segunda-feira, 1 de março de 2010

A Porta Real

O texto abaixo apresentado é uma reprodução parcial da versão integral e ilustrada que constará no próximo número da Revista Sabedoria Perene, o qual se prevê para muito breve. A tradução apresentada baseia-se na tradução inglesa de William Stoddart deste "The Royal Door" de Titus Burckardt.


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Foi construída, entre os anos 1140 e 1150, a passagem tripartida na frente ocidental da catedral de Chartres. Esta sempre foi chamada de Porta Real, porque as figuras erectas nas jambas em parte representam reis e rainhas do Antigo Testamento.


O estilo desta porta é ainda romanesco no seu equilíbrio repousado e, contudo, é já gótico na medida em que o repouso das suas partes já não descarrega para a terra, mas para cima, como se essas partes subissem ao alto à semelhança de chamas imóveis a arder. As formas ainda são austeras e encerradas em si próprias; entregam-se tão pouco à luz incerta que muda constantemente do amanhecer ao anoitecer, como aos movimentos incertos da alma humana. Áreas claras e escuras são criadas por superfícies lisas e ásperas (elas próprias caneladas, entalhadas ou quebradas por ornamentos), com um efeito algo semelhante a cores, e na realidade, a dada altura, estiveram de facto revestidas com ouro e com outras cores. O revestimento original já desapareceu, mas um ainda subsistente esmalte – uma leve e melódica suavidade a encerrar a crueza da pedra – cobre as superfícies e as articulações.


Do ponto de vista do seu significado mais profundo, as imagens da triplicada Porta Real representam a mais completa expressão de doutrina que alguma vez foi incorporada nas paredes e nos apoios de uma passagem. Cristo aparece três vezes, cada vez no meio de um tímpano: por cima da entrada do lado direito, vemo-lo recentemente descido à terra, sentado no regaço de Sua Mãe entronizada; por cima da entrada do lado esquerdo, Ele ascende ao Céu, rodeado por anjos; e no tímpano central, Ele revela-se a Si mesmo na Sua eterna majestade. A Natividade parece indicar a natureza humana de Cristo, e a Ascensão a Sua natureza Divina; mas a referência imediata é simplesmente à Sua vinda e ida, ao facto de que Ele é o alfa e o ómega da existência terrena, dois extremos entre os quais permanece Sua eterna majestade, tal como o momento presente entre ontem e amanhã. Estes são os três diferentes significados da Porta – a Porta que é Cristo Ele mesmo.

A parte inferior da passagem integral representa a terra, e a parte superior o Céu. Assim é porquanto as figuras nas jambas da porta, ainda que os seus nomes sejam desconhecidos, são certamente representantes do Antigo Testamento, e os antepassados terrestres da Encarnação Divina. À semelhança da Encarnação, eles suportam o Céu dos tímpanos. Entre estes domínios inferior e superior, e interrompido apenas pelas próprias portas de entrada, percorre a delicada fiada de capitéis, nos quais todos os principais incidentes na vida de Cristo são sucessivamente retratados: é como a linha de demarcação entre dois mundos.


Que as figuras nas jambas pareçam tão altas e delgadas significa que elas próprios são os “pilares da igreja”, às quais S. Paulo se refere nas Escrituras. Durand de Mende escreve: “Os pilares da Igreja são os bispos e os doutos eclesiásticos que mantêm a Igreja erecta (…)”. Estritamente falando, as jambas e as figuras com elas associadas representam uma espécie de ante-câmara, precisamente como faz o Antigo Testamento em relação ao Novo. Numa porta de passagem semelhante, em Le Mans, esta divisão entre ante-câmara e corpo principal da igreja é clara: os pilares da parede frontal estão todos decorados com personalidades do Antigo Testamento, enquanto as jambas propriamente ditas estão decoradas com estátuas dos Apóstolos. Apenas os últimos pertencem ao “corpo” da Igreja.


(...)

O homem medieval mantinha sempre a ordem mais profunda das coisas em mente.


O tímpano da porta central é mais largo e mais alto do que os do lado direito e do lado esquerdo e tem apenas duas zonas, enquanto os das portas laterais têm três. No tímpano do lado direito, as imagens sucessivas da mãe humana, da apresentação sacrificial no templo, e da Rainha Celeste, estão posicionadas cada qual em cima da outra; no tímpano do lado esquerdo, onde Cristo ascende, uma hoste de anjos, à semelhança de múltiplos relâmpagos saídos de uma nuvem tempestuosa, descendem sobre os discípulos reunidos abaixo.


No tímpano da porta principal, a imagem da eterna majestade de Cristo, a qual foi retratada em tantas portas de igrejas Romanescas, encontra a sