quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Em cada homem um artista

Na presente publicação volta-se a abordar o tema da arte com a apresentação simultânea de mais um livro recomendado e de uma nova tradução. O livro é o “Every Man An Artist: Readings In The Traditional Philosophy of Art” de Brian Keeble, uma antologia dedicada à arte publicada pela World Wisdom em 2005. A tradução não é mais do que a introdução do próprio autor à obra, na verdade um excelente ensaio sobre o significado da arte e a sua actual corrupção. Uma obra essencial e que se recomenda vivamente.




Esta antologia de textos confronta na verdade dois mundos; mais propriamente uma filosofia tradicional ou uma sabedoria sobre a vocação, com aquilo que a substituiu: um substituto que teve o seu início como uma glorificação do homem e terminou, a seu devido tempo – o nosso tempo – como uma justificação para o sub-humano. Durante milénios, os assuntos relacionados com a vocação humana, a arte, o trabalho, o talento, eram colocados na matriz de um entendimento do homem como uma criatura criada à imagem de Deus. Apesar de se admitir a sua natureza física, o homem era dotado, na sua vida terrena, com a vocação de apreender a sua verdadeira natureza, a espiritual, na realidade a natureza espiritual de todas as coisas. Esta vocação, pela sua própria natureza, não era a herança de uma elite especializada, mas sim a verdadeira distinção do que significava ser verdadeiramente humano. A arte, como a norma ou a perfeição do trabalho humano, era o meio essencial pelo qual o homem e a mulher apreendiam, através dos requisitos da vivência adequada, o seu relacionamento integral com a natureza sagrada da realidade.

A partir da Renascença esta filosofia tradicional, na qual a arte era entendida como uma virtude ou um hábito da mente, foi gradualmente substituída por um entendimento da arte como algo referente a uma categoria seleccionada de coisas produzidas por pessoas designadas por artistas, que possuíam um temperamento excepcional, e que criavam obras com ressonâncias estéticas e emocionais especiais.

Este desenvolvimento foi agora levado a explorar os limites do potencial irracional que a ele pertenciam desde o início. As sementes da destruição foram semeadas no instante em que se aceitou que a arte não necessitava de se basear em nada para além do humano: isto é, a doutrina da arte pela arte. O resultado é que muito do que é considerado arte é agora incompreensível para a maioria, e parece não servir qualquer propósito para além da personalidade “excepcional” do seu criador. Ao mesmo tempo, tornou-se de todo impossível definir arte numa sociedade onde a maior parte dos homens e mulheres são excluídos de um envolvimento efectivo com qualquer tipo de arte. Apesar da presente colecção não abordar directamente tais temas, podemos referir que esta exclusão da maioria do envolvimento com a arte, cria e promove uma grande injustiça social e económica. A questão imediata que nos interessa aqui é se a filosofia tradicional é apenas um interesse antiquado, ultrapassado por algo mais sábio, mais abrangente, mais efectivo na sua habilidade para explicar quais as necessidades espirituais e práticas do homem e como elas podem ser alcançadas; ou se a filosofia tradicional pode ser revelada como sendo um repositório vivo de sabedoria, que pode desafiar e demonstrar, de forma efectiva, o quanto inadequado é o que a substituiu. De uma coisa podemos estar certos: sempre que a compreensão do homem do mundo físico e da sua relação prática com ele não esteja em harmonioso acordo com as suas aspirações espirituais, o resultado será sempre ruína.

Nenhuma filosofia de arte se pode dar ao luxo de ser verdadeira apenas em teoria. Ela deverá ser igualmente verdadeira na prática. Qual seria a razão de ser de uma filosofia de arte que não buscasse ser verdadeira em ambas. Nesta necessidade integral estão ancoradas todas as complexidades da situação. Qualquer filosofia de arte tem de pressupor um artista e, uma vez que toda a arte surge em primeiro lugar no artista, deverá ter em consideração a natureza do homem como artista, como “criador” das obras de arte. Apenas aí poderá essa filosofia considerar a operação pela qual a arte é aplicada. E esta é aplicada a uma estonteante variedade de situações; desde praticamente todas as substâncias físicas até a modos mais subtis da realidade – desde a pedra (escultura) até às vibrações do ar (música), desde de tubos a sinfonias.

Adicionalmente, uma verdadeira filosofia de arte deverá ter em consideração a evidência histórica que nunca existiu uma altura em que o homem e a mulher não fossem artistas. No modo com interagem através do corpo e da mente com a natureza do mundo, é da própria essência do homem e da mulher que sejam artistas, criadores de coisas necessárias para viver uma vida em que, simultaneamente e na mesma medida, as necessidade da vida corporal e as necessidades da vida espiritual sejam satisfeitas. Esta antologia propõe, assim, que aquilo a que Ananda K. Coomaraswamy designou pela “verdadeira filosofia de arte” (expostas em dois dos ensaios aqui incluídos), é precisamente isso, e que aquilo que a substituiu é uma compreensão demasiado restrita da real natureza do artista como agente e, consequentemente, uma noção demasiado especializada do que é a arte.

A filosofia tradicional da arte nunca foi extensamente formulada excepto no modo em que foi praticada durante séculos pela maioria dos homens e mulheres. Não existiu qualquer razão para articular esta necessidade de forma sistemática, até à altura em que a sua ausência, e a resultante confusão que a substituiu, tornou este trabalho imperativo. Este trabalho foi cumprido por Coomaraswamy que, regressando aos princípios primeiros, propôs a verdadeira filosofia da arte com base na philosophia perennis – a totalidade das verdades universais e axiomas metafísicos que estão na base das tradições sagradas do mundo. Coomaraswamy não trabalhou sozinho, ele foi um de um grupo de académicos independentes que vieram a ser conhecidos como tradicionalistas ou perenialistas. Para além de Coomaraswamy, a primeira geração deste grupo incluía René Guénon, Frithjof Schuon, Titus Burckhardt, Marco Pallis, Martin Lings e Whitall Perry. Outros surgiram a partir daí seguindo os seus passos. Tal era a convicção de Coomaraswamy – baseada numa inigualável erudição – na verdade universal e na normalidade da philosophia perennis que, numa carta a Aldous Huxley em 1944, ele a descrevia como um corpo de doutrina de “inteligibilidade auto-autenticável [que] explica mais coisas do que as explicadas em qualquer outro lugar.” Aquilo que espero que emerja da presente colecção é, não só um sentido daquilo que é a filosofia tradicional da arte, mas também, incidentalmente, um sentido daquilo que substituiu este corpo de sabedoria, e de que forma este substituto explica menos coisas.

Alguns anos atrás o Museu Britânico em Londres publicou um catálogo sobre arte Românica, no qual estava uma ilustração de um diagrama cosmológico Cristão do século XI mostrando a harmonia do microcosmos e do macrocosmos na constituição do Universo. A legenda da ilustração terminava com a afirmação de que este diagrama, e outros do género, “podem ser descritos como obras de arte por mérito próprio.” Mais recentemente, um conhecido jornal descrevia o trabalho de uma senhora que tecia paisagens com coloridas lãs e um garfo de mesa. A senhora não havia tido qualquer sucesso até que, em vez de se denominar artesã, decidiu se promover como “artista.” Noutra situação, uma revista dedicada à “cultura pop” falava dos anos sessenta como um período em que a música rock se estava a tornar consciente do seu crescente estatuto de “arte”. Todas estas afirmações, escolhidas deliberadamente a partir de fontes muito distintas, têm algo em comum. Não excluindo completamente a possibilidade de que devemos entender a arte como algo que requer perícia na produção de coisas, cada afirmação assume que a arte está relacionada com uma categoria seleccionada de objectos avaliados apenas por razões estéticas. Por essa razão têm prestígio e são distanciadas das coisas da vida comum, as quais são, de qualquer forma, coisas feitas por homens e mulheres, mas não são arte. A arte, segundo este entendimento, em vez de se localizar no artista é aplicada a objectos externos. Este desvio de significado tem vindo a se desenvolver há já algum tempo. Do entendimento antigo da palavra “arte” como perícia (ou como uma virtude do intelecto que leva à perfeição do trabalho), ao sentido moderno de arte como uma mal definida mas prestigiada categoria de objectos estéticos, está um caminho com muitas e subtis curvas. Tal como Owen Barfield referiu na sua “History in English Words”, foi apenas a partir da Renascença que a arte (que antigamente se referiria também àquilo que hoje chamamos de ciência), passou a ser entendida como uma actividade sem relação com as muitas produções e acções necessárias à vida. Hoje, com surpreendente regularidade, notamos o quanto é frequente em discussões no campo das artes, estas rapidamente tropeçarem na questão aparentemente impossível de responder “o que é a arte?”. Daqui devemos concluir que a palavra “arte”, no seu uso moderno, pouco ou nada elucida.

Certamente concordamos que a arte é importante. Certamente concordamos, embora mais tacitamente, que a realização nas artes é desejável para o maior número de pessoas possível. Mas existem sinais de que estamos desconfortáveis com este consenso, numa altura em que a arte não tem um lugar significativo nas vidas da maior parte dos homens e mulheres. Quanto mais diligentemente as artes são promovidas (por um crescente exército de administradores de arte e empresários), mais elas são recomendadas para o nosso consumo passivo, por vezes como se fossem um remédio que devemos tomar para a nossa saúde. A juntar à confusão, é agora prática comum que o Estado conceba fundos públicos a um artista avant-garde cuja principal motivação é colocar em questão qualquer noção estabelecida do que é a arte. O nosso acordo tácito que o artista é, de certa forma, uma pessoa especial (ou talvez, mais precisamente, uma pessoa com um especial tipo de sensibilidade), implica que essa arte tenha o poder de aliviar a condição de comum vulgaridade que é a vida da maioria: os não artistas. Esta assumpção (na realidade pertence mais à natureza de uma superstição), está tão intrincada que, mesmo quando somos confrontados com artefactos que são obviamente um reflexo da nossa corrupção espiritual e decadência cultural, a ideia de que o artista é um ser elevado persiste.

Adular a “criatividade” e a inovação por si só, como é caso na nossa sociedade, é equivalente a argumentar que o trabalho de um artista não tem de responder a nenhum princípio inteligível ou ordem de conhecimento: que não pode ser julgado em relação a qualquer estrutura de valores, ou ser assimilado a qualquer ordem de significado para além dele próprio. É concordar que a arte é um fim em si própria. Este auto-imposto isolamento é, em última análise, a medida da irrealidade daquilo que tentamos rotular como arte. Pensamos na criatividade como uma extensão sem restrições das fronteiras que necessitam de ser desafiadas, de modo a que estas não inibam e encurtem a nossa necessidade de explorar novas regiões da mente. Mas aqui reside um paradoxo. Que valor pode ser atribuído a essas ideias de liberdade e de fronteiras num meio artístico perto da anarquia? Seria saudável reconhecer que esta actividade auto referenciada, que pensamos ser a criatividade, assenta num sentido de liberdade totalmente espúrio que o dispensa de qualquer mais ampla responsabilidade.

