso algum, ser mais do que alusiva, o seu real objectivo inefável. É de origem angélica, pois os seus modelos reflectem realidades supra-formais. Ao recapitular a criação – a “arte Divina” – em parábolas, demonstra a natureza simbólica do mundo e liberta o espírito humano do seu apego a crus e efémeros “factos”.

A origem angélica da arte é explicitamente formulada pela tradição Hindu. De acordo com o Aitareya Brâhmana, toda a obra de arte é alcançada pela imitação da arte dos devas, “seja um elefante em terracota, um objecto de bronze, uma peça de vestuário, um ornamento de ouro, ou uma carroça”. As lendas Cristãs que atribuem uma origem angélica a certas imagens milagrosas exemplificam a mesma ideia.

Os devas não são mais do que as funções particulares do Espírito Universal, expressões permanentes da Vontade de Deus. De acordo com uma doutrina comum a todas as civilizações tradicionais, a arte sagrada deve imitar a Arte Divina, mas deve ser claramente compreendido que tal não implica que a criação Divina concluída, o mundo tal como o vemos, deva ser copiado, pois tal seria pura pretensão. Um “naturalismo” literal é estranho à arte sagrada. O que deve ser copiado é a forma como o Espírito Divino actua. As suas leis devem ser transpostas para o domínio restrito em que o homem trabalha como homem, ou seja, no seu ofício.

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Em nenhuma doutrina tradicional a ideia de Arte Divina goza de um papel tão fundamental como na doutrina Hindu. Pois Mâyâ é, não só o misterioso Poder Divino que faz com que o mundo pareça existir exteriormente à Realidade Divina e, como tal, sendo a origem de toda a dualidade e ilusão; como também é, no seu aspecto positivo, a Arte Divina que produz todas as formas. Por princípio, Mâyâ não é mais do que a possibilidade do Infinito em Se limitar e, assim, se tornar objecto da Sua própria “visão”, sem que a Sua infinidade não seja, por essa razão, limitada. Desta forma, Deus manifesta-Se, e não Se manifesta no mundo. Ele, em simultâneo, expressa-Se e mantém-Se silencioso.

Tal como, em virtude da sua Mâyâ, o Absoluto objectiva certos aspectos de Si próprio, ou certas possibilidades contidas em Si, e as determina por uma distinta visão, também o artista na sua obra realiza certos aspectos de si próprio. Ele projecta-os para além do seu ser indiferenciado. E, na medida em que a sua objectivação reflicta as profundezas do seu ser, tomará um carácter puramente simbólico, ao mesmo tempo que o artista se tornará cada vez mais consciente do abismo que separa a forma, reflectora da sua essência, daquilo que aquela essência realmente é na sua intemporal plenitude. O artista tradicional sabe: esta forma sou eu, no entanto, eu sou infinitamente mais do que isto, pois a sua Essência mantêm-se o puro Conhecedor, a Testemunha que nenhuma forma pode alcançar; mas ele sabe que é Deus que é expresso através da sua obra, para que a obra transcenda, por sua vez, o fraco e frágil ego do homem.

Aqui reside a analogia entre a Arte Divina e a arte humana: nomeadamente na realização do eu através da objectivação. Para que esta objectivação tenha significado espiritual, e não apenas por uma vaga introversão, os seus meios de expressão devem nascer de uma visão essencial. Por outras palavras, não deverá ser o “ego”, a raiz de toda a ilusão ignorância do eu, que arbitrariamente escolhe esses meios; eles devem ser derivados a partir da tradição, da formal e “objectiva” revelação do Ser Supremo, que é o “Si” de todos os seres.

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Da mesma forma, do ponto de vista Cristão, Deus é “artista” no mais exalto sentido da palavra, pois Ele criou o homem “à Sua própria imagem” (Géneses: 1,27). Para além do mais, uma vez que a imagem compreende não só a semelhança ao seu modelo, mas também uma quase absoluta dissemelhança, não pode não ser corrompido. A reflexão divina no homem foi perturbada pela queda de Adão; o espelho foi manchado; e, ainda assim, o homem não pode ser completamente posto de lado; pois enquanto a criatura é sujeita às suas próprias limitações, a Plenitude Divina não é sujeita a qualquer tipo de limitação. Isto implica que essas limitações não podem, na realidade, ser opostas à Plenitude Divina, a qual Se manifesta como Amor ilimitável, característica que requer que Deus, “pronuciando-Se” como Palavra Eterna, tenha que descer a este mundo e, dessa forma, assumir os contornos perecíveis da imagem – natureza humana – e, assim, restaurar-lhe a sua beleza original. No Cristianismo, a imagem divina par excellence é a forma humana de Cristo. A arte Cristã tem, assim, um único propósito: a transfiguração do homem, e do mundo que depende do homem, pela sua participação em Cristo.

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Aquilo que a visão Cristã das coisas alcança através de uma espécie de venerada concentração na Palavra incarnada em Jesus Cristo, é transposta, na perspectiva Islâmica, no universal e no impessoal. No Islão, a Arte Divina – e de acordo com o Corão, Deus é “artista” (musawwir) – é, em primeiro lugar, a manifestação da Unidade Divina na beleza e na regularidade do cosmos. A Unidade é reflectida na harmonia do múltiplo, na ordem e no equilíbrio; a beleza encerra em si todos esses aspectos.

Atingir a Unidade a partir da beleza do mundo – isto é sabedoria. Por esta razão, o pensamento Islâmico liga, necessariamente, a arte à sabedoria; aos olhos de um Muçulmano, a arte é essencialmente fundada na sabedoria, ou “ciência”, ciência esta que não é mais do que a formulação da sabedoria em termos temporais. O propósito da arte é permitir ao ambiente humano – o mundo na medida em que se encontra moldado pelo homem – a participação na ordem que de forma mais directa manifesta a Unidade Divina. A arte esclarece o mundo; ajuda o espírito a se desprender da perturbante multiplicidade de coisas, para que possa ascender em direcção á Unidade Divina.

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Transpondo a noção de “Arte Divina” para o Budismo – que evita a personificação do Absoluto – ela aplica-se à miraculosa, e mentalmente inexaurível, beleza de Buddha.


Enquanto que nenhuma doutrina interessada a Deus pode escapar, na sua formulação, ao carácter ilusório dos processos mentais, o que atribui os seus próprios limites ao ilimitado e as suas próprias formas conjecturais ao informe, a beleza de Buddha irradia um estado de ser que não é limitado por qualquer processo mental. Esta beleza é reflectida na beleza do Lotus; é perpetuado ritualmente na imagem pintada ou esculpida de Buddha.

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De acordo com o ponto de vista Taoista, ser uma Arte Divina é essencialmente ser a arte de transformação: toda a natureza está constantemente a ser transformada, sempre de acordo com as leis dos seus ciclos; os seus contrastes giram em torno de um único centro que ilude a apreensão.

No entanto, quem perceber este movimento circular é capaz de reconhecer o centro que constitui a sua essência. O propósito da arte é conformar-se a este ritmo cósmico. A mais simples fórmula que atesta a mestria na arte consiste na capacidade para traçar um círculo perfeito num única pincelada e, desta forma, identificar-se implicitamente com o seu centro, sem que o próprio centro esteja explicitamente expresso.

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Todos estes aspectos fundamentais da arte sagrada estão presentes, de uma forma ou de outra, em cada uma das cinco grandes religiões mencionadas, pois cada uma possui em essência a totalidade da Verdade e Graça Divina, para que cada uma seja capaz de, em princípio, manifestar todas as possíveis formas de espiritualidade. No entanto, uma vez que cada religião é necessariamente dominada por um ponto de vista particular que determina a sua “economia” espiritual, as suas obras de arte – que são necessariamente colectivas e não individuais – irão reflectir, de acordo com o seu estilo, este ponto de vista e esta “economia” espiritual.

Adicionalmente, a forma, pela sua própria natureza, é incapaz de exprimir uma coisa sem excluir outra, porque a forma limita o que expressa e, assim, exclui outras possibilidades de expressão do seu próprio arquétipo universal. Esta lei aplica-se naturalmente a todos os níveos de manifestação formal, e não apenas à arte; assim, as várias Revelações Divinas, nas quais as religiões são fundadas, são também mutuamente exclusivas quando consideradas em termos dos seus contornos formais, mas não na sua Essência Divina, que é uma. Aqui, mais uma vez, a analogia entre a “Arte Divina” e a arte humana é evidente.

Não existe qualquer arte sagrada que não dependa de um aspecto de metafísica. A ciência da metafísica é, ela própria, ilimitada, dado que o seu objecto é infinito. Como não é possível descrever aqui todos os relacionamentos que ligam as diferentes doutrinas metafísicas neste domínio, o leitor é remetido para outros livros que apresentam as premissas nas quais este ensaio é baseado. Eles cumprem essa tarefa através da exposição, numa linguagem acessível ao leitor ocidental moderno, a essência das doutrinas tradicionais do Oriente e do Ocidente Medieval. Referimo-nos em particular aos escritos de René Guénon e Frithjof Schuon.

Breves considerações sobre a sílaba sagrada Om

A presente publicação resulta de um curto trabalho de investigação pelas obras que vão compondo a minha biblioteca pessoal e que surgiu em resultado de um trabalho que a minha esposa desenvolveu na sua recente aventura de aprofundar conhecimentos para a prática de Yôga, no qual acabei por dar o meu contributo.

Trata-se de um breve estudo sobre a monossílaba sagrada do Hinduísmo, Om, e que julgo ter interesse para os leitores do Sabedoria Perene. Neste trabalho destaco, para além da óbvia alusão e recurso a René Guénon, a referência à importante e recomendada transcriação do Bhagavad Guitá de António Barahona, com notas e um excelente glossário que segue claramente os ensinamentos de Guénon; e a referência à monumental obra de Alain Daniélou, autor fundamental para o estudo do Hinduísmo. Aproveito para deixar aqui um profundo agradecimento a um leitor deste blog que foi um grande incentivo para a sua descoberta.

Fica então o texto e a esperança de que elucide um pouco do que representa o mais sagrado som, Om.



Comentar a mais sagrada sílaba do Hinduísmo pode conduzir a uma viagem sem retorno, a um programa completo de vida, pois é como se nela coubesse todo o cosmos.

Será talvez adequado começar esta breve incursão no seu estudo pela análise da importância basilar que esta tem no Hinduísmo como origem da própria “religião” (mais propriamente, Sanātana Dharma). Para tal vamos recorrer às palavras de alguém totalmente habilitado para o efeito, o Jagadguru, HH Sri Chandrasekharendra Saraswathi Swamigal.

Diz-nos este mestre que sendo o Hinduísmo uma religião com origens primordiais, levanta-se a questão sobre a sua origem, uma vez que, apesar de esta ser frequentemente atribuída a Vyassa (autor do Brahmasutra) ou a Krishna (autor do Bhagavad-Guitá), ambos afirmam que os Vedas já existiam. Os próprios risis, através dos quais nos chegaram os mantras, declaravam: “Não criámos os Vedas”; “É verdade que os mantras se manifestaram ao mundo através de nós. Por essa razão os designamos por ‘mantras-risis’.” Continua o Jagadguru que todos os sons tem origem no espaço, e a partir deles surgiu a criação. Assim, os Vedas são apaurusēya (não o trabalho de qualquer autor humano), são o próprio sopro do Paramātman na sua forma como espaço.

Será este conceito que devemos ter presente quando vemos na “literatura” Hindu a sílaba Om identificada com a Realidade Suprema. Om é, assim, a vibração primordial, a essência de tudo o que existe, sol, lua e estrelas. É o Brahma em forma de som, o poder vital que mantém todas as coisas ligadas.

Mudemos agora para questões mais “técnicas” e para tal vamos recorrer ao excelente glossário de António Barahona que consta da última edição da sua autorizada transcrição da Bhagavad-Guitá, da qual foram retiradas as seguintes considerações relativas à sílaba Om.

Esta sílaba (akxara, etimologicamente significando indissolúvel ou indestrutível) constitui a unidade primordial e o elemento fundamental da linguagem. Refere Barahona que qualquer raiz verbal, em sânscrito, é sempre silábica, denominada dhatu, semente, porque mediante as suas possibilidades múltiplas e o seu desenvolvimento origina o discurso. O monossílabo sagrado Om, composto de três sons (A, U e M) simboliza todas as trindades divinas, como, por exemplo, a trimurti: A representa o Criador (Brahmá); U o Conservador (Vixnu); M o Destruidor e Regenerador (Shiva). E Om simboliza também, tal como já referimos atrás, Brahma realizado, o Verbo divino sob forma audível.

Semente da linguagem, Om é o mantra que condensa todos os mantras e a sabedoria total. Lê-se na Tchhandôguya-Upanixad: “A essência de todos os seres é a terra, a essência da água a vegetação, a essência do homem a palavra, a essência da palavra o Rig-Vêda, a essência do Rig-Vêda o Sama-Vêda e a essência do Sama-Vêda a Udguitá, que é AUM.”

Continuemos com Barahona. O som da letra A parte do fundo da cavidade bocal e é gutural, o U pronuncia-se desde a base da placa de ressonância da boca até á sua extremidade, e M, o último som da série labial, produz-se com os lábios unidos. Os sons unidos de A e de U unem-se no de O, e este perde-se na ressonância nasal, final, de M (bindu, «a gota») sem, no entanto, se extinguir, mas prolongando-se indefinidamente, indistinto e imperceptível.

Para deixarmos este autor, terminamos com a sua referência a Om como símbolo ideográfico de Átma, transcrevendo a sua tradução da Mandukya-Upanixad onde lemos: “Este Átma é representado pela sílaba Om, que, por sua vez, é representada por caracteres (matra) de maneira a que as condições de Átma são os caracteres de Om, e, inversamente, os caracteres de Om são as condições de Átma.” Voltaremos a esta Upanixad antes de terminarmos, onde este assunto irá ser aprofundado.

O próximo passo no nosso passeio pela imensidão desta monossílaba sagrada terá de ser a abordagem dos mantras, ‘formas de pensamento’. Para tal, voltamo-nos para outra autoridade do estudo do Hinduísmo, Alain Daniélou, e para a sua obra “The Myths and Gods of Índia”, da qual foram extraídas as próximas considerações.

Manu, o Dispensador da Lei, é referido como tendo sido o primeiro ser a perceber as ‘formas de pensamento’ dos objectos e de as ter ensinado e explicado ao homem, nomeadamente as suas relações com os objectos, criando a primeira linguagem.

As ‘formas de pensamento’ são entendidas como sendo as formas ou corpos subtis das coisas, e são fórmulas permanentes e indestrutíveis das quais as impermanentes formas físicas podem sempre ser derivadas. A linguagem que Manu ensinou foi a linguagem primordial, a eterna e verdadeira linguagem criada a partir de palavras-raiz (monossílabas elementares com significado).

A esta linguagem original e verdadeira pertencem as pronunciações sagradas usadas na adoração e designadas de mantras. A palavra mantra significa ‘forma de pensamento’, e é através do seu conhecimento interno que podemos compreender a natureza daquilo que representa.

Como padrões abstractos a partir dos quais a natureza é derivada, os mantras são, de certa forma, idênticos às divindades. Eles representam a natureza das divindades e são delas inseparáveis. O poder da divindade é inerente ao seu nome, à sua fórmula, ao seu mantra, o qual se torna no veículo subtil através do qual se podem estabelecer contactos entre a divindade e o devoto. Os mantras são, assim, a chave de todos os rituais em todas as religiões e são, da mesma forma, usados na maior parte das formas de magia.

Cada divindade é representada por um mantra distinto e é apenas através destes misteriosos sons que as imagens podem ser consagradas e tornadas “vivas”. É o poder do mantra que faz descer a divindade e a faz penetrar a imagem.

Existe uma classe especial de mantras, denominadas por ‘mantras-semente’, que são constituídas por monossílabas e que representam a complexa natureza das energias elementares ou das divindades. Estas poderosas monossílabas são as raízes do poder do discurso e produzem ecos em todos os aspectos da manifestação. Acredita-se que a linguagem primordial tenha sido produzida a partir destas onomatopeias e que foi essencialmente monossilábica. As sílabas que expressam as forças elementares da Natureza (Prákriti) são os verdadeiros nomes das divindades e das suas imagens. Os deuses estão obrigados a responder a estes sons.

Chegamos assim, seguindo os passos de Daniélou e nos quais vamos continuar, à mais importante das principais ‘formas de pensamento’ ou ‘mantras-semente’, a Semente da Imensidão (brahma-bīja) ou ‘forma de pensamento’ do Conhecimento da Imensidão (brahma-vidya mantra), cujo som é AUM (Om).

O significado, na linguagem primordial, é “eu curvo-me,” “eu concordo,” ou “eu aceito”. Na Chāndogya-Upanixad lemos: “Na verdade, esta sílaba é acordo: pois sempre que um homem concorda com algo ele diz simplesmente, ‘AUM.’ Isto, de facto, é uma compreensão; isto é, um concordar.”

Este mantra também é designado por “aquele que conduz à outra margem”. É considerado a origem de todos os mantras. É usado no princípio de todos os rituais e a sua principal função é conduzir à realização, à libertação da prisão, à obtenção da Realidade Suprema.

Como símbolo da Divindade, AUM surge como a forma a partir da qual o universo se desenvolve. Desta forma, as três letras têm equivalentes em todas as formas de manifestação. Várias são as equivalências atribuídas a cada uma das três letras da monossílaba e a combinações entre elas. No quadro seguinte, extraído da obra de Daniélou que nos vem iluminando o caminho, resumem-se algumas dessas equivalências.



A estas podemos adicionar que A e U juntos significam “verdade” e “imortalidade”, e que, tal como já referido anteriormente, AUM representa o Ser Uno que permeia o espaço, o tempo e as formas.

Seguindo na análise desta sílaba, podemos ainda aprofundar mais recorrendo às Upanixades onde são distinguidas as oito componentes que a constituem. Na Tāra Upanixad é referido que “A é o primeiro, U é o segundo, M é o terceiro. A nasalização (bindu) é o quarto; o som (nāda) é o quinto; a duração (kāla) é o sexto; a ressonância no tempo (kālātita) é o sétimo. A estes adiciona-se o oitavo, a sua ressonância intemporal.”

Despedimo-nos de Daniélou e seguimos com Arvind Sharma, outro académico de renome, para abordarmos uma componente mais operativa da sílaba sagrada Om. Aqui vamos focar a sua importância na espiritualidade Hindu, mas propriamente para o dárshana do Advaita Vedānta.

A premissa base do Advaita Vedānta consiste em afirmar que a experiência da nossa vida do dia a dia não esgota a realidade, e que essa dimensão em falta pode ser tornada acessível através da prática espiritual. É precisamente nesta prática espiritual que se recorre à sílaba sagrada Om.

No Advaita Vedānta, o aspecto tripartido do som AUM é usado para representar os três estados de consciência:

A Vigília
U Sonho
M Sono profundo

A estas três componentes da sílaba sagrada o Advaita Vedānta adiciona uma quarta que simboliza o quarto estado de consciência, aquele que está para além dos estados que podemos experienciar ao longo da nossa vida do dia a dia, e que serve um propósito espiritual. Este quarto estado é representado pelo silêncio que se segue à pronunciação do AUM. Assim temos:

A Vigília
U Sonho
M Sono profundo
Silêncio Quarto estado

Mas como é que esta sílaba se torna, assim, operativa. Muito resumidamente, a repetição do som AUM em forma de mantra e em meditação permitirá atingir um estado de concentração em que o som AUM absorve ou elimina todos os pensamentos, a mente fica idêntica ao som AUM. Isto significaria, em princípio, que quando o som AUM cantado na mente subsiste, todos os pensamentos deveriam cessar e o som AUM desaparecer. O silêncio resultante representaria a realização do quarto estado.

Esta é a teoria, na prática atingir tal concentração é extremamente difícil para o comum dos mortais. Aqui entra em prática a quarta componente do AUM, o silêncio, podendo definir-se o objectivo final da meditação como o aumento e aprofundamento do silêncio entre dois pensamentos consequentes em AUM. Esta é a fissura no universo que nos abre para o Supremo.

O Om é, assim, o mais importante de todos os mantras, designado por mahat mantra, em cuja meditação pode abrir, efectivamente, as portas para se alcançar o samadhi.

Estas considerações são confirmadas pelas escrituras. Na Atharva-Shikhâ Upanixad é referido que se deve meditar na sílaba Om, símbolo do Supremo Absoluto (Brahma), onde é também feita referência para as suas quatro partes. Na Amrita-Bindu Upanixad é referido que só a parte silenciosa do som M leva ao inaudível, à morada invisível, à realidade última.

Na Amrita-Nâda-Upanixad é recomendado montar a “quadriga do som Om”, tornar Vixnu nosso cocheiro e partir calmamente em direcção à Realidade Última. À medida que nos aproximamos do Si Supremo, devemos abandonar a quadriga e entrar no esplendor do Si por meio da insondável letra M. Esta é a silenciosa e subtil parte de Om.

Para concluir estas considerações sobre a sílaba sagrada Om e já que estamos em plenas considerações metafísicas, nada mais ajustado do que terminar com a lição de René Guénon sobre “As representações simbólicas de Ātmā e as suas condições pela monossílaba sagrada Om”, patentes na sua tradução e comentários (entre parênteses rectos) de um trecho da Mandukya Upanixad relacionado com a correspondência da monossílaba sagrada Om e os seus elementos (mātrās) com o Ātma e as suas condições (pādas), onde é explicado, por um lado, as razões simbólicas para esta correspondência e, por outro, os efeitos da meditação no símbolo e no que representa, ou seja, no Om e no Ātma, o primeiro desempenhando o papel de ‘suporte’ para a obtenção do conhecimento do último.


Este Ātma é representado pela [suprema] sílaba Om, a qual é representada, por seu lado, por letras [mātrās], [de tal forma que] as condições [de Ātma] são as mātrās [de Om], e (reciprocamente) os mātrās [de Om] são as condições [de Ātma]: estas são A, U e M.

Vaishvānara, cujo assento é o estado de vigília, é [representado por] A, a primeira mātrā, porque é a ligação [āpti, de todos os sons, o som primordial A, pronunciado pelos órgãos da fala na sua posição normal, sendo imanentes em todos os outros, os quais são várias modificações deste e que são nele unificadas, tal como Vaishvānara está presente em todas as coisas no mundo sensível e estabelece a sua unidade], e também porque é o princípio [āpi, quer do alfabeto quer da monossílaba Om, tal como Vaishvānara é a primeira das condições de Ātma e a base a partir da qual a realização metafísica, para o ser humano, pode ser alcançada].

Aquele que sabe isto obtém verdadeiramente [a realização de] todos os seus desejos [uma vez que, através da sua identificação com Vaishvānara, todos os objectos sensíveis se tornam dependentes dele e formam uma parte integrante do seu próprio ser], e torna-se o primeiro [no reino de Vaishvānara ou de Virāj, do qual ele se faz o centro em virtude desse mesmo conhecimento e da identificação que implica quando totalmente efectivo].

Taijasa, cujo assento é o estado de sonho, é [representado por] U, a segunda mātrā, porque é a elevação [utkarsha, do som da sua primeira modalidade, tal como o estado subtil é, na manifestação formal, de uma ordem mais elevada do que o estado grosseiro] e também porque participa em ambos [ubhaya, isto é, semelhante pela sua natureza e posição, é intermediário entre os dois elementos extremos da monossílaba Om, tal como o estado de sonho é intermediário, sandhyā, entre o estado de vigília e o estado de sono profundo]. Aquele que sabe isto verdadeiramente prossegue no caminho do Conhecimento [pela sua identificação com Hiranyagarbha] e [sendo assim iluminado] ele está em harmonia [samāna, com todas as coisas, pois ele vê o Universo manifestado como o produto do seu próprio conhecimento, que não pode dele ser separado], e nenhum dos seus descendentes [no sentido de posterioridade espiritual] será ignorante de Brahma.

Prājña, cujo assento é o estado de sono profundo, é [representado por] M, a terceira mātrā, porque é a medida [miti, das duas outras mātrās, tal como numa razão matemática o denominador é a medida do numerador], tal como porque é o fim [da monossílaba Om, considerado como contendo a síntese de todos os sons, da mesma forma que o não manifestado contém, sinteticamente e por principio, o todo da manifestação com os seus diversos modos possíveis: o último pode ser considerado como que em retorno ao não manifestado, do qual nunca se distinguiu excepto de uma forma contingente e transitória: a primeira causa é ao mesmo tempo a última causa, e o fim é necessariamente idêntico ao principio]. Aquele que sabe isto é na verdade a medida do todo [isto é, o agregado dos ‘três mundos’ ou dos diferentes níveis de Existência universal, do qual o puro Ser é o ‘determinante’], e ele torna-se o termo final [de todas as coisas, por concentração no seu próprio ‘Si’ ou personalidade, onde todos os estados de manifestação do seu ser são redescobertos, ‘transformados’ em possibilidades permanentes].

O Quarto é ‘não-caracterizado’ [amātra, incondicionado, por essa razão]: é ‘sem-acção’ [avyavahārya], sem qualquer traço de desenvolvimento de manifestação [prapancha-upashama], abundando em Beatitude e sem dualidade [Shiva Advaita]: isto é Omkāra [a monossílaba sagrada considerada independentemente das suas mātrās], que é seguramente Ātma [em Si próprio exterior e independente de qualquer condição ou determinação, mesmo da determinação principal que é o próprio Ser]. Aquele que sabe isto entra verdadeiramente no seu próprio ‘Si’ por meio do mesmo ‘Si’ [sem intermediários de qualquer ordem, sem o uso de qualquer instrumento, tal como a faculdade do conhecimento, a qual apenas pode atingir um estado de ‘Si’ e não de Paramātmā, o supremo e absoluto ‘Si’].


Conclui Guénon que em relação aos efeitos a obter por meio de meditação na monossílaba sagrada, em cada uma das três mātrās de início, e depois na própria monossílaba, cada um dos efeitos corresponde à realização de diferentes níveis espirituais: o primeiro o total desenvolvimento da corporalidade individual; o segundo a extensão integral da individualidade humana nas suas modalidades extra-corporais; o terceiro a obtenção dos estados supra-individuais do ser: e finalmente, o quarto é a realização da “Suprema Identidade”.


Miguel Conceição & Noémia Silva

Dezembro de 2008

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BIBLIOGRAFIA:

Jagadguru HH Sri Chandrasekharendra Saraswathi Swamigal, Sankaracharya of Kanchi, editado por Michael Fitzgerald, Introduction to Hindu Dharma, World Wisdom Inc., Bloomington, Indiana, 2008.
António Barahona (transcriação, introdução, notas e glossário), Vyassa – Poema do Senhor – Bhagavad-Guitá, Assírio & Alvim, 2ª edição revista, 2007 .
Karen Armstrong, The Great Transformation – The World in the Time of Buddha, Socrates, Confucius and Jeremiah, Atlantic Books, London, 2007.
Alain Daniélou, The Myths and Gods of India – The Classic Work on Hindu Polytheism, Inner Traditions International, Rochester, Vermont, 1991.
Arvind Sharma, A Guide to Hindu Spirituality, World Wisdom Inc., Bloomington, Indiana, 2006.
René Guénon, Man & His Becoming According to the Vedānta, Sophia Perennis, Hillsdale NY, 2001.

Titus Burckhardt

Titus Burckhardt, um Germano-Suiço, nasceu em Florença em 1908 e morreu em Lausanne em 1984. Dedicou toda a sua vida ao estudo e à exposição dos diferentes aspectos da Sabedoria e da Tradição. Na era da ciência moderna e da tecnocracia, Titus Burckhardt foi um dos mais admiráveis dos expositores da verdade universal, quer no âmbito da metafísica, quer no da cosmologia e arte tradicional. Num mundo de existencialismo, psicanálise e sociologia, ele foi uma das grandes vozes da philosophia perennis, essa “sabedoria incriada” expressa no Platonismo, no Vedanta, no Sufismo, no Taoísmo, e em todos os outros verdadeiros ensinamentos esotéricos.

Apesar de nascido em Florença, Burckhardt era descendente de uma família patrícia de Basileia. Ele era filho do escultor Carl Burckhardt, sobrinho do famoso historiador de arte Jacob Burckhardt. Titus Burckhardt conheceu Frithjof Schuon em Basileia durante a sua infância, altura em que iniciaram uma profunda e harmoniosa amizade intelectual e espiritual, a qual perdurou ao longo das suas vidas. A grandiosidade da exposição metafísica de Burckhardt complementava maravilhosamente o trabalho de Schuon.

Burckhardt dedicou grande parte dos seus textos à cosmologia tradicional. Relacionado com este interesse na metafísica, Burckhardt tinha uma particular afinidade com a arte tradicional e o artesanato, demonstrando uma grande perícia para a avaliação da arquitectura tradicional, iconografia, e outras artes e ofícios. Em particular, ele analisou a forma como elas foram – e podem ser – usadas de forma espiritual, quer como importantes actividades em virtude do seu simbolismo inerente conter uma mensagem doutrinal, quer, acima de tudo, como suporte para a realização espiritual e meio para a graça. Ars sine scientiâ nihil. Aqui falamos de scientia sacra e ars sacra, dois lados da mesma moeda.

Durante os anos cinquenta e sessenta Burckhardt foi o director artístico da Urs Graf Publishing House de Lausanne e Olten. A sua actividade principal durante estes anos foi a produção e publicação de uma série de fac-similes de manuscritos medievais, especialmente antigos manuscritos Celtas dos Evangelhos, tal como o “Book of Kells” e o “Book of Durrow” (do Trinity College, Dublin) e o “Book of Lindisfarne” (da British Library, London). Este foi um trabalho pioneiro da mais alta qualidade e uma realização editorial que imediatamente recebeu grandes ovações de peritos e do público em geral.

Durante os seus anos em Marrocos, Burckhardt imergiu na língua Árabe e assimilou os principais clássicos do Sufismo na sua forma original. Mais tarde, viria a partilhar estes tesouros através das suas traduções de Ibn ‘Arabî e Jîlî. Um dos seus trabalhos mais importantes foi a tradução das cartas espirituais de Mulay al-‘Arabî ad-Darqâwî, um importante Shaikh Marroquino do séc. XVIII.


Bibliografia:
Livros em Alemão:

Land am Rande der Zeit. Basel: Urs Graf Verlag, 1941.
Schweizer Volkskunst/Art Populaire Suisse. Basel: Urs Graf Verlag, 1941.
Tessin (Das Volkserbe der Schweiz, Band I). Basel: Urs Graf Verlag, 1943.
Vom Sufitum–Einführung in die Mystik des Islams. Munich: Otto Wilhelm Barth-Verlag, 1953.
Vom Wessen heiliger Kunst in den Weltreligionen. Zurich: Origo-Verlag, 1958.
Siena, Stadi der Jungfrau. Olten (Switzerland) and Freiburg-im-Breisgau (Germany): Urs Graf Verlag, 1958.
Tessin (Das Volkserbe der Schweiz, Band I [Greatly enlarged edition]). Basel: Urs Graf Verlag, 1959.
Alchemie, Sinn- und Weitbild. Olten and Freiburg-im-Breisgau: Walter-Verlag, 1960.
Fes, Stadt des Islam. Olten and Freiburg-im-Breisgau: Urs Graf Verlag, 1960.
Chartres und die Geburt der Kathedrale. Lausanne: Urs Graf Verlag, 1962.
Von wunderbaren Büchern. Olten and Freiburg: Urs Graf Verlag, 1963.
Lachen und Weinen. Olten and Freiburg: Urs Graf Verlag, 1964.
Die Jagd. Olten and Freiburg: Urs Graf Verlag, 1964.
Der wilde Westen. Olten and Freiburg: Urs Graf Verlag, 1966.
Die maurische Kultur in Spanien. Munich: Callwey, 1970.
Marokko, Westlicher Orient: ein Reiseführer. Olten and Freiburg: Walter-Verlag, 1972.
Spiegel der Weisheit: Texte zu Wissenschaft und Kunst. Munich: Diederichs, 1992.
Scipio und Hannibal: Kampf um das Mittelmeer by Friedrich Donauer. Cover design and six illustrations by Titus Burckhardt. Olten and Freiburg: Walter-Verlag, 1939.
Wallis (Das Volkserbe der Schweiz, Band 2) by Charles Ferdinand Ramuz. Translated and edited by Titus Burckhardt. Basel: Urs Graf Verlag, 1956.
Zeus und Eros: Briefe und Aufzeichnungen des Bildhauers Carl Burckhardt (1878–1923), edited by Titus Burckhardt. Basel: Urs Graf Verlag, 1956.
Das Ewige im Vergänglichen by Frithjof Schuon. Translation from the French by Titus Burckhardt of Regards sur les Mondes anciens. Weilheim: Otto Wilhelm Barth-Verlag, 1970.
Athos, der Berg des Schweigens by Philip Sherrard. Translation from the English by Titus Burckhardt of Athos, the Mountain of Silence. Lausanne and Freiburg: Urs Graf Verlag, 1959.

Livros em Françês:

Clef spirituelle de l’astrologie musulmane. Paris: Les Éditions Traditionnelles, 1950; Milan, Archè, 1964.
Du Soufisme. Lyons: Derain, 1951.
Principes et Méthodes de l’art sacré. Lyons: Derain, 1958.
Introduction aux Doctrines ésotériques de l’Islam. Paris: Dervy-Livres, 1969.
Alchimie (translated from the English edition by Madame J. P. Gervy). Basle: Fondation Keimer, 1974; Milan: Archè, 1979.
Symboles: Recueil d’essais. Milan: Archè, 1980; Paris: Dervy-Livres, 1980.
Science moderne et Sagesse traditionnelle. Milan: Archè, 1985; Paris: Dervy-Livres, 1985.
L’Art de l’Islam. Paris: Sindbad, 1985.
Chartres et la Naissance de la Cathédrale (translated from the German by Genia Catalá). Milan: Archè, 1995.
Fès, Ville de l’Islam (translated from the German by Armand Jacoubovitch), in preparation.

Livros em Inglês:

An Introduction to Sufi Doctrine (translated from the French by D. M. Matheson). Lahore: Ashraf, 1959; Wellingborough, England: Thorsons, 1976.
Siena, City of the Virgin (translated from the German by Margaret Brown). Oxford: University Press, 1960.
Famous Illuminated Manuscripts (partial translation of Von wunderbaren Büchern). Olten and Lausanne: Urs Graf Verlag, 1964.
Sacred Art in East and West (translated from the French by Lord Northbourne). Bedfont, Middlesex, England: Perennial Books, 1967; Louisville, Kentucky: Fons Vitae, 2001; Bloomington, Indiana: World Wisdom Books, 2001.
Alchemy, Science of the Cosmos, Science of the Soul (translated from the German by William Stoddart). London: Stuart and Watkins, 1967; Baltimore, Maryland: Penguin Books, 1972; Longmead, Shaftesbury, Dorset: Element Books, 1986; Louisville, Kentucky: Fons Vitae, 2001.
Moorish Culture in Spain (new edition, translated from the German by Alisa Jaffa and William Stoddart). Louisville, Kentucky: Fons Vitae, 1999.
Art of Islam: Language and Meaning (translated from the French by Peter Hobson). London: Islamic Festival Trust Ltd, 1976.
Mystical Astrology according to Ibn ‘Arabî (translated from the French by Bulent Rauf). Sherbourne, England: Beshara, 1977; Louisville, Kentucky: Fons Vitae, 2002.
Fez, City of Islam (translated from the German by William Stoddart). Cambridge, England: Islamic Texts Society, 1992.
Mirror of the Intellect: Essays on Traditional Science and Sacred Art (translated by William Stoddart). Cambridge, England: Quinta Essentia, 1987; Albany, NY: SUNY, 1987.
Chartres and the Birth of the Cathedral (translated by William Stoddart). Ipswich, England: Golgonooza Press, 1995; Bloomington, Indiana: World Wisdom Books, 1995.
The Universality of Sacred Art, a précis of Sacred Art in East and West by Ranjit Fernando, published in The Unanimous Tradition, Institute of Traditional Studies. Colombo, Sri Lanka: 1999.

Livros em Português:

Arte Sagrada do Oriente e do Ocidente (S.Paulo, 2005).
Alquimia, Lisboa, D. Quixote, 1990).



Publicações no “Sabedoria Perene”:

A universalidade da arte sagrada
Titus Burckhardt e a Escola Perenialista
A Porta Real

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Em cada homem um artista

Na presente publicação volta-se a abordar o tema da arte com a apresentação simultânea de mais um livro recomendado e de uma nova tradução. O livro é o “Every Man An Artist: Readings In The Traditional Philosophy of Art” de Brian Keeble, uma antologia dedicada à arte publicada pela World Wisdom em 2005. A tradução não é mais do que a introdução do próprio autor à obra, na verdade um excelente ensaio sobre o significado da arte e a sua actual corrupção. Uma obra essencial e que se recomenda vivamente.




Esta antologia de textos confronta na verdade dois mundos; mais propriamente uma filosofia tradicional ou uma sabedoria sobre a vocação, com aquilo que a substituiu: um substituto que teve o seu início como uma glorificação do homem e terminou, a seu devido tempo – o nosso tempo – como uma justificação para o sub-humano. Durante milénios, os assuntos relacionados com a vocação humana, a arte, o trabalho, o talento, eram colocados na matriz de um entendimento do homem como uma criatura criada à imagem de Deus. Apesar de se admitir a sua natureza física, o homem era dotado, na sua vida terrena, com a vocação de apreender a sua verdadeira natureza, a espiritual, na realidade a natureza espiritual de todas as coisas. Esta vocação, pela sua própria natureza, não era a herança de uma elite especializada, mas sim a verdadeira distinção do que significava ser verdadeiramente humano. A arte, como a norma ou a perfeição do trabalho humano, era o meio essencial pelo qual o homem e a mulher apreendiam, através dos requisitos da vivência adequada, o seu relacionamento integral com a natureza sagrada da realidade.

A partir da Renascença esta filosofia tradicional, na qual a arte era entendida como uma virtude ou um hábito da mente, foi gradualmente substituída por um entendimento da arte como algo referente a uma categoria seleccionada de coisas produzidas por pessoas designadas por artistas, que possuíam um temperamento excepcional, e que criavam obras com ressonâncias estéticas e emocionais especiais.

Este desenvolvimento foi agora levado a explorar os limites do potencial irracional que a ele pertenciam desde o início. As sementes da destruição foram semeadas no instante em que se aceitou que a arte não necessitava de se basear em nada para além do humano: isto é, a doutrina da arte pela arte. O resultado é que muito do que é considerado arte é agora incompreensível para a maioria, e parece não servir qualquer propósito para além da personalidade “excepcional” do seu criador. Ao mesmo tempo, tornou-se de todo impossível definir arte numa sociedade onde a maior parte dos homens e mulheres são excluídos de um envolvimento efectivo com qualquer tipo de arte. Apesar da presente colecção não abordar directamente tais temas, podemos referir que esta exclusão da maioria do envolvimento com a arte, cria e promove uma grande injustiça social e económica. A questão imediata que nos interessa aqui é se a filosofia tradicional é apenas um interesse antiquado, ultrapassado por algo mais sábio, mais abrangente, mais efectivo na sua habilidade para explicar quais as necessidades espirituais e práticas do homem e como elas podem ser alcançadas; ou se a filosofia tradicional pode ser revelada como sendo um repositório vivo de sabedoria, que pode desafiar e demonstrar, de forma efectiva, o quanto inadequado é o que a substituiu. De uma coisa podemos estar certos: sempre que a compreensão do homem do mundo físico e da sua relação prática com ele não esteja em harmonioso acordo com as suas aspirações espirituais, o resultado será sempre ruína.

Nenhuma filosofia de arte se pode dar ao luxo de ser verdadeira apenas em teoria. Ela deverá ser igualmente verdadeira na prática. Qual seria a razão de ser de uma filosofia de arte que não buscasse ser verdadeira em ambas. Nesta necessidade integral estão ancoradas todas as complexidades da situação. Qualquer filosofia de arte tem de pressupor um artista e, uma vez que toda a arte surge em primeiro lugar no artista, deverá ter em consideração a natureza do homem como artista, como “criador” das obras de arte. Apenas aí poderá essa filosofia considerar a operação pela qual a arte é aplicada. E esta é aplicada a uma estonteante variedade de situações; desde praticamente todas as substâncias físicas até a modos mais subtis da realidade – desde a pedra (escultura) até às vibrações do ar (música), desde de tubos a sinfonias.

Adicionalmente, uma verdadeira filosofia de arte deverá ter em consideração a evidência histórica que nunca existiu uma altura em que o homem e a mulher não fossem artistas. No modo com interagem através do corpo e da mente com a natureza do mundo, é da própria essência do homem e da mulher que sejam artistas, criadores de coisas necessárias para viver uma vida em que, simultaneamente e na mesma medida, as necessidade da vida corporal e as necessidades da vida espiritual sejam satisfeitas. Esta antologia propõe, assim, que aquilo a que Ananda K. Coomaraswamy designou pela “verdadeira filosofia de arte” (expostas em dois dos ensaios aqui incluídos), é precisamente isso, e que aquilo que a substituiu é uma compreensão demasiado restrita da real natureza do artista como agente e, consequentemente, uma noção demasiado especializada do que é a arte.

A filosofia tradicional da arte nunca foi extensamente formulada excepto no modo em que foi praticada durante séculos pela maioria dos homens e mulheres. Não existiu qualquer razão para articular esta necessidade de forma sistemática, até à altura em que a sua ausência, e a resultante confusão que a substituiu, tornou este trabalho imperativo. Este trabalho foi cumprido por Coomaraswamy que, regressando aos princípios primeiros, propôs a verdadeira filosofia da arte com base na philosophia perennis – a totalidade das verdades universais e axiomas metafísicos que estão na base das tradições sagradas do mundo. Coomaraswamy não trabalhou sozinho, ele foi um de um grupo de académicos independentes que vieram a ser conhecidos como tradicionalistas ou perenialistas. Para além de Coomaraswamy, a primeira geração deste grupo incluía René Guénon, Frithjof Schuon, Titus Burckhardt, Marco Pallis, Martin Lings e Whitall Perry. Outros surgiram a partir daí seguindo os seus passos. Tal era a convicção de Coomaraswamy – baseada numa inigualável erudição – na verdade universal e na normalidade da philosophia perennis que, numa carta a Aldous Huxley em 1944, ele a descrevia como um corpo de doutrina de “inteligibilidade auto-autenticável [que] explica mais coisas do que as explicadas em qualquer outro lugar.” Aquilo que espero que emerja da presente colecção é, não só um sentido daquilo que é a filosofia tradicional da arte, mas também, incidentalmente, um sentido daquilo que substituiu este corpo de sabedoria, e de que forma este substituto explica menos coisas.

Alguns anos atrás o Museu Britânico em Londres publicou um catálogo sobre arte Românica, no qual estava uma ilustração de um diagrama cosmológico Cristão do século XI mostrando a harmonia do microcosmos e do macrocosmos na constituição do Universo. A legenda da ilustração terminava com a afirmação de que este diagrama, e outros do género, “podem ser descritos como obras de arte por mérito próprio.” Mais recentemente, um conhecido jornal descrevia o trabalho de uma senhora que tecia paisagens com coloridas lãs e um garfo de mesa. A senhora não havia tido qualquer sucesso até que, em vez de se denominar artesã, decidiu se promover como “artista.” Noutra situação, uma revista dedicada à “cultura pop” falava dos anos sessenta como um período em que a música rock se estava a tornar consciente do seu crescente estatuto de “arte”. Todas estas afirmações, escolhidas deliberadamente a partir de fontes muito distintas, têm algo em comum. Não excluindo completamente a possibilidade de que devemos entender a arte como algo que requer perícia na produção de coisas, cada afirmação assume que a arte está relacionada com uma categoria seleccionada de objectos avaliados apenas por razões estéticas. Por essa razão têm prestígio e são distanciadas das coisas da vida comum, as quais são, de qualquer forma, coisas feitas por homens e mulheres, mas não são arte. A arte, segundo este entendimento, em vez de se localizar no artista é aplicada a objectos externos. Este desvio de significado tem vindo a se desenvolver há já algum tempo. Do entendimento antigo da palavra “arte” como perícia (ou como uma virtude do intelecto que leva à perfeição do trabalho), ao sentido moderno de arte como uma mal definida mas prestigiada categoria de objectos estéticos, está um caminho com muitas e subtis curvas. Tal como Owen Barfield referiu na sua “History in English Words”, foi apenas a partir da Renascença que a arte (que antigamente se referiria também àquilo que hoje chamamos de ciência), passou a ser entendida como uma actividade sem relação com as muitas produções e acções necessárias à vida. Hoje, com surpreendente regularidade, notamos o quanto é frequente em discussões no campo das artes, estas rapidamente tropeçarem na questão aparentemente impossível de responder “o que é a arte?”. Daqui devemos concluir que a palavra “arte”, no seu uso moderno, pouco ou nada elucida.

Certamente concordamos que a arte é importante. Certamente concordamos, embora mais tacitamente, que a realização nas artes é desejável para o maior número de pessoas possível. Mas existem sinais de que estamos desconfortáveis com este consenso, numa altura em que a arte não tem um lugar significativo nas vidas da maior parte dos homens e mulheres. Quanto mais diligentemente as artes são promovidas (por um crescente exército de administradores de arte e empresários), mais elas são recomendadas para o nosso consumo passivo, por vezes como se fossem um remédio que devemos tomar para a nossa saúde. A juntar à confusão, é agora prática comum que o Estado conceba fundos públicos a um artista avant-garde cuja principal motivação é colocar em questão qualquer noção estabelecida do que é a arte. O nosso acordo tácito que o artista é, de certa forma, uma pessoa especial (ou talvez, mais precisamente, uma pessoa com um especial tipo de sensibilidade), implica que essa arte tenha o poder de aliviar a condição de comum vulgaridade que é a vida da maioria: os não artistas. Esta assumpção (na realidade pertence mais à natureza de uma superstição), está tão intrincada que, mesmo quando somos confrontados com artefactos que são obviamente um reflexo da nossa corrupção espiritual e decadência cultural, a ideia de que o artista é um ser elevado persiste.

Adular a “criatividade” e a inovação por si só, como é caso na nossa sociedade, é equivalente a argumentar que o trabalho de um artista não tem de responder a nenhum princípio inteligível ou ordem de conhecimento: que não pode ser julgado em relação a qualquer estrutura de valores, ou ser assimilado a qualquer ordem de significado para além dele próprio. É concordar que a arte é um fim em si própria. Este auto-imposto isolamento é, em última análise, a medida da irrealidade daquilo que tentamos rotular como arte. Pensamos na criatividade como uma extensão sem restrições das fronteiras que necessitam de ser desafiadas, de modo a que estas não inibam e encurtem a nossa necessidade de explorar novas regiões da mente. Mas aqui reside um paradoxo. Que valor pode ser atribuído a essas ideias de liberdade e de fronteiras num meio artístico perto da anarquia? Seria saudável reconhecer que esta actividade auto referenciada, que pensamos ser a criatividade, assenta num sentido de liberdade totalmente espúrio que o dispensa de qualquer mais ampla responsabilidade.

O entendimento académico da arte como uma coisa feita e da prudência como uma acção cumprida – uma a perícia no fazer, a outra a perícia na acção – cria uma distinção vital que nos impede de assumir que o fim para o qual a perícia é aplicada é o mesmo que o fim para o qual a vida deve ser dirigida. Fazer isto é, efectivamente, limitar a vida ao aperfeiçoamento do trabalho e, assim, tornar o trabalho mais importante que o próprio homem. Para além de se tornar perigosamente próximo de definir o homem meramente em relação às suas produções, levanta uma outra questão: em relação a que padrão devem as obras humanas ser julgadas? Uma bomba pode ser feita de forma perfeita pela arte do fabricante, mas é a explosão letal que demonstra a sua perfeita perícia um bem que promove a perfeição da vida? Tal questão ajuda nos a compreender a razão pela qual, de acordo com a filosofia tradicional, a virtude da arte, apesar de não confundida com a virtude moral, está, no entanto, a ela intimamente ligada. Ninguém age isolado. Nenhum homem ou mulher é tão “livre” que possa não contribuir, bem ou mal, para a estrutura social e material e bem-estar do mundo. Isto implica que todas as acções têm consequências e, por essa razão, implicam responsabilidades.

A perda da distinção entre arte e prudência não é apenas sentida pelo artista. Esta perda estende-se ao patrono, que perdeu o conhecimento para discernir o bem para o qual as coisas criadas com perícia devem ser dirigidas. Estende-se, ainda, ao utilizador final, que perdeu os meios culturais para reconhecer como devem ser utilizadas as coisas criadas com a adequada perícia. Também perdido foi o relacionamento interactivo entre o artista, o patrono e o utilizador final, pelo qual a arte se torna um modo de vida, numa série de acções mutuamente suportáveis através da sociedade.

E interessará se produzimos coisas através de máquinas ou manualmente? No fundo, estas são simplesmente diferentes técnicas para a produção de bens necessários, e a produção mecânica é de longe a mais eficiente. É claro que interessa. O padrão puramente utilitário da eficiência envolvida na produção mecânica dilui a distinção entre perícia e técnica. Não reconhece a responsabilidade intelectual que é própria ao homem como um criador talentoso de coisas. Tornou-se necessário ter um claro entendimento do que foi usurpado no domínio da perícia, pois nunca antes o artista (como homo faber) teve que trabalhar num meio tão completamente dominado pela máquina – esse aparelho de absoluta utilidade cuja forma e função tão impiedosamente exclui todas as qualidades humanas no modo em que iguala os meios aos fins. Não é uma coincidência o facto das máquinas, ao retirar ao criador a sua responsabilidade intelectual, se tornarem no instrumento perfeito da catástrofe que é o mundo material manipulado puramente em termos quantitativos.

A perícia é uma habilidade humana aplicada a algo, de forma a alcançar um determinado fim. Claramente, ter perícia é superior a não ter. Isto é ainda reconhecido numa sociedade largamente moldada por formas de mecanização que recorrem a trabalho que não requer qualquer perícia. A perícia encara à partida um dado fim ou resultado, um objectivo para a sua aplicação que é superior àquilo que seria no caso da sua ausência. A perícia é, desta forma, um conhecimento e um discernimento de um fim a ser atingido – neste sentido, é indistinguível da arte no sentido tradicional. A técnica difere da perícia na medida em que é o modo imediato da aplicação da perícia. A técnica é uma habilidade praticada ou um meio pelo qual o conhecimento e discernimento da perícia (arte) são consumados em acção. A perícia deve ser entendida, de modo mais amplo, como sendo tanto uma função da inteligência, como uma habilidade prática. A técnica é uma função mais localizada da perícia, não da mente. A técnica pode ser operativa na ausência da perícia; a perícia nunca é operativa sem a técnica. Parte da perícia está na mente, parte é realizada na aplicação. Toda a técnica é uma aplicação (uma pequena parte pode ser considerada como algo de residual na memória).

Mas existe outra dimensão para a noção da responsabilidade intelectual do criador que deve ser considerada. Intrínseca à natureza produtiva da perícia e da técnica tem-se a repetição e, assim, a comparação. Se uma coisa é repetida, a comparação entre duas torna-se possível, enquanto que a coisa feita como única está, por definição, para além de qualquer comparação, não tem realidade genérica. Isto significa que existe uma sabedoria intelectual, conceptual e prática em relação ao que é, por exemplo, um ícone ou uma cadeira, e como cada um deve ser usado. Cada um é um “tipo” que tem uma forma inteligível. A “peça única” (esse ídolo do avant-garde) que está para além da comparação, é isolada para lá de qualquer contexto de sabedoria ou conhecimento que nos informa sobre o que é, e como deve ser usada. No conhecimento e discernimento que é logicamente anterior à aplicação da perícia, deve existir uma sabedoria sobre o fim para o qual a perícia é aplicada. Esta sabedoria é um conhecimento do que serve e do que é apropriado em qualquer circunstância em que a perícia humana é solicitada. Por extensão, é também uma sabedoria do quão correctamente foi aplicada a perícia. É inconcebível que tal sabedoria possa ser exercida sem um amplo acordo para com um padrão e um contexto aceitável, pelo qual um resultado possa ser medido. Se o produto da perícia (arte) é medido por um padrão reconhecido de comparação, então a ocasião da perícia será uma convenção quanto à validade da sua aplicação. Na verdadeira aplicação da perícia, o artista deve ser capaz de conceber qual é o fim apropriado para a sua arte. De outra forma, não poderá existir uma efectiva correlação entre a imitação e o resultado, a qual é a base de todo o julgamento artístico, bem como parte da razão pela qual perguntamos, de uma obra de arte que não compreendemos, “O que é isto?”

Em qualquer parte em que a arte seja entendida como uma virtude ou um hábito da mente que se mantém no artista, estas verdades aplicam-se a toda a criação com recurso à perícia. A sua “auto-autenticada inteligibilidade” exemplifica a afirmação de Platão que “não podemos dar, de forma justa, o nome de arte a qualquer coisa que seja irracional.” Onde estas verdades forem mantidas de forma operativa, a arte é ocasional e provém de convenções que não fazem qualquer distinção entre artistas e não artistas. Não será necessário referir que a mutualidade de tais verdades estarão tão efectivamente presentes nas condições industriais de manufactura, como estão no meio da arte contemporânea. No sistema industrial, o operador das máquinas é usurpado da sua responsabilidade para exercer a sabedoria e o discernimento da perícia que deveria, por direito próprio, ser sua, e é sua integralmente em virtude da sua natureza espiritual. O moderno criador da “bela” arte simplesmente repudia tal responsabilidade, na medida em que desrespeita as convenções, aspirando continuamente a produzir obras sem precedente, rejeitando a validade de qualquer padrão para além da sensibilidade estética.

O facto da questão “O que é a arte?” ser tão rapidamente e frequentemente proferida em discussão, é apenas uma das muitas indicações que a cultura moderna se encontra num estado de confusão. O resultado social e prático é o estado de crise que força constantemente à reformulação dos princípios e regras para a conduta dos assuntos humanos, enquanto que, ao mesmo tempo, falhando na garantia de um critério filosófico e intelectual que tornaria inteligível o necessário caminho para uma acção de remedeio. Esta “erosão” da inteligibilidade que lança tudo na dúvida, é o resultado de uma subjectividade que nunca é tida em consideração em qualquer critério objectivo. Na sua essência, a confusão não é mais do que o seguinte: se a arte é, de certa forma, tudo aquilo que alguém decide que seja, temos apenas de nos proclamar como “artistas” para produzir obras de arte. Nesse caso, todos os homens e mulheres são artistas através dessa proclamação. Mas se todos são artistas onde está a distinção particular e o prestígio (tão evidentemente desejado) de ser um artista?

Regressámos nós, assim, ao entendimento tradicional, no qual, em virtude de possuir o hábito da mente que é a norma do trabalho humano, cada pessoa é um artista? Longe disso. A liberdade arbitrária tomada pela subjectividade auto-governada que é o ideal do artista moderno, não é mais do que o entronamento da vocação e da originalidade para governar, sem responsabilidade, as amplas circunstâncias da vocação, modo de vida e justiça exercida à luz das verdadeiras necessidades humanas. Ficamos com este tipo de paródia de liberdade interior do intelecto e da vontade de alcançar o bem e o belo, que é o objectivo final de todas as coisas feitas com perfeição, e que constitui parte dos ensinamentos tradicionais.

