domingo, 29 de janeiro de 2012

Anúncio do 4º ciclo de estudos: Educação


Como anunciado numa publicação recente, foi iniciada a preparação do quarto número da Revista Sabedoria Perene que será dedicado à Educação. Este olhar para a educação será à luz da Tradição, de todas as tradições religiosas e sapienciais da humanidade, e será, por certo, profundamente crítico da educação actual, a qual se encontra aparentemente, como muitos outros aspectos da nossa sociedade, num estado profundamente doentio, arriscamos mesmo dizer, terminal.

É nosso desígnio que esta constatação resulte evidente do trabalho monográfico que será apresentado e que, não só as razões para tal infortúnio sejam apontadas, como também iluminadas as direcções para uma inversão deste caminho, em última análise, auto-destrutivo – pois o futuro da nossa existência como comunidade depende da educação dada aos nossos jovens.

Os trechos que se apresentam de seguida e que abrirão este ciclo de estudos ilustram bem o antagonismo entre as visões tradicionais e a visão moderna da educação. Mostram eloquentemente a incomensurável distância entre um mundo centrado no individualismo e outro que, vendo "Deus em toda a parte”, vê no outro a si próprio.


(…) E isto resulta, finalmente, que quando se passa de um ano para outro – ou mesmo espacialmente de uma sala de aula para outra – as conclusões podem ser diametralmente opostas. Mais isso não importa nem perturba ninguém, desde que seja garantida a liberdade de expressão. Trata-se de um total e absoluto desprezo da Verdade, o qual encontramos inevitavelmente – e em diversos graus – em todos os níveis da sociedade. Na maior parte das situações em que dois indivíduos emitem uma opinião contrária, é considerado adequado exigir que cada um deles “faça um esforço” para conseguir chegar a um “acordo” que se considerará “pelo menos uma verdade objectiva” (cada um sacrificando, de certa maneira, um pouco da sua subjectividade, sem falar da sua pretensão e do seu orgulho); e tudo isto sem dar qualquer importância à dignidade e ao valor intrínseco das personagens, nem tão pouco à profundidade da opinião emitida. (…) [mas] A verdade não é uma questão de “acordos” feitos de fraquezas e de subtis hipocrisias (…)

Ao agir deste modo numa sala de aulas, recusa-se tomar consciência que se está a encerrar o aluno nos estreitos limites do seu ego, o qual é incitado a uma espécie de autocracia. Pouco a pouco, torna-se insensível a qualquer coisa diferente da sua própria opinião, expressão da sua personalidade e da sua liberdade. Para mais, não se está longe de pensar que quanto mais a sua opinião é diferente dos seus colegas, mais ele dá prova da sua personalidade. E é esta, sem qualquer dúvida, a mais temível das prisões na qual se encerra um jovem: a sua própria. Uma célula limitada por todas as partes, tal como o é todo o indivíduo, e da qual se impede de sair sob pena de perder aquilo que chamamos de liberdade mas que é, na realidade, a pior das escravaturas. (…)

Extraído de 
de Ghislain Chetan


Uma das grandes lições que tínhamos que aprender era que devíamos ter uma grande força de vontade para ser desprendidos. Às crianças ensinava-se a dar aos outros e a fazê-lo com generosidade. Aquele que dava um presente sem valor não se podia considerar uma pessoa generosa. Tínhamos que oferecer as nossas posses até nos tornarmos pobres em bens materiais e até que não nos restasse nada mais do que o deleite e a alegria da nossa força desnudada. Era uma obrigação inevitável doar aos necessitados e aos desamparados, e quando as mães davam presentes aos débeis e aos anciãos davam uma parte desses presentes às crianças, para que eles mesmos pudessem oferecê-los por suas próprias mãos. As crianças lakota costumavam trazer para os seus tipis pessoas débeis e anciãs que passavam em frente à sua tenda. Se uma criança fazia isto a sua mãe devia preparar imediatamente uma refeição, pois ignorar a cortesia da criança seria algo imperdoável.

Uma vez que é muito fácil inspirar a compaixão de uma criança, os lakota aprendiam a oferecer presentes a todo o momento e em qualquer lugar, com o objectivo único de se converterem em pessoas fortes e valentes. O melhor guerreiro era aquele que se desprendia das suas posses mais queridas ao mesmo tempo que cantava de alegria e de bênção.
Luther Standing Bear
(Sioux Oglala)


Talvez o mais difícil da paternidade não fosse vigiar a conduta das crianças, mas sim vigiar a conduta adequada dos pais, uma vez que o método que usavam para ensinar os seus filhos era fazê-los observar detidamente a conduta dos adultos. As crianças lakota, que possuíam um grande vigor natural e que tinham as faculdades muito desenvolvidas graças ao contacto com a natureza, percebiam tudo através dos seus olhos e dos seus ouvidos. Assim, os pais lakota, tal como os restantes adultos, estavam submetidos a um exame contínuo da sua conduta e das suas conversas. Por esta razão, tinham que actuar da forma mais digna e exemplar possível.