O entendimento académico da arte como uma coisa feita e da prudência como uma acção cumprida – uma a perícia no fazer, a outra a perícia na acção – cria uma distinção vital que nos impede de assumir que o fim para o qual a perícia é aplicada é o mesmo que o fim para o qual a vida deve ser dirigida. Fazer isto é, efectivamente, limitar a vida ao aperfeiçoamento do trabalho e, assim, tornar o trabalho mais importante que o próprio homem. Para além de se tornar perigosamente próximo de definir o homem meramente em relação às suas produções, levanta uma outra questão: em relação a que padrão devem as obras humanas ser julgadas? Uma bomba pode ser feita de forma perfeita pela arte do fabricante, mas é a explosão letal que demonstra a sua perfeita perícia um bem que promove a perfeição da vida? Tal questão ajuda nos a compreender a razão pela qual, de acordo com a filosofia tradicional, a virtude da arte, apesar de não confundida com a virtude moral, está, no entanto, a ela intimamente ligada. Ninguém age isolado. Nenhum homem ou mulher é tão “livre” que possa não contribuir, bem ou mal, para a estrutura social e material e bem-estar do mundo. Isto implica que todas as acções têm consequências e, por essa razão, implicam responsabilidades.

A perda da distinção entre arte e prudência não é apenas sentida pelo artista. Esta perda estende-se ao patrono, que perdeu o conhecimento para discernir o bem para o qual as coisas criadas com perícia devem ser dirigidas. Estende-se, ainda, ao utilizador final, que perdeu os meios culturais para reconhecer como devem ser utilizadas as coisas criadas com a adequada perícia. Também perdido foi o relacionamento interactivo entre o artista, o patrono e o utilizador final, pelo qual a arte se torna um modo de vida, numa série de acções mutuamente suportáveis através da sociedade.

E interessará se produzimos coisas através de máquinas ou manualmente? No fundo, estas são simplesmente diferentes técnicas para a produção de bens necessários, e a produção mecânica é de longe a mais eficiente. É claro que interessa. O padrão puramente utilitário da eficiência envolvida na produção mecânica dilui a distinção entre perícia e técnica. Não reconhece a responsabilidade intelectual que é própria ao homem como um criador talentoso de coisas. Tornou-se necessário ter um claro entendimento do que foi usurpado no domínio da perícia, pois nunca antes o artista (como homo faber) teve que trabalhar num meio tão completamente dominado pela máquina – esse aparelho de absoluta utilidade cuja forma e função tão impiedosamente exclui todas as qualidades humanas no modo em que iguala os meios aos fins. Não é uma coincidência o facto das máquinas, ao retirar ao criador a sua responsabilidade intelectual, se tornarem no instrumento perfeito da catástrofe que é o mundo material manipulado puramente em termos quantitativos.

A perícia é uma habilidade humana aplicada a algo, de forma a alcançar um determinado fim. Claramente, ter perícia é superior a não ter. Isto é ainda reconhecido numa sociedade largamente moldada por formas de mecanização que recorrem a trabalho que não requer qualquer perícia. A perícia encara à partida um dado fim ou resultado, um objectivo para a sua aplicação que é superior àquilo que seria no caso da sua ausência. A perícia é, desta forma, um conhecimento e um discernimento de um fim a ser atingido – neste sentido, é indistinguível da arte no sentido tradicional. A técnica difere da perícia na medida em que é o modo imediato da aplicação da perícia. A técnica é uma habilidade praticada ou um meio pelo qual o conhecimento e discernimento da perícia (arte) são consumados em acção. A perícia deve ser entendida, de modo mais amplo, como sendo tanto uma função da inteligência, como uma habilidade prática. A técnica é uma função mais localizada da perícia, não da mente. A técnica pode ser operativa na ausência da perícia; a perícia nunca é operativa sem a técnica. Parte da perícia está na mente, parte é realizada na aplicação. Toda a técnica é uma aplicação (uma pequena parte pode ser considerada como algo de residual na memória).

