Trata-se de um breve estudo sobre a monossílaba sagrada do Hinduísmo, Om, e que julgo ter interesse para os leitores do Sabedoria Perene. Neste trabalho destaco, para além da óbvia alusão e recurso a René Guénon, a referência à importante e recomendada transcriação do Bhagavad Guitá de António Barahona, com notas e um excelente glossário que segue claramente os ensinamentos de Guénon; e a referência à monumental obra de Alain Daniélou, autor fundamental para o estudo do Hinduísmo. Aproveito para deixar aqui um profundo agradecimento a um leitor deste blog que foi um grande incentivo para a sua descoberta.
Fica então o texto e a esperança de que elucide um pouco do que representa o mais sagrado som, Om.
Comentar a mais sagrada sílaba do Hinduísmo pode conduzir a uma viagem sem retorno, a um programa completo de vida, pois é como se nela coubesse todo o cosmos.
Será talvez adequado começar esta breve incursão no seu estudo pela análise da importância basilar que esta tem no Hinduísmo como origem da própria “religião” (mais propriamente, Sanātana Dharma). Para tal vamos recorrer às palavras de alguém totalmente habilitado para o efeito, o Jagadguru, HH Sri Chandrasekharendra Saraswathi Swamigal.
Diz-nos este mestre que sendo o Hinduísmo uma religião com origens primordiais, levanta-se a questão sobre a sua origem, uma vez que, apesar de esta ser frequentemente atribuída a Vyassa (autor do Brahmasutra) ou a Krishna (autor do Bhagavad-Guitá), ambos afirmam que os Vedas já existiam. Os próprios risis, através dos quais nos chegaram os mantras, declaravam: “Não criámos os Vedas”; “É verdade que os mantras se manifestaram ao mundo através de nós. Por essa razão os designamos por ‘mantras-risis’.” Continua o Jagadguru que todos os sons tem origem no espaço, e a partir deles surgiu a criação. Assim, os Vedas são apaurusēya (não o trabalho de qualquer autor humano), são o próprio sopro do Paramātman na sua forma como espaço.
Será este conceito que devemos ter presente quando vemos na “literatura” Hindu a sílaba Om identificada com a Realidade Suprema. Om é, assim, a vibração primordial, a essência de tudo o que existe, sol, lua e estrelas. É o Brahma em forma de som, o poder vital que mantém todas as coisas ligadas.
Mudemos agora para questões mais “técnicas” e para tal vamos recorrer ao excelente glossário de António Barahona que consta da última edição da sua autorizada transcrição da Bhagavad-Guitá, da qual foram retiradas as seguintes considerações relativas à sílaba Om.
Esta sílaba (akxara, etimologicamente significando indissolúvel ou indestrutível) constitui a unidade primordial e o elemento fundamental da linguagem. Refere Barahona que qualquer raiz verbal, em sânscrito, é sempre silábica, denominada dhatu, semente, porque mediante as suas possibilidades múltiplas e o seu desenvolvimento origina o discurso. O monossílabo sagrado Om, composto de três sons (A, U e M) simboliza todas as trindades divinas, como, por exemplo, a trimurti: A representa o Criador (Brahmá); U o Conservador (Vixnu); M o Destruidor e Regenerador (Shiva). E Om simboliza também, tal como já referimos atrás, Brahma realizado, o Verbo divino sob forma audível.
Semente da linguagem, Om é o mantra que condensa todos os mantras e a sabedoria total. Lê-se na Tchhandôguya-Upanixad: “A essência de todos os seres é a terra, a essência da água a vegetação, a essência do homem a palavra, a essência da palavra o Rig-Vêda, a essência do Rig-Vêda o Sama-Vêda e a essência do Sama-Vêda a Udguitá, que é AUM.”
Continuemos com Barahona. O som da letra A parte do fundo da cavidade bocal e é gutural, o U pronuncia-se desde a base da placa de ressonância da boca até á sua extremidade, e M, o último som da série labial, produz-se com os lábios unidos. Os sons unidos de A e de U unem-se no de O, e este perde-se na ressonância nasal, final, de M (bindu, «a gota») sem, no entanto, se extinguir, mas prolongando-se indefinidamente, indistinto e imperceptível.
Para deixarmos este autor, terminamos com a sua referência a Om como símbolo ideográfico de Átma, transcrevendo a sua tradução da Mandukya-Upanixad onde lemos: “Este Átma é representado pela sílaba Om, que, por sua vez, é representada por caracteres (matra) de maneira a que as condições de Átma são os caracteres de Om, e, inversamente, os caracteres de Om são as condições de Átma.” Voltaremos a esta Upanixad antes de terminarmos, onde este assunto irá ser aprofundado.