Da perspectiva tradicional do que constitui a vocação humana, qual é especificamente o fardo da nossa era?

Aqui, é necessário compreender duas coisas que vão para além das questões da arte, mas que constituem uma profunda e inescapável base para a forma como a arte é concebida e praticada. Mantendo em mente que, na esfera das artes, não existem absolutos, em primeiro lugar, deve ser entendido que estamos a viver no final de um ciclo cósmico para o qual fomos destinados. Em relação à depreciação metafísica da história, corresponde a um tempo em que tudo é colocado em questão e nenhuma verdade parece ser capaz de se manter firme. Esta tendência para a depreciação, na medida em que afecta as artes, é manifestada na aceitação passiva geral das mais negativas possibilidade do estado humano na nossa sociedade. Isto não pode ser evitado, visto que o final do ciclo terá que ser exausto da totalidade dessas possibilidade – positivas e negativas – das quais é constituído.

Em segundo lugar, e de forma contrária, a alma humana requer o reconhecimento de um movimento espiritual compensatório para contrariar esta precipitação descendente, de modo a que seja salva de um determinismo que iria anular qualquer tentativa para transcender a história. Se a mera passagem do tempo pudesse, por si própria, anular a aspiração espiritual, qual seria a necessidade da oração, quanto mais o esforço de procurar a Verdade sem a qual não poderá existir o reconhecimento da natureza contingente do passar do tempo? Muitos dos que contribuem para esta antologia aludem ao princípio Beneditino onde “trabalho é oração.” Isto refere-se a interpretações dos critérios cósmicos e morais nas leis do correcto modo de vida (uma das maiores preocupações na obra de Wendell Berry, por exemplo), que torna possível moldar adequadamente a vida humana ao modelo divino.

Uma vez que é contra estas condições que, para o homem moderno, todas as actividades humanas decorrem, temos que aceitar que não poderá existir nada na esfera da cultura comparável com os feitos do passado. Apesar da esperança de Titus Burckhardt para uma renovação da arte sagrada no Ocidente, existe um tempo para a arte hierática do Egipto, na qual o ego estava completamente ausente, um tempo para as cristalizações harmónicas do Gótico, um tempo para o humanismo titânico da Renascença, um tempo para o “realismo” do século dezanove e, terá de ser admitido (mesmo que apenas para medir a descida de uma transcendência do humano, para uma demonstração do sub-humano), um tempo para um urinol suspenso num fio assinado R. Mutt.

Todas as vozes na secção final da presente colecção, e algumas na secção intermédia, expressam a sensação de terem que trabalhar contra a corrente, de lutar contra a falta de coerência, de um empobrecimento de contexto, quando se trata de tornar efectivo a totalidade da prática que a sua arte exige. Nada, na arte moderna, foi para além do radical desafio de Duchamp em colocar em questão o status e as fronteiras da arte na sociedade moderna. Mas apenas o apelo aos princípios primeiros, feito pela filosofia tradicional (por exemplo por Coomaraswamy), em “explicar mais e melhor,” toma em consideração todos os factores que contribuem para um entendimento totalmente inclusivo da natureza e da função da arte. E a arte é, segundo este entendimento, apenas um modo (o produtivo) de uma mais ampla e profunda concepção da vocação. Do ponto de vista do artista ou artesão contemporâneo não é, de todo, uma questão das doutrinas tradicionais providenciarem uma filosofia recuperada e uma fórmula de trabalho em que se possam basear. Nem é, de todo, uma questão de disponibilidade de talento individual. A falta de coerência e empobrecimento do contexto mencionado, aponta claramente para preocupações para além do uso de uma arte ou perícia. No lado interno, por assim dizer, existiriam muitos imponderáveis de educação, de gosto estético e preferências pessoais acumuladas que provavelmente se tornaram hábitos da mente, para o artista contemporâneo prosseguir como se a filosofia tradicional tivesse instantaneamente limpo todas as confusões agora associadas com as questões de vocação e de arte. Coomaraswamy disse de Eric Gill que “ele inventou um modo humano de trabalhar e descobriu que era aquele de todas as sociedades humanas.” Mas o próprio Gill, provavelmente mais consciente das dificuldades práticas envolvidas, sabe-se ter dito “Aquilo que alcancei não tem qualquer consequência – apenas pode ser considerado o princípio – irá levar gerações.”

Do lado externo, não é para o “criador” determinar a qualidade no seu patrono. As forças sociais e económicas são uma parte significativa do patronado, bem como um entendimento da natureza da vocação – um conceito relativamente obsoleto na nossa era pós-industrial. A única preocupação, como criador, é olhar para o bem do trabalho a ser feito.

O desafio colocado pela filosofia tradicional deverá ser o de voltar a focar a atenção sobre o último instrumento da arte: o próprio homem. O que é o homem? Nenhuma elaboração sobre a teoria estética pode esconder o facto da arte, da perícia, do trabalho (todos eles provem da mesma raiz), repousarem sobre questões mais amplas como a beleza e a verdade, o bem e o mal, justiça, moralidade e ética. Está na mente do homem que os erros surgem e que a falsidade é permitida e considerada uma presença aceitável. Está na mente do homem que as ilusões da modernidade devem ser afastadas por um conhecimento e uma sabedoria de acordo com a duradoura natureza destes mais amplos assuntos.

Para responder ao bem ensaiado criticismo que a defesa da visão tradicional da arte é invocar o passado, ordem morta das coisas que pouco ou nada pode fazer para remediar os males e a confusão actuais: isto é não conceber o nível a que o remedeio poderá ser efectivo. Qualquer ajuste ou mudança de direcção ao mero nível da estética ou prática, está destinada a acarretar em si as mesmas confusões que nos apoquentam agora, se essas mudanças não alcançarem os princípios primeiros (formulados nas secções i e ii) de conhecer e ser, a partir dos quais todas as acções humanas emergem. Precisamos de despertar para essas verdades fundamentais que dão valor e significado aos nossos pensamentos e acções. A filosofia tradicional, longe de invocar relíquias do museu de história, aponta para a necessidade de uma testemunha eterna, uma intuição directa das realidades do intelecto, que são a verdadeira base a partir da qual a arte provém.

* * *

A universalidade da tradicional ou “verdadeira” filosofia da arte foi coerentemente exposta, na sua essência, na obra de Ananda K. Coomaraswamy. Para demonstrar esta universalidade numa escala compreensível, com todas as diferentes formulações necessárias para ter em consideração a variedade de condições espirituais e práticas da sua aplicação externa, seriam necessários diversos volumes. Nenhuma tentativa deste género é aqui procurada. A presente colecção, enquanto limitada na sua generalidade ao Ocidente e dirigida predominantemente a uma audiência ocidental, procura dar um especial enfoque à interacção do tradicional e do moderno num volume facilmente manejável.

A pequena secção “Intimations”, não faz mais do que semear algumas sementes. Sementes nas quais, no entanto, completas áreas de discurso filosófico se encontram em potência, de modo a germinarem nos temas principais na subsequente exposição teórica da natureza e do lugar da arte na vida humana. O cerne da colecção como um todo encontra-se nos dois grandiosos ensaios sinópticos de Coomaraswamy na secção “Formulations”. Estes dois ensaios cobrem o período desde Platão até à formulação escolástica da teoria na Alta Idade Média. Na sua clareza e profundidade, baseada em fontes contemporâneas, Coomaraswamy demonstra que a visão tradicional da arte é dependente, e baseada, num mais vasto corpo de doutrina que é a philosophia perennis. É precisamente este suporte e dependência que permite que a “verdadeira” filosofia da arte explique mais e melhor que as filosofias mais tardias.

Outros contribuintes para esta secção, muitas vezes trabalhando a partir do conhecimento dos textos de Coomaraswamy, fazem as suas “formulações,” por vezes pela necessidade de clareza teórica (Schuon, Burckhardt), outras provenientes de uma necessidade de casar a prática com os princípios primeiros. Eric Gill, por exemplo, não via qualquer contradição entre a sua prática como um pioneiro escultor, gravador e polemista do século vinte, e a sua profunda fé Católica. Na realidade, uma era necessariamente o suporte da outra.

A face polémica desta colecção – e que é intencional – surge sobretudo na última secção, “Reverberations”. Esta secção demonstra, espero, a continuidade da relevância dos ensinamentos tradicionais. Cada um dos autores é um dos principais praticantes na sua área – que inclui a pintura, a poesia, a olaria, a caligrafia, a música e, no caso de Wendell Berry, a agricultura, a mais fundamental de todas as artes. Todos estes praticantes sentiram na sua prática das suas muito diferentes artes, as tensões internas de uma dupla necessidade: libertarem-se do pântano contemporâneo de ideias vagas e mal definidas do que constitui a arte; e, depois, moldar a sua própria prática a um modelo que tenha em consideração a dimensão inerentemente espiritual da vocação humana. O “Art and Sacrament” de David Jones oferece o mais reactivo e detalhado resumo que conheço sobre as muitas tensões e dilemas que enfrentam os artistas contemporâneos que se pretendem manter fiéis com a natureza ultimamente sacramental da arte, enquanto mantendo uma legítima relevância para a sua própria situação histórica.

Uma última palavra, um ensaio escrito especialmente para a presente ocasião, é dada por Sir John Tavener, cuja música tem sido largamente reconhecida como relevante para o seu tempo, e que providencia um autêntico suporte para a contemplação de uma realidade sacramental.

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Every Man an Artist

I INTIMATIONS

Chapter 1 PLATO
Chapter 2 ARISTOTLE
Chapter 3 PLOTINUS
Chapter 4 THE HOLY BIBLE
Chapter 5 CORPUS HERMETICUM
Chapter 6 DIONYSIUS THE AREOPAGITE
Chapter 7 ERIUGENA
Chapter 8 ST JOHN OF DAMASCUS
Chapter 9 ST THEODORE THE STUDITE
Chapter 10 ST THOMAS AQUINAS
Chapter 11 ST BONAVENTURE

II FORMULATIONS

Chapter 12 LUC BENOIST The Origins of Art
Chapter 13 RENÉ GUÉNON Initiation and the Crafts
Chapter 14 RENÉ GUÉNON The Arts and their Traditional Conception
Chapter 15 ANANDA K. COOMARASWAMY A Figure of Speech or a Figure of Thought?
Chapter 16 ANANDA K. COOMARASWAMY The Christian and Oriental, or True Philosophy of Art
Chapter 17 FRITHJOF SCHUON Principles and Criteria of Art
Chapter 18 JOHN HOWARD BENSON and ARTHUR GRAHAM CAREY The General Problem
Chapter 19 ERIC GILL The Four Causes
Chapter 20 ERIC GILL Of Beauty
Chapter 21 SOETSU YANAGI Pattern
Chapter 22 TITUS BURCKHARDT The Decadence and Renewal of Christian Art

III REVERBERATIONS

Chapter23 DAVID JONES Art and Sacrament
Chapter 24 KATHLEEN RAINE The Vertical Dimension
Chapter 25 WENDELL BERRY Two Economies
Chapter 26 CECIL COLLINS `Why does Art today lack inspiration?'
Chapter 27 BERNARD LEACH Integration
Chapter 28 MICHAEL CARDEW On Pottery and Potting
Chapter 29 EDWARD JOHNSTON Formal Penmanship defined by the thing
Chapter 30 SIR JOHN TAVENER Towards the Musica Perennis

domingo, 7 de dezembro de 2008

A renovação do interesse na Tradição - parte II

Parte II (Parte I)

Na mesma altura em que o emergente metafísico Francês se voltava para os círculos ocultistas Parisienses, um graduado do University College de Londres encontrava-se no Ceilão como geólogo dirigindo a Mineralogical Survey, o que lhe valeria o Doutorado da Universidade de Londres em 1906, com a idade de vinte e nove anos. Assim começou a carreira de Ananda K. Coomaraswamy (1877-1947), nascido em Colombo e filho de um ilustre Shaivita Hindu de Tamil e de um Inglesa patrícia que criou o seu único filho em Inglaterra após a prematura morte do seu marido.