Mas existe outra dimensão para a noção da responsabilidade intelectual do criador que deve ser considerada. Intrínseca à natureza produtiva da perícia e da técnica tem-se a repetição e, assim, a comparação. Se uma coisa é repetida, a comparação entre duas torna-se possível, enquanto que a coisa feita como única está, por definição, para além de qualquer comparação, não tem realidade genérica. Isto significa que existe uma sabedoria intelectual, conceptual e prática em relação ao que é, por exemplo, um ícone ou uma cadeira, e como cada um deve ser usado. Cada um é um “tipo” que tem uma forma inteligível. A “peça única” (esse ídolo do avant-garde) que está para além da comparação, é isolada para lá de qualquer contexto de sabedoria ou conhecimento que nos informa sobre o que é, e como deve ser usada. No conhecimento e discernimento que é logicamente anterior à aplicação da perícia, deve existir uma sabedoria sobre o fim para o qual a perícia é aplicada. Esta sabedoria é um conhecimento do que serve e do que é apropriado em qualquer circunstância em que a perícia humana é solicitada. Por extensão, é também uma sabedoria do quão correctamente foi aplicada a perícia. É inconcebível que tal sabedoria possa ser exercida sem um amplo acordo para com um padrão e um contexto aceitável, pelo qual um resultado possa ser medido. Se o produto da perícia (arte) é medido por um padrão reconhecido de comparação, então a ocasião da perícia será uma convenção quanto à validade da sua aplicação. Na verdadeira aplicação da perícia, o artista deve ser capaz de conceber qual é o fim apropriado para a sua arte. De outra forma, não poderá existir uma efectiva correlação entre a imitação e o resultado, a qual é a base de todo o julgamento artístico, bem como parte da razão pela qual perguntamos, de uma obra de arte que não compreendemos, “O que é isto?”

Em qualquer parte em que a arte seja entendida como uma virtude ou um hábito da mente que se mantém no artista, estas verdades aplicam-se a toda a criação com recurso à perícia. A sua “auto-autenticada inteligibilidade” exemplifica a afirmação de Platão que “não podemos dar, de forma justa, o nome de arte a qualquer coisa que seja irracional.” Onde estas verdades forem mantidas de forma operativa, a arte é ocasional e provém de convenções que não fazem qualquer distinção entre artistas e não artistas. Não será necessário referir que a mutualidade de tais verdades estarão tão efectivamente presentes nas condições industriais de manufactura, como estão no meio da arte contemporânea. No sistema industrial, o operador das máquinas é usurpado da sua responsabilidade para exercer a sabedoria e o discernimento da perícia que deveria, por direito próprio, ser sua, e é sua integralmente em virtude da sua natureza espiritual. O moderno criador da “bela” arte simplesmente repudia tal responsabilidade, na medida em que desrespeita as convenções, aspirando continuamente a produzir obras sem precedente, rejeitando a validade de qualquer padrão para além da sensibilidade estética.

O facto da questão “O que é a arte?” ser tão rapidamente e frequentemente proferida em discussão, é apenas uma das muitas indicações que a cultura moderna se encontra num estado de confusão. O resultado social e prático é o estado de crise que força constantemente à reformulação dos princípios e regras para a conduta dos assuntos humanos, enquanto que, ao mesmo tempo, falhando na garantia de um critério filosófico e intelectual que tornaria inteligível o necessário caminho para uma acção de remedeio. Esta “erosão” da inteligibilidade que lança tudo na dúvida, é o resultado de uma subjectividade que nunca é tida em consideração em qualquer critério objectivo. Na sua essência, a confusão não é mais do que o seguinte: se a arte é, de certa forma, tudo aquilo que alguém decide que seja, temos apenas de nos proclamar como “artistas” para produzir obras de arte. Nesse caso, todos os homens e mulheres são artistas através dessa proclamação. Mas se todos são artistas onde está a distinção particular e o prestígio (tão evidentemente desejado) de ser um artista?

Regressámos nós, assim, ao entendimento tradicional, no qual, em virtude de possuir o hábito da mente que é a norma do trabalho humano, cada pessoa é um artista? Longe disso. A liberdade arbitrária tomada pela subjectividade auto-governada que é o ideal do artista moderno, não é mais do que o entronamento da vocação e da originalidade para governar, sem responsabilidade, as amplas circunstâncias da vocação, modo de vida e justiça exercida à luz das verdadeiras necessidades humanas. Ficamos com este tipo de paródia de liberdade interior do intelecto e da vontade de alcançar o bem e o belo, que é o objectivo final de todas as coisas feitas com perfeição, e que constitui parte dos ensinamentos tradicionais.

Da perspectiva tradicional do que constitui a vocação humana, qual é especificamente o fardo da nossa era?

Aqui, é necessário compreender duas coisas que vão para além das questões da arte, mas que constituem uma profunda e inescapável base para a forma como a arte é concebida e praticada. Mantendo em mente que, na esfera das artes, não existem absolutos, em primeiro lugar, deve ser entendido que estamos a viver no final de um ciclo cósmico para o qual fomos destinados. Em relação à depreciação metafísica da história, corresponde a um tempo em que tudo é colocado em questão e nenhuma verdade parece ser capaz de se manter firme. Esta tendência para a depreciação, na medida em que afecta as artes, é manifestada na aceitação passiva geral das mais negativas possibilidade do estado humano na nossa sociedade. Isto não pode ser evitado, visto que o final do ciclo terá que ser exausto da totalidade dessas possibilidade – positivas e negativas – das quais é constituído.

Em segundo lugar, e de forma contrária, a alma humana requer o reconhecimento de um movimento espiritual compensatório para contrariar esta precipitação descendente, de modo a que seja salva de um determinismo que iria anular qualquer tentativa para transcender a história. Se a mera passagem do tempo pudesse, por si própria, anular a aspiração espiritual, qual seria a necessidade da oração, quanto mais o esforço de procurar a Verdade sem a qual não poderá existir o reconhecimento da natureza contingente do passar do tempo? Muitos dos que contribuem para esta antologia aludem ao princípio Beneditino onde “trabalho é oração.” Isto refere-se a interpretações dos critérios cósmicos e morais nas leis do correcto modo de vida (uma das maiores preocupações na obra de Wendell Berry, por exemplo), que torna possível moldar adequadamente a vida humana ao modelo divino.

Uma vez que é contra estas condições que, para o homem moderno, todas as actividades humanas decorrem, temos que aceitar que não poderá existir nada na esfera da cultura comparável com os feitos do passado. Apesar da esperança de Titus Burckhardt para uma renovação da arte sagrada no Ocidente, existe um tempo para a arte hierática do Egipto, na qual o ego estava completamente ausente, um tempo para as cristalizações harmónicas do Gótico, um tempo para o humanismo titânico da Renascença, um tempo para o “realismo” do século dezanove e, terá de ser admitido (mesmo que apenas para medir a descida de uma transcendência do humano, para uma demonstração do sub-humano), um tempo para um urinol suspenso num fio assinado R. Mutt.

Todas as vozes na secção final da presente colecção, e algumas na secção intermédia, expressam a sensação de terem que trabalhar contra a corrente, de lutar contra a falta de coerência, de um empobrecimento de contexto, quando se trata de tornar efectivo a totalidade da prática que a sua arte exige. Nada, na arte moderna, foi para além do radical desafio de Duchamp em colocar em questão o status e as fronteiras da arte na sociedade moderna. Mas apenas o apelo aos princípios primeiros, feito pela filosofia tradicional (por exemplo por Coomaraswamy), em “explicar mais e melhor,” toma em consideração todos os factores que contribuem para um entendimento totalmente inclusivo da natureza e da função da arte. E a arte é, segundo este entendimento, apenas um modo (o produtivo) de uma mais ampla e profunda concepção da vocação. Do ponto de vista do artista ou artesão contemporâneo não é, de todo, uma questão das doutrinas tradicionais providenciarem uma filosofia recuperada e uma fórmula de trabalho em que se possam basear. Nem é, de todo, uma questão de disponibilidade de talento individual. A falta de coerência e empobrecimento do contexto mencionado, aponta claramente para preocupações para além do uso de uma arte ou perícia. No lado interno, por assim dizer, existiriam muitos imponderáveis de educação, de gosto estético e preferências pessoais acumuladas que provavelmente se tornaram hábitos da mente, para o artista contemporâneo prosseguir como se a filosofia tradicional tivesse instantaneamente limpo todas as confusões agora associadas com as questões de vocação e de arte. Coomaraswamy disse de Eric Gill que “ele inventou um modo humano de trabalhar e descobriu que era aquele de todas as sociedades humanas.” Mas o próprio Gill, provavelmente mais consciente das dificuldades práticas envolvidas, sabe-se ter dito “Aquilo que alcancei não tem qualquer consequência – apenas pode ser considerado o princípio – irá levar gerações.”