Luther Standing Bear
(Sioux Oglala)

domingo, 22 de janeiro de 2012

Ofícios e a Tradição

Hoje deixo aqui mais uma muito generosa contribuição de um nosso amigo do outro lado do Atlântico, Alberto Vasconcellos Queiroz, que traduziu directamente do alemão o seguinte extracto do maravilhoso livro de Titus Burckhardt, “Fez, Cidade do Islão”.


Meu trabalho pode lhe parecer grosseiro, mas ele contém um significado sutil...” 

Eu conheci um penteeiro na rua de sua corporação, a mashshâtîn. Ele se chamava ‘Abd Al-Azîz (Servo do Todo-Poderoso), vestia sempre uma jelabá negra – a ampla túnica munida de mangas e de capuz – e um turbante branco com o lithâm, o véu de rosto, que emoldurava suas feições um tanto duras. O chifre para seus pentes ele o obtinha de cabeças de boi que comprava dos açougueiros. A testa com os chifres ele punha para secar numa área arrendada, depois retirava os chifres, abria-os longitudinalmente e os aplainava sobre o fogo, algo que devia ser feito com o maior cuidado, para que não rachassem. Desse material ele entalhava pentes e torneava caixas para antimônio, usado como cosmético para os olhos; isso ele fazia num torno muito simples, no qual ele conduzia com a mão esquerda um arco que, enrolado numa haste, a fazia girar, enquanto na mão direita ele segurava a faca e com um pé empurrava um contrapeso. Durante esse trabalho, ele costumava cantar suratas alcorânicas numa voz baixa. 

Fiquei sabendo que, em consequência de uma doença ocular que frequentemente se manifesta na África, ele já era meio cego e fazia seu trabalho mais pelo hábito que pela visão propriamente dita. Um dia ele se queixou para mim que a importação de pentes de plástico diminuía o seu ganho: “Não é somente triste que hoje, por causa do preço, os pentes ruins industrializados sejam preferidos aos pentes de chifre, muito mais duráveis”, disse; “é também absurdo que homens fiquem postados diante de uma máquina e tenham de repetir sempre o mesmo movimento sem ter o que refletir sobre ele, enquanto um antigo ofício como o meu cai no esquecimento. Meu trabalho pode lhe parecer grosseiro, mas ele contém um significado sutil, que não se deixa explicar pelas palavras. A mim mesmo ele só se revelou após muitos anos, e, mesmo que eu quisesse, não o poderia transmitir sem mais a meu próprio filho, se ele mesmo não pudesse alcançá-lo – e acredito que ele preferirá aprender algum outro ofício. Este ofício remonta de aprendiz a mestre até nosso Senhor Set, filho de Adão. Foi ele que o ensinou aos homens pela primeira vez, e o que um Profeta traz – pois Set era um Profeta – deve comportar em si um benefício particular, exterior tanto quanto interior. Isso eu fui entendendo gradualmente, que não há nada de fortuito neste ofício, que cada movimento das mãos e cada processo traz em si uma sabedoria. Mas nem todos o podem compreender. Contudo, mesmo que isso não seja compreendido, ainda é algo tolo e reprovável privar os homens do legado de um Profeta e fazer com que eles se postem diante de uma máquina para realizar dia-a-dia um trabalho que não tem sentido.” 

Portanto, a ameaça que hoje paira sobre os ofícios marroquinos não é somente um desafio exterior, mas também uma ameaça no plano da própria alma. Mesmo que nem todo artesão árabe medite com tanta consciência sobre seu ofício como aquele penteeiro, a maior parte dos ofícios ainda tem um conteúdo espiritual que, com as inovações da indústria moderna, ficará esquecido. 

Mesmo o aguadeiro, que não faz mais que encher nas fontes públicas da cidade sua pele de cabra para trazer aos bazares uma bebida fresca para os que têm sede, independentemente de se recebe deles alguma recompensa ou não, mesmo ele ainda mostra em toda a sua postura a dignidade humana, tal como nas terras européias ainda tem o camponês que lança com devoção a semente. 