Na mesma altura em que descobria, em 1904, um raro óxido que apelidou de torianita, o jovem Coomaraswamy estava a encontrar um tesouro negligenciado de uma tal magnitude que se sentiu impelido a iniciar uma nova carreira: este tesouro era a magnífica herança cultural Indiana com mais de três mil anos, uma herança intimamente ligada à do Ceilão, e cujas fundações eram agora erodidas por aquilo que Guénon apelidava de “fúria proselítica” do Ocidente e, em particular, com as suas artes a sucumbir perante a vaga de produtos industriais vindos da Europa. O que mais provocou Coomaraswamy foi a apatia Asiática perante a transição que estava a ocorrer; ele deplorava a “falta de auto-respeito e auto-dependência entre as pessoas que tinham aprendido a olhar para trás em desprezo do seu passado e a admirar, indiscriminadamente, todos os modos estrangeiros que viam ter hipótese de imitar… É inútil, é claro, falar daqueles que consideravam todo o passado das nações do Oriente, anterior ao advento da civilização Ocidental, como meramente bárbaro e selvagem; existem muitos assim, e eles lembram-me muito os homens do século dezasseis que voltaram, com desdém, as costas ao passado Inglês e à beleza Inglesa para fazerem um cópia degenerada da literatura e arte clássica.”

O jovem Doutor tentou, em primeiro lugar, agir na reforma social, mas rapidamente se apercebeu que estava aí a lidar com efeitos e não com causas, virando-se para uma vocação para a qual se viria a confirmar eminentemente qualificado – a de perito nas artes tradicionais Asiáticas. Apesar de ter sido investido com o fio sagrado numa cerimónia iniciática que teve lugar no Ceilão no ano de 1897, Coomaraswamy, dada a sua linhagem Oriental-Ocidental e o seu consequente estilo de vida, nunca poderia ser considerado formalmente um Hindu, e ele escreveu de si próprio perto do final da sua vida, “Eu… apenas me posso chamar de seguidor da Philosophia Perennis, ou para ser mais específico, um Vedantino.” Desta forma, ele proclamou que a sua perspectiva era a universalidade da Sanātana Dharma e o seu ponto de partida os Vedas. Apesar de obviamente não se tratar de puro Hinduísmo, era claramente o que os Céus pretendiam para que a sua mensagem chegasse ao mundo. E Coomaraswamy sempre se considerou um interlocutor Oriental, apesar de viver no Ocidente e se dirigir sobretudo a Ocidentais. Cedo na sua carreira ele referiu:

A Religião não é no Oriente, como o é no Ocidente, uma fórmula ou uma doutrina, mas sim um caminho de olhar para a vida, e inclui toda a vida, de modo que não existe a divisão do sagrado e do profano.

– um comentário, seja adicionado, que dá uma definição muito sucinta da distinção comparativa entre Tradição e Religião, tal como aprofundado no início deste ensaio.

Para Coomaraswamy, a forma correcta de olhar a arte era integral a esta posição, entendendo as artes tradicionais como reflexos de princípios imutáveis: a arte era um modo de conhecimento espiritual, quer para os artistas, quer para os patronos, de outra forma não seria merecedora da atenção do homem e, pior, seria um vício, uma vez que a falsa arte – a desgraça do individualismo – apenas pode desviar o homem dos objectivos para os quais foi criado. O conteúdo mitológico das artes que ele perseguia fascinavam e inspiravam-no – com o seu génio universal inato, similar, apesar de diferentemente orientado, ao de Guénon – a ver e revelar a fantástica homogeneidade dos padrões míticos em tradições com os mais diversos carácteres externos. Já um mestre linguista (dominando cerca de trinta línguas de várias partes do mundo), ele estava a descobrir um vocabulário comum existente num plano mais elevado e partilhado por todas as grandes religiões, nomeadamente, a linguagem do Logos ou a Palavra Primordial:

No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus (João 1:1). A Pronunciação (vāk) produziu todo o Universo (Śatapatha Brāhmana VI passim). Do som dos Vedas, a Divindade suprema criou todas as coisas (Mānava-dharma-śāstra I.21).

“De todos os nomes e formas de Deus,” escreveu Coomaraswamy, “a sílaba mono gramática Om, a totalidade de todos os sons e a música das esferas cantada pelo Sol ressonante, é a melhor. A validade de um símbolo audível é exactamente a mesma de um ícone plástico, ambos servem de suporte para a contemplação (dhiyālamba); este suporte é necessário porque aquilo que é imperceptível ao olhar e ao ouvir não pode ser apreendido objectivamente da forma como é, mas apenas de através da semelhança. O símbolo deve ser naturalmente adequado, e não pode ser escolhido ao acaso.”

Por volta do início dos anos trinta, Coomaraswamy, através do Indologista Heinrich Zimmer, encontrou o trabalho de Guénon, o que trouxe definitivamente uma dimensão vertical à vasta erudição do Doutor. Pouco tempo depois apareceu um dos seus mais importantes trabalhos, The Transformation of nature in Art, o qual abordava, na realidade, a transformação da natureza do homem através das ressonâncias espirituais inerentes à arte sagrada. Apesar das nossas universidades se encontrarem repletas de teses doutorais dedicadas a primitivas, e não tão primitivas, culturas, praticamente sem excepção, estas são marcadas por um ponto de partida falso devido à ignorância das verdadeiras origens do homem e da sua íntima natureza, e isto foi o que Guénon e Coomaraswamy se propuseram a rectificar “de uma forma que podia ser ignorada mas não refutada,” como dizia o Doutor. Ele detestava a prática de ler arbitrariamente significados em coisas que já tinham o seu verdadeiro significado:

Admitamos, então, que a grande parte do que é ensinado nos Departamentos de Belas Artes das nossas Universidades, todas as psicologias da arte, todas as obscuridades da estética moderna, não são mais do que palavreado, apenas um tipo de defesa que impede a nossa compreensão da arte como um todo, em simultâneo, iconograficamente verdadeira e utilitária, compreensão que antigamente existia em qualquer mercado ou em qualquer bom artista; e, enquanto a retórica, que nada quer saber da verdade, for a regra e o método das artes intelectuais, a nossa estética não é mais do que uma falsa retórica, e uma adulação da fraqueza humana, pela qual podemos apenas ter em conta as artes que não têm outro propósito para além de agradar.

… Seja como for, temos também pretensões de ter uma disciplina “científica” e “objectiva” da “história e apreciação da arte,” na qual tomamos em consideração não só a arte contemporânea ou muito recente, mas também de toda a arte, desde o princípio até aos dias de hoje… [No entanto] Eu ponho à vossa consideração que não é, através da nossa estética, mas apenas pela sua retórica, que podemos esperar compreender e interpretar as artes de outros povos e de outras eras diferentes da nossa; eu ponho à vossa consideração, que os nossos presentes cursos universitários nesta área incorporam uma patética falácia, e que não têm absolutamente nada de científico (Figures of Speech or Figures of Thought).

Porque Coomaraswamy, tal como Guénon, estava a defender verdades intemporais mas esquecidas que não eram sua invenção, ele não hesitava em debater, com o seu formidável aparato intelectual, os ilustres académicos, com uma erudição cujo objectivo era, no entanto, puro e resoluto: que os ritos e cerimónias, as lendas e as sagas, e as artes geralmente de anteriores civilizações e que os académicos faziam sua prerrogativa elucidar, não eram mais do que diferentes expressões da linguagem do Espírito e que, qualquer tentativa para a explicar de outro modo – independentemente do brilhantismo académico – não era, no final, mais do que narcisismo académico. E se a sua mensagem caía em ouvidos moucos, Coomaraswamy afirmava, “isto deve-se à nossa geração sentimentalista, na qual o poder do intelecto foi de tal forma pervertido pelo poder da observação que não mais conseguimos distinguir a realidade do fenomenal, a Pessoa no Sol do seu corpo visível, ou do incriado da luz eléctrica, que não será persuadida ‘ainda que ressuscite alguém entre os mortos.’”

Os escritos do Doutor nos seus últimos anos tornaram-se cada vez mais centrados na Philosophia Perennis, e em particular nos seus aspectos de Caminho: “Temos que fazer o que os Deuses fizeram” era um adágio que ele reiterava a partir do Śatapatha Brāhmana: “O Sacrifício (yajña) efectuado aqui em baixo é uma imitação ritual daquilo que foi feito pelos Deuses no princípio… [Este] reflecte o Mito; mas como todas as reflexões, inverte-o. Aquilo que foi um processo de geração e divisão, torna-se agora um processo de regeneração e composição. “Tal como “no princípio,” ou in divinis; teve de existir um “Deus da morte” para “desmembrar” e, assim, libertar as possibilidades adormecidas na Substância Divina, para existir qualquer mundo ou mundos, razão pela qual tem de ocorrer a morte do Homem Externo por meio de um Sacrifício (“tornar sagrado”) que possa ser re-cordado – no sentido Platónico de recolecção (cf. Lucas 22:19; “fazei isto em lembrança de Mim”) – e restaurado ao seu Protótipo deiforme:

Esta concepção de Sacrifício como uma incessante operação e o somatório dos deveres do homem, encontra a sua consumação numa série de textos nos quais, cada uma das funções da vida activa, até ao próprio respirar, comer, beber e cortejar, são interpretados de forma sacramental, e a morte não é mais do que a katharsis final. E isso é, finalmente, o famoso “Caminho dos Trabalhos” (karma mārga) do Bhagavad Gītā, onde a vocação de cada um de nós, determinada pela nossa própria natureza, sem motivos auto-referentes, é o caminho da perfeição (Hinduism and Budhism).

Coomaraswamy via este Caminho, ou processo de “auto-anulação”, como um enredo cósmico (līlā) onde o Mito era a realidade, com a participação da passiva individualidade humana no drama reduzida a pouco mais do que um acidente histórico ou uma ilusão (“Aquilo a que chamamos a nossa “consciência” não é mais do que um processo”) – uma perspectiva que se aproximava da visão matematicamente abstracta de Guénon e que, inevitavelmente, deixava ausente toda a dimensão humana, a qual alguém teria de redimir. Um testemunho tradicional, por outras palavras, foi dado da Doutrina e do Caminho, mas uma revelação concreta do Método per se ainda estava para surgir. Se uma renovação do interesse na Tradição estava a ser alcançada, faltavam ainda as componentes essenciais para a renovação da própria Tradição.