Do lado externo, não é para o “criador” determinar a qualidade no seu patrono. As forças sociais e económicas são uma parte significativa do patronado, bem como um entendimento da natureza da vocação – um conceito relativamente obsoleto na nossa era pós-industrial. A única preocupação, como criador, é olhar para o bem do trabalho a ser feito.

O desafio colocado pela filosofia tradicional deverá ser o de voltar a focar a atenção sobre o último instrumento da arte: o próprio homem. O que é o homem? Nenhuma elaboração sobre a teoria estética pode esconder o facto da arte, da perícia, do trabalho (todos eles provem da mesma raiz), repousarem sobre questões mais amplas como a beleza e a verdade, o bem e o mal, justiça, moralidade e ética. Está na mente do homem que os erros surgem e que a falsidade é permitida e considerada uma presença aceitável. Está na mente do homem que as ilusões da modernidade devem ser afastadas por um conhecimento e uma sabedoria de acordo com a duradoura natureza destes mais amplos assuntos.

Para responder ao bem ensaiado criticismo que a defesa da visão tradicional da arte é invocar o passado, ordem morta das coisas que pouco ou nada pode fazer para remediar os males e a confusão actuais: isto é não conceber o nível a que o remedeio poderá ser efectivo. Qualquer ajuste ou mudança de direcção ao mero nível da estética ou prática, está destinada a acarretar em si as mesmas confusões que nos apoquentam agora, se essas mudanças não alcançarem os princípios primeiros (formulados nas secções i e ii) de conhecer e ser, a partir dos quais todas as acções humanas emergem. Precisamos de despertar para essas verdades fundamentais que dão valor e significado aos nossos pensamentos e acções. A filosofia tradicional, longe de invocar relíquias do museu de história, aponta para a necessidade de uma testemunha eterna, uma intuição directa das realidades do intelecto, que são a verdadeira base a partir da qual a arte provém.

* * *

A universalidade da tradicional ou “verdadeira” filosofia da arte foi coerentemente exposta, na sua essência, na obra de Ananda K. Coomaraswamy. Para demonstrar esta universalidade numa escala compreensível, com todas as diferentes formulações necessárias para ter em consideração a variedade de condições espirituais e práticas da sua aplicação externa, seriam necessários diversos volumes. Nenhuma tentativa deste género é aqui procurada. A presente colecção, enquanto limitada na sua generalidade ao Ocidente e dirigida predominantemente a uma audiência ocidental, procura dar um especial enfoque à interacção do tradicional e do moderno num volume facilmente manejável.

A pequena secção “Intimations”, não faz mais do que semear algumas sementes. Sementes nas quais, no entanto, completas áreas de discurso filosófico se encontram em potência, de modo a germinarem nos temas principais na subsequente exposição teórica da natureza e do lugar da arte na vida humana. O cerne da colecção como um todo encontra-se nos dois grandiosos ensaios sinópticos de Coomaraswamy na secção “Formulations”. Estes dois ensaios cobrem o período desde Platão até à formulação escolástica da teoria na Alta Idade Média. Na sua clareza e profundidade, baseada em fontes contemporâneas, Coomaraswamy demonstra que a visão tradicional da arte é dependente, e baseada, num mais vasto corpo de doutrina que é a philosophia perennis. É precisamente este suporte e dependência que permite que a “verdadeira” filosofia da arte explique mais e melhor que as filosofias mais tardias.