Até mesmo o mendigo que se acocora diante das mesquitas e nas pontes e com sua veste cem vezes remendada exerce seu ofício, não pede com vergonha, mas diz ao passante: “Dê o que é de Deus!” ou canta com voz monótona um refrão religioso. 

Pois quase todos os que ainda não foram sugados pelos remoinhos do mundo moderno vivem aqui sua vida ainda como um papel provisório, que não empenha de forma definitiva sua alma, mas pertence à Divina Comédia desta existência terrena. 

(Titus Burckhardt, Fes, Stadt des Islam, Olten and 
Freiburg-im-Breisgau: Urs Graf Verlag, 1960, pp. 64, 69,70.)

domingo, 15 de janeiro de 2012

O teu centro está em toda a parte

Após um período de menor actividade do Sabedoria Perene, é nosso desejo que ele regresse com um novo ímpeto e que possa continuar a ser uma refrescante fonte para aqueles que buscam uma luz num mundo cada vez mais envolto em espessas e escuras nuvens. Fazemos coincidir este regresso com outro, o do retorno ao trabalho na Revista Sabedoria Perene. O próximo número já tem o tema escolhido: a Educação; tema que por certo será do interesse dos nossos leitores. Regressaremos a este assunto numa outra ocasião.

De momento, para celebrar o início do que se pretende ser um novo ciclo de trabalho, deixo-vos um maravilhoso excerto de um livro de Mark PerryOn Awakening and Remembering, ao qual regressaremos noutras ocasiões, onde este conceito de ‘ciclicidade’ é magistralmente tratado. Mas é sobretudo pela abordagem do Centro que partilhamos as seguintes palavras.




TUDO NA CRIAÇÃO GIRA EM TORNO DE UM CENTRO, isto pelo simples facto de que todas as coisas têm uma origem à qual não podem escapar. E esta origem é também o seu fim pois, à imagem das árvores, todas as criaturas têm raízes, mesmo que invisíveis; assim, uma criatura só se pode desviar em relação à sua base. Por muito que as aparências nos indiquem o contrário, uma trajectória em linha recta apenas é conspícua quando a sua origem e fim são velados, esquecidos ou rejeitados. A fuga em frente dos seres e dos eventos parece sugerir uma trajectória linear lançada ao longo de um eixo em constante retrocesso. Estas sucessões de existências, aparentemente livres de convergir ou divergir de outras existências paralelas, surgem como que arremessadas ao longo de linhas cujo fim é completamente estranho à sua origem, o que causa a impressão de ser a linha e não o círculo o princípio operativo da manifestação. Esta ilusão de perspectiva é ainda mais reforçada pela nossa cultura moderna que obriga as pessoas a se adaptarem a uma constante mudança. Vivemos tempos de estonteante obsolescência, tempos em que a excitação pela novidade mascara a destruição da tradição, o frenesi da mudança trivializa a realização, a fatuidade do progresso deprecia o valor do património. O que a história e a cultura poderão ganhar com um apelo nostálgico face a este desprezo, nunca o poderão recuperar realmente em prestígio intelectual. O que caracterizava a primeira era da humanidade, a Krita Yuga das escrituras sagradas hindus, era a noção de Centro e o mito do Eterno Retorno, altura em que governava a ideia de repetição – e não de mudança – em torno de um princípio perene. Tal deve-se, em parte, ao facto dessa primeira era estar tão próxima da origem que praticamente se identificava integralmente com ela. No entanto, através de um movimento de expansão, semelhante a uma espiral sempre crescente, a humanidade cresce/cai da sua origem divina e, sem ser capaz de escapar a esse movimento em torno do centro, continua a afastar-se cada vez mais e, ao mesmo tempo, a ganhar velocidade. 

Se podemos caracterizar o homem antigo como estático, em conformidade com uma visão da existência centrada no espaço e não no tempo, podemos então caracterizar o homem moderno, o homem do Kali Yuga, como dinâmico, em conformidade com uma visão da existência centrada no tempo e na mudança e, consequentemente, na destruição. A preservação da tradição era o valor essencial do homem antigo que, através dos ritos sazonais celebrados, mantinha sempre presente a ideia de renovar e garantir a ligação com o centro original. Mas para uma civilização viciada no progresso, que avança com base no pressuposto da prévia ignorância humana, quando não no da inferioridade, romper com o molde “embrutecedor” da tradição torna-se imperativo. O que é esquecido é que – voltando à imagem da espiral – a tendência é para girar cada vez mais distante, até que tudo gire fora de controlo; isto é cada vez mais evidente na medida em que vivemos num mundo onde a velocidade tem acelerado em proporção directa com a supressão e transformação do passado. Este facto, apesar da excitante atracção que provoca, é inerentemente aberrante e destabilizador; o homem não pode viver num ritmo cada vez mais frenético sem se alienar de si próprio. Por outro lado, não deixa de ser uma componente necessária de um ciclo, que não pode terminar de outra forma que não em desintegração. Esta constatação não se trata de pessimismo, mas sim de realismo cosmológico.