***

Frithjof Schuon, nascido em Basileia em 1907 de descendência Alemã, tinha a vantagem e a desvantagem de surgir após os seus dois predecessores, cujas carreiras, nesse momento, já se encontravam em andamento: a vantagem, pelo facto de, pela altura em que começou a escrever, por volta dos anos trinta, Guénon e Coomaraswamy já tinham aberto imenso terreno e estavam a estabelecer um certa escola de pensamento baseada na Philosophia Perennis, nomeadamente, o núcleo dos princípios metafísicos que há muito o Ocidente tinha perdido de vista; a desvantagem, pelo facto das pessoas, até aos dias hoje, persistirem em considerá-lo um seguidor – ou mesmo um discípulo – de Guénon, quando os factos são bastante diferentes. Assim, na Introdução ao seu Logic and Transcendence, publicado em 1970, ele sentiu-se forçado a prevenir os seus leitores:

Nós não subscrevemos necessariamente todas as afirmações, conclusões ou teorias formuladas em nome da metafísica, do esoterismo, ou de princípios tradicional em geral; por outras palavras, nós não seguimos qualquer teoria pelo simples facto de pertencer a uma determinada escola, e queremos ser considerados responsáveis apenas por aquilo que por nós é escrito.

Schuon, que é aquilo que os Hindus designariam como um “mestre,” pela sua universalidade, ilude qualquer classificação simples, mas o conceito ao qual ele melhor se adapta é o da Sophia Perennis ou Religio Perennis; e a combinação de sabedoria com espiritualidade na sua mensagem faz sobressair a adequação destes dois termos, os quais podem ser sintetizados nas ideias de Teosofia e Gnose, desde que garantida a consideração destas palavras no seu sentido etimológico original e sem qualquer referência a qualquer seita, sociedade ou movimento.

Os extractos de jornais que ele guardava na sua juventude manifestam um génio espiritual instintivo, gravitando naturalmente em torno da grandeza e da beleza do Sagrado – qualidades que já se encontravam desenvolvidas antes de ele entrar em contacto com as obras de Guénon, o que acabou por acontecer com a idade de dezoito anos. Foi do Norte de África, aliás, que ele, com pouco mais de vinte anos, recebeu as suas afiliações espirituais formais.

Munido de um excepcional grau de percepção artística, combinado com uma penetrante compreensão do homem como tal, etnologicamente, culturalmente, psicologicamente e espiritualmente, Schuon tem o dom de reconstruir, a partir de um ou dois elementos, o essencial de virtualmente todas as sociedades tradicionais que alguma vez existiram – sejam os Índios Americanos, os antigos Japoneses, as tribos Africanas, ou diferentes sectores dos mundos Semitas e Arianos. O que resultou, na prática, foi um resumo e uma avaliação de correntes tradicionais, ideias e verdades espirituais, apresentadas com uma lógica e objectividade que provavelmente não teve paralelo desde um Platão ou um Śankarāchārya. A isto podemos juntar o destino de guiar e integrar almas através de uma perspectiva tradicional, crucial na sua urgência, a qual é a verdadeira antítese da perspectiva moderna, e a qual, através de uma “yoga”, combina inteligência com um total despontar das virtudes que podem conduzir para a plenitude do estado humano. Ele vê a nossa civilização moderna como uma traição para com a natureza humana – não no sentido daquilo que o homem pode alcançar, que de certa forma é praticamente ilimitado, mas no sentido daquilo para o qual o homem foi criado para alcançar. Guénon estabeleceu o padrão; Schuon completou as especificidades. Coomaraswamy apresentou o molde; Schuon completou-o com cores. Ele diz que o seu papel tem sido restaurar a noção do Absoluto, num Ocidente que caiu num total relativismo.

Os presentes desenvolvimentos do trabalho deste Mestre cai fora do âmbito do presente trabalho, mas a forma da sua Theosis é amplamente demonstrada nos seus escritos, para aqueles que os lerem. Apesar de não existir fim para aquilo que poderia ser citado, oferecemos duas passagens representativas – a primeira a partir de Light on the Ancient Worlds:

A diferença entre a visão ordinária e aquela utilizada pelo sábio ou pelo gnóstico não é claramente da ordem sensorial. O sábio vê as coisas no seu contexto total, no seu relativismo e ao mesmo tempo na sua transparência metafísica; ele não as vê como se elas fossem fisicamente diáfanas ou providas de uma sonoridade mística ou aura visível, apesar da sua visão poder por vezes ser descrita através dessas imagens… Uma visão espiritual das coisas distingue-se pela percepção concreta de correspondências universais e não através de qualquer tipo de características sensoriais especiais. O “terceiro olho” é uma faculdade que permite ver os fenómenos sub specie aeternitatis e, dessa forma, numa forma de simultaneidade; a este são normalmente acrescentadas, na natureza das coisas, intuições relacionadas com modalidades que são normalmente imperceptíveis.

O sábio vê as causas nos efeitos, e os efeitos nas causas; ele vê Deus em todas as coisas, e todas as coisas em Deus. Uma ciência que penetra as profundezas do “infinitamente grande” e do “infinitamente pequeno” no plano físico, mas que nega outros planos, apesar de serem eles que revelam a razão suficiente da natureza que vemos e providencia a chave para ela, tal ciência, é um mal maior que a ignorância pura e simples; é, na realidade uma “contra-ciência,” e os seus efeitos finais não podem deixar de ser mortíferos. Por outras palavras, a ciência moderna é um racionalismo totalitarista que elimina, quer a Revelação, quer o Intelecto e é, ao mesmo tempo, um materialismo totalitarista cego à relatividade metafísica – e, com isso, também à impermanência – da matéria e do mundo. Ela não sabe que o suprasensível, situado para além do espaço e do tempo, é o princípio concreto do mundo, e que está, consequentemente, também na origem dessa coagulação contingente e em mudança a que chamamos “matéria.” Uma ciência intitulada de “exacta” é, na realidade, uma “inteligência sem sabedoria,” tal como a filosofia pós escolástica é, inversamente, uma “sabedoria sem inteligência.”

A segunda passagem é retirada de Logic and Transcendence:

A vida humana é adornada com incertezas; o homem perde-se no que é incerto em vez de se agarrar àquilo que é absolutamente certo no seu destino, nomeadamente a morte, o Julgamento e a Eternidade. Mas para além destes existe uma quarta certeza, imediatamente acessível à experiência humana, e esta é o presente momento, no qual o homem é livre de escolher entre o Real e o ilusório e, assim, descobrir por ele próprio o valor das três grandes certezas escatológicas. A consciência do sábio está fundada sobre estes três pontos de referência, quer directamente, quer de uma forma indirecta e implícita através da “lembrança de Deus”… A coisa importante a compreender aqui é a actualização da consciência do Absoluto, nomeadamente, da “lembrança de Deus” ou “oração”… é já uma morte e um encontro com Deus e coloca-nos já na Eternidade; é já algo do Paraíso e mesmo, na sua misteriosa e “incriada” quintessência, algo de Deus. A oração quintessencial provoca um escape do mundo e da nossa vida e, dessa forma, confere um novo e Divino enfraquecimento do véu das aparências e da corrente das formas, e um fresco significado à nossa presença por entre o enredo dos fenómenos.

Aquilo que não existe aqui não existe em parte alguma, e tudo aquilo que não é agora nunca o será. Neste momento, em que eu sou livre de escolher Deus, também será morte, Julgamento e Eternidade. Da mesma forma, neste centro, neste ponto Divino em que sou livre de escolher na face deste ilimitado e múltiplo mundo, eu já estou na Realidade invisível.

Adoptando uma perspectiva geral, o que podemos dizer sobre quais foram as repercussões no mundo resultantes do trabalho dos três autores em discussão? Sem dúvida que as suas ideias são agora conhecidas e estudadas de uma forma séria no meio académico e nos círculos intelectuais da América ao Japão; as suas obras traduzidas em várias línguas. Desde há muitos anos que a publicação periódica, Études Traditionnelles, tem sido um instrumento para estas ideias em França, e existe a mais recente publicação Inglesa, Studies in Comparative Religion.

Em relação a eventos inspirados directamente por este trabalho, o primeiro foi a realização de um colóquio inter-religioso em Houston, Texas, em 1973 sobre o tema “Modos Tradicionais de Contemplação e Acção,” o qual, é importante salientar, nada tem a haver com o ecumenismo como actualmente entendido – este último um humanismo disfarçado de espiritualismo, corrosivo para a verdadeira espiritualidade – mas sim com um conjunto de forças religiosas unidas na causa comum de resposta aos danos do ateísmo. Posteriormente, em 1976, realizou se um Festival do Mundo Islâmico em Londres, e em 1985, uma conferência sobre a Tradição foi organizada pelo Instituto de Estudos Tradicionais em Lima, Peru.

Em 1974, uma Academia Imperial Iraniana de Filosofia, devota ao estudo da filosofia tal como entendida pela Tradição, foi fundada em Teerão sob a direcção de Seyyed Hossein Nasr, mas em 1980, os distúrbios políticos no Irão levaram ao encerramento da mesma, incluindo a sua publicação periódica, Sophia Perennis. Em 1979, um Instituto do Sri Lanka de Estudos Tradicionais foi inaugurado em Colombo e, mais recentemente, uma Fundação para Estudos Tradicionais foi criada em Washington, nos Estados Unidos da América.

Mas esta perspectiva geral apenas diz respeito à renovação do interesse na Tradição, o que é uma coisa, enquanto que a prática da Tradição é outra. Nestes tempos de degeneração, que produziram inúmeras pseudo-religiões, muitas vezes com raízes Orientais, o Adversário usa múltiplos disfarces, e parece ser quase impossível encontrar alguém que consiga distinguir o golfo que separa os ensinamentos autênticos das distorções que deles fazem pessoas como a Madame Blavastky, Krishnamurti, Aurobindo, Gurdjieff e outros – e isto apesar de Guénon, Coomaraswamy e Schuon terem incansavelmente fornecido as chaves necessárias para tal discernimento. Mas Deus conhece os seus, e não é uma questão de números, mas estritamente uma de dimensão qualitativa no seio deste Reino da Quantidade, tal como Guénon caracteriza o momento cósmico que estamos a passar neste momento.

O assunto pertinente para o leitor deste livro não é o do tipo macrocósmico da possibilidade ou impossibilidade de uma restauração tradicional – algo que apenas a intervenção do Céu pode alcançar – mas sim um microcósmico, nomeadamente, a certeza que algo, com base neste conhecimento, pode e deve ser feito em cada alma individual, enquanto ainda neste planeta, e antes daquele momento em que é lançada para o Oceano Cósmico, onde apenas as considerações tradicionais têm qualquer relevância – quando o véu ilusório de um auto-suficiente materialismo é removido e ficamos despidos perante os benéficos ou terríveis modos da Realidade.

Uma pessoa que tenha descoberto verdadeiramente as suas fundações tradicionais ficará para sempre em paz consigo próprio e o seu universo, sabendo, usando as palavras de Guénon, “que “o fim de um mundo” nunca é e nunca pode ser nada mais do que o fim de uma ilusão.”