O próximo passo no nosso passeio pela imensidão desta monossílaba sagrada terá de ser a abordagem dos mantras, ‘formas de pensamento’. Para tal, voltamo-nos para outra autoridade do estudo do Hinduísmo, Alain Daniélou, e para a sua obra “The Myths and Gods of Índia”, da qual foram extraídas as próximas considerações.
Manu, o Dispensador da Lei, é referido como tendo sido o primeiro ser a perceber as ‘formas de pensamento’ dos objectos e de as ter ensinado e explicado ao homem, nomeadamente as suas relações com os objectos, criando a primeira linguagem.
As ‘formas de pensamento’ são entendidas como sendo as formas ou corpos subtis das coisas, e são fórmulas permanentes e indestrutíveis das quais as impermanentes formas físicas podem sempre ser derivadas. A linguagem que Manu ensinou foi a linguagem primordial, a eterna e verdadeira linguagem criada a partir de palavras-raiz (monossílabas elementares com significado).
A esta linguagem original e verdadeira pertencem as pronunciações sagradas usadas na adoração e designadas de mantras. A palavra mantra significa ‘forma de pensamento’, e é através do seu conhecimento interno que podemos compreender a natureza daquilo que representa.
Como padrões abstractos a partir dos quais a natureza é derivada, os mantras são, de certa forma, idênticos às divindades. Eles representam a natureza das divindades e são delas inseparáveis. O poder da divindade é inerente ao seu nome, à sua fórmula, ao seu mantra, o qual se torna no veículo subtil através do qual se podem estabelecer contactos entre a divindade e o devoto. Os mantras são, assim, a chave de todos os rituais em todas as religiões e são, da mesma forma, usados na maior parte das formas de magia.
Cada divindade é representada por um mantra distinto e é apenas através destes misteriosos sons que as imagens podem ser consagradas e tornadas “vivas”. É o poder do mantra que faz descer a divindade e a faz penetrar a imagem.
Existe uma classe especial de mantras, denominadas por ‘mantras-semente’, que são constituídas por monossílabas e que representam a complexa natureza das energias elementares ou das divindades. Estas poderosas monossílabas são as raízes do poder do discurso e produzem ecos em todos os aspectos da manifestação. Acredita-se que a linguagem primordial tenha sido produzida a partir destas onomatopeias e que foi essencialmente monossilábica. As sílabas que expressam as forças elementares da Natureza (Prákriti) são os verdadeiros nomes das divindades e das suas imagens. Os deuses estão obrigados a responder a estes sons.
Chegamos assim, seguindo os passos de Daniélou e nos quais vamos continuar, à mais importante das principais ‘formas de pensamento’ ou ‘mantras-semente’, a Semente da Imensidão (brahma-bīja) ou ‘forma de pensamento’ do Conhecimento da Imensidão (brahma-vidya mantra), cujo som é AUM (Om).
O significado, na linguagem primordial, é “eu curvo-me,” “eu concordo,” ou “eu aceito”. Na Chāndogya-Upanixad lemos: “Na verdade, esta sílaba é acordo: pois sempre que um homem concorda com algo ele diz simplesmente, ‘AUM.’ Isto, de facto, é uma compreensão; isto é, um concordar.”
Este mantra também é designado por “aquele que conduz à outra margem”. É considerado a origem de todos os mantras. É usado no princípio de todos os rituais e a sua principal função é conduzir à realização, à libertação da prisão, à obtenção da Realidade Suprema.
Como símbolo da Divindade, AUM surge como a forma a partir da qual o universo se desenvolve. Desta forma, as três letras têm equivalentes em todas as formas de manifestação. Várias são as equivalências atribuídas a cada uma das três letras da monossílaba e a combinações entre elas. No quadro seguinte, extraído da obra de Daniélou que nos vem iluminando o caminho, resumem-se algumas dessas equivalências.
A estas podemos adicionar que A e U juntos significam “verdade” e “imortalidade”, e que, tal como já referido anteriormente, AUM representa o Ser Uno que permeia o espaço, o tempo e as formas.
Seguindo na análise desta sílaba, podemos ainda aprofundar mais recorrendo às Upanixades onde são distinguidas as oito componentes que a constituem. Na Tāra Upanixad é referido que “A é o primeiro, U é o segundo, M é o terceiro. A nasalização (bindu) é o quarto; o som (nāda) é o quinto; a duração (kāla) é o sexto; a ressonância no tempo (kālātita) é o sétimo. A estes adiciona-se o oitavo, a sua ressonância intemporal.”
Despedimo-nos de Daniélou e seguimos com Arvind Sharma, outro académico de renome, para abordarmos uma componente mais operativa da sílaba sagrada Om. Aqui vamos focar a sua importância na espiritualidade Hindu, mas propriamente para o dárshana do Advaita Vedānta.
A premissa base do Advaita Vedānta consiste em afirmar que a experiência da nossa vida do dia a dia não esgota a realidade, e que essa dimensão em falta pode ser tornada acessível através da prática espiritual. É precisamente nesta prática espiritual que se recorre à sílaba sagrada Om.
No Advaita Vedānta, o aspecto tripartido do som AUM é usado para representar os três estados de consciência:
A Vigília
U Sonho
M Sono profundo
A estas três componentes da sílaba sagrada o Advaita Vedānta adiciona uma quarta que simboliza o quarto estado de consciência, aquele que está para além dos estados que podemos experienciar ao longo da nossa vida do dia a dia, e que serve um propósito espiritual. Este quarto estado é representado pelo silêncio que se segue à pronunciação do AUM. Assim temos:
A Vigília
U Sonho
M Sono profundo
Silêncio Quarto estado
Mas como é que esta sílaba se torna, assim, operativa. Muito resumidamente, a repetição do som AUM em forma de mantra e em meditação permitirá atingir um estado de concentração em que o som AUM absorve ou elimina todos os pensamentos, a mente fica idêntica ao som AUM. Isto significaria, em princípio, que quando o som AUM cantado na mente subsiste, todos os pensamentos deveriam cessar e o som AUM desaparecer. O silêncio resultante representaria a realização do quarto estado.
Esta é a teoria, na prática atingir tal concentração é extremamente difícil para o comum dos mortais. Aqui entra em prática a quarta componente do AUM, o silêncio, podendo definir-se o objectivo final da meditação como o aumento e aprofundamento do silêncio entre dois pensamentos consequentes em AUM. Esta é a fissura no universo que nos abre para o Supremo.
O Om é, assim, o mais importante de todos os mantras, designado por mahat mantra, em cuja meditação pode abrir, efectivamente, as portas para se alcançar o samadhi.
Estas considerações são confirmadas pelas escrituras. Na Atharva-Shikhâ Upanixad é referido que se deve meditar na sílaba Om, símbolo do Supremo Absoluto (Brahma), onde é também feita referência para as suas quatro partes. Na Amrita-Bindu Upanixad é referido que só a parte silenciosa do som M leva ao inaudível, à morada invisível, à realidade última.
Na Amrita-Nâda-Upanixad é recomendado montar a “quadriga do som Om”, tornar Vixnu nosso cocheiro e partir calmamente em direcção à Realidade Última. À medida que nos aproximamos do Si Supremo, devemos abandonar a quadriga e entrar no esplendor do Si por meio da insondável letra M. Esta é a silenciosa e subtil parte de Om.
Para concluir estas considerações sobre a sílaba sagrada Om e já que estamos em plenas considerações metafísicas, nada mais ajustado do que terminar com a lição de René Guénon sobre “As representações simbólicas de Ātmā e as suas condições pela monossílaba sagrada Om”, patentes na sua tradução e comentários (entre parênteses rectos) de um trecho da Mandukya Upanixad relacionado com a correspondência da monossílaba sagrada Om e os seus elementos (mātrās) com o Ātma e as suas condições (pādas), onde é explicado, por um lado, as razões simbólicas para esta correspondência e, por outro, os efeitos da meditação no símbolo e no que representa, ou seja, no Om e no Ātma, o primeiro desempenhando o papel de ‘suporte’ para a obtenção do conhecimento do último.
Este Ātma é representado pela [suprema] sílaba Om, a qual é representada, por seu lado, por letras [mātrās], [de tal forma que] as condições [de Ātma] são as mātrās [de Om], e (reciprocamente) os mātrās [de Om] são as condições [de Ātma]: estas são A, U e M.
Vaishvānara, cujo assento é o estado de vigília, é [representado por] A, a primeira mātrā, porque é a ligação [āpti, de todos os sons, o som primordial A, pronunciado pelos órgãos da fala na sua posição normal, sendo imanentes em todos os outros, os quais são várias modificações deste e que são nele unificadas, tal como Vaishvānara está presente em todas as coisas no mundo sensível e estabelece a sua unidade], e também porque é o princípio [āpi, quer do alfabeto quer da monossílaba Om, tal como Vaishvānara é a primeira das condições de Ātma e a base a partir da qual a realização metafísica, para o ser humano, pode ser alcançada].
Aquele que sabe isto obtém verdadeiramente [a realização de] todos os seus desejos [uma vez que, através da sua identificação com Vaishvānara, todos os objectos sensíveis se tornam dependentes dele e formam uma parte integrante do seu próprio ser], e torna-se o primeiro [no reino de Vaishvānara ou de Virāj, do qual ele se faz o centro em virtude desse mesmo conhecimento e da identificação que implica quando totalmente efectivo].