Se o ponto de vista do homem fosse suficientemente elevado, ele libertar-se-ia da ilusão de linearidade, recordaria as origens e preveria as conclusões; ele compreenderia as consequências. De todo o modo, os exemplos do princípio circular abundam, seja na doutrina hindu dos ciclos milenares (manvantaras), a qual os quais já mencionámos, ou nos periodos dos Estóicos, seja no carrossel das estações ou nas ondas concêntricas num lago provocadas por uma gota de água, nas órbitas das grandes galáxias ou nos círculos dos falcões, nos ciclos dos dias e dos anos, nada se exclui a esta lei cuja benevolente imanência – a força que move o sol e as restantes luminárias, segundo Dante – salva a cada instante a manifestação de se desintegrar no nada que está continuamente a sugá-la. O círculo é o dharma perfeito, e o dharma perfeito é a verdade.

O princípio dinâmico do círculo, celebrado pelas rondas das danças de todas as culturas “primitivas”, possui o seu equivalente estático no princípio da esfera, cuja redondeza é para a forma o que a circularidade é para o movimento. O nosso globo terrestre é uma esfera que pertence, por sua vez, a uma galáxia que espirala em torno – e em afastamento – de um centro invisível do qual é a projecção esférica.

De uma relevância ainda mais imediata, é o facto de o homem estar colocado sob a abóbada celeste e poder contemplar, a partir de todo e qualquer ponto, o mesmo nascer e pôr-do-sol, os infindáveis ciclos da lua, e a ronda processional das constelações estelares. Ele testemunha o eterno retorno das estações ao mesmo tempo que sente, na sua própria carne, a herança destes ciclos com a passagem da juventude à maturidade, passagem essa que marca as etapas processionais da sua estadia mortal, na qual os extremos se tocam, pois a idade avançada pode ser, em termos espirituais, uma segunda juventude. Não será então verdade que tudo o que o homem vê e tudo o que ele experiencia segue, fundamentalmente, ritmos perenes e imutáveis? E falar de ritmo é falar de repetição. E o que é a repetição senão retorno e circularidade?

Esta evidência é plena de significado, pudesse o homem simplesmente parar e ponderar as suas implicações. Observar que a Realidade pode ser compreendida geometricamente como um círculo, ou uma esfera, prova, para mais, a bondade da substância universal pois, como reconheceu Platão, a redondeza é a forma concreta do bem, do agradável e do amável. O desespero não usurpa a serenidade daquele que compreende isto no seu coração. 

Também a magnificente migração anual de diversas criaturas testemunha o pulsar de um grandioso ser que permeia o majestoso silêncio da natureza. O colibri, a borboleta monarca, o salmão, que regressam aos seus locais de acasalamento ou desova, não precisam de “sistemas de radar”, pois são os emissários de centros/corações: viajam com o fluxo e o refluxo, a projecção e o retorno desses centros dos quais as suas viagens traçam as configurações das artérias que se dispõem através de raios invisíveis mas intrinsecamente vivos. Para o contemplativo, o respirar e o pulsar do Céu está onde murmure uma brisa em ramos frondosos, salpique a água em riachos serpenteantes ou onde um grilo cante. E o centro divino está sempre onde se eleva uma montanha, no desabrochar de uma flor e no sorriso de uma donzela. E ele está sobretudo onde se encontra um homem em oração.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Duvida-se de tudo, salvo da dúvida

"Seria preciso poder restituir à palavra 'filosofia' a sua significação original: a filosofia -- o 'amor da sabedoria' -- é a ciência de todos os princípios fundamentais; esta ciência opera com a intuição, que 'percebe', e não somente com a razão, que 'conclui'.
Subjetivamente falando, a essência da filosofia é a certeza; para os modernos, ao contrário, a essência da filosofia é a dúvida: o filósofo deve raciocinar sem nenhuma premissa (voraussetzungsloses Denken), como se essa condição não fosse ela mesma uma ideia preconcebida; é a contradição clássica de todo relativismo. Duvida-se de tudo, salvo da dúvida."

Frithjof Schuon: A Transfiguração do Homem. Sapientia, 2009, p. 11.