Outros contribuintes para esta secção, muitas vezes trabalhando a partir do conhecimento dos textos de Coomaraswamy, fazem as suas “formulações,” por vezes pela necessidade de clareza teórica (Schuon, Burckhardt), outras provenientes de uma necessidade de casar a prática com os princípios primeiros. Eric Gill, por exemplo, não via qualquer contradição entre a sua prática como um pioneiro escultor, gravador e polemista do século vinte, e a sua profunda fé Católica. Na realidade, uma era necessariamente o suporte da outra.

A face polémica desta colecção – e que é intencional – surge sobretudo na última secção, “Reverberations”. Esta secção demonstra, espero, a continuidade da relevância dos ensinamentos tradicionais. Cada um dos autores é um dos principais praticantes na sua área – que inclui a pintura, a poesia, a olaria, a caligrafia, a música e, no caso de Wendell Berry, a agricultura, a mais fundamental de todas as artes. Todos estes praticantes sentiram na sua prática das suas muito diferentes artes, as tensões internas de uma dupla necessidade: libertarem-se do pântano contemporâneo de ideias vagas e mal definidas do que constitui a arte; e, depois, moldar a sua própria prática a um modelo que tenha em consideração a dimensão inerentemente espiritual da vocação humana. O “Art and Sacrament” de David Jones oferece o mais reactivo e detalhado resumo que conheço sobre as muitas tensões e dilemas que enfrentam os artistas contemporâneos que se pretendem manter fiéis com a natureza ultimamente sacramental da arte, enquanto mantendo uma legítima relevância para a sua própria situação histórica.

Uma última palavra, um ensaio escrito especialmente para a presente ocasião, é dada por Sir John Tavener, cuja música tem sido largamente reconhecida como relevante para o seu tempo, e que providencia um autêntico suporte para a contemplação de uma realidade sacramental.

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Every Man an Artist

I INTIMATIONS

Chapter 1 PLATO
Chapter 2 ARISTOTLE
Chapter 3 PLOTINUS
Chapter 4 THE HOLY BIBLE
Chapter 5 CORPUS HERMETICUM
Chapter 6 DIONYSIUS THE AREOPAGITE
Chapter 7 ERIUGENA
Chapter 8 ST JOHN OF DAMASCUS
Chapter 9 ST THEODORE THE STUDITE
Chapter 10 ST THOMAS AQUINAS
Chapter 11 ST BONAVENTURE

II FORMULATIONS

Chapter 12 LUC BENOIST The Origins of Art
Chapter 13 RENÉ GUÉNON Initiation and the Crafts
Chapter 14 RENÉ GUÉNON The Arts and their Traditional Conception
Chapter 15 ANANDA K. COOMARASWAMY A Figure of Speech or a Figure of Thought?
Chapter 16 ANANDA K. COOMARASWAMY The Christian and Oriental, or True Philosophy of Art
Chapter 17 FRITHJOF SCHUON Principles and Criteria of Art
Chapter 18 JOHN HOWARD BENSON and ARTHUR GRAHAM CAREY The General Problem
Chapter 19 ERIC GILL The Four Causes
Chapter 20 ERIC GILL Of Beauty
Chapter 21 SOETSU YANAGI Pattern
Chapter 22 TITUS BURCKHARDT The Decadence and Renewal of Christian Art

III REVERBERATIONS

Chapter23 DAVID JONES Art and Sacrament
Chapter 24 KATHLEEN RAINE The Vertical Dimension
Chapter 25 WENDELL BERRY Two Economies
Chapter 26 CECIL COLLINS `Why does Art today lack inspiration?'
Chapter 27 BERNARD LEACH Integration
Chapter 28 MICHAEL CARDEW On Pottery and Potting
Chapter 29 EDWARD JOHNSTON Formal Penmanship defined by the thing
Chapter 30 SIR JOHN TAVENER Towards the Musica Perennis

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