Taijasa, cujo assento é o estado de sonho, é [representado por] U, a segunda mātrā, porque é a elevação [utkarsha, do som da sua primeira modalidade, tal como o estado subtil é, na manifestação formal, de uma ordem mais elevada do que o estado grosseiro] e também porque participa em ambos [ubhaya, isto é, semelhante pela sua natureza e posição, é intermediário entre os dois elementos extremos da monossílaba Om, tal como o estado de sonho é intermediário, sandhyā, entre o estado de vigília e o estado de sono profundo]. Aquele que sabe isto verdadeiramente prossegue no caminho do Conhecimento [pela sua identificação com Hiranyagarbha] e [sendo assim iluminado] ele está em harmonia [samāna, com todas as coisas, pois ele vê o Universo manifestado como o produto do seu próprio conhecimento, que não pode dele ser separado], e nenhum dos seus descendentes [no sentido de posterioridade espiritual] será ignorante de Brahma.
Prājña, cujo assento é o estado de sono profundo, é [representado por] M, a terceira mātrā, porque é a medida [miti, das duas outras mātrās, tal como numa razão matemática o denominador é a medida do numerador], tal como porque é o fim [da monossílaba Om, considerado como contendo a síntese de todos os sons, da mesma forma que o não manifestado contém, sinteticamente e por principio, o todo da manifestação com os seus diversos modos possíveis: o último pode ser considerado como que em retorno ao não manifestado, do qual nunca se distinguiu excepto de uma forma contingente e transitória: a primeira causa é ao mesmo tempo a última causa, e o fim é necessariamente idêntico ao principio]. Aquele que sabe isto é na verdade a medida do todo [isto é, o agregado dos ‘três mundos’ ou dos diferentes níveis de Existência universal, do qual o puro Ser é o ‘determinante’], e ele torna-se o termo final [de todas as coisas, por concentração no seu próprio ‘Si’ ou personalidade, onde todos os estados de manifestação do seu ser são redescobertos, ‘transformados’ em possibilidades permanentes].
O Quarto é ‘não-caracterizado’ [amātra, incondicionado, por essa razão]: é ‘sem-acção’ [avyavahārya], sem qualquer traço de desenvolvimento de manifestação [prapancha-upashama], abundando em Beatitude e sem dualidade [Shiva Advaita]: isto é Omkāra [a monossílaba sagrada considerada independentemente das suas mātrās], que é seguramente Ātma [em Si próprio exterior e independente de qualquer condição ou determinação, mesmo da determinação principal que é o próprio Ser]. Aquele que sabe isto entra verdadeiramente no seu próprio ‘Si’ por meio do mesmo ‘Si’ [sem intermediários de qualquer ordem, sem o uso de qualquer instrumento, tal como a faculdade do conhecimento, a qual apenas pode atingir um estado de ‘Si’ e não de Paramātmā, o supremo e absoluto ‘Si’].
Conclui Guénon que em relação aos efeitos a obter por meio de meditação na monossílaba sagrada, em cada uma das três mātrās de início, e depois na própria monossílaba, cada um dos efeitos corresponde à realização de diferentes níveis espirituais: o primeiro o total desenvolvimento da corporalidade individual; o segundo a extensão integral da individualidade humana nas suas modalidades extra-corporais; o terceiro a obtenção dos estados supra-individuais do ser: e finalmente, o quarto é a realização da “Suprema Identidade”.
Miguel Conceição & Noémia Silva
Dezembro de 2008
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BIBLIOGRAFIA:
Jagadguru HH Sri Chandrasekharendra Saraswathi Swamigal, Sankaracharya of Kanchi, editado por Michael Fitzgerald, Introduction to Hindu Dharma, World Wisdom Inc., Bloomington, Indiana, 2008.
António Barahona (transcriação, introdução, notas e glossário), Vyassa – Poema do Senhor – Bhagavad-Guitá, Assírio & Alvim, 2ª edição revista, 2007 .
Karen Armstrong, The Great Transformation – The World in the Time of Buddha, Socrates, Confucius and Jeremiah, Atlantic Books, London, 2007.
Alain Daniélou, The Myths and Gods of India – The Classic Work on Hindu Polytheism, Inner Traditions International, Rochester, Vermont, 1991.
Arvind Sharma, A Guide to Hindu Spirituality, World Wisdom Inc., Bloomington, Indiana, 2006.
René Guénon, Man & His Becoming According to the Vedānta, Sophia Perennis, Hillsdale NY, 2001.
Em breve entrarei em contacto convosco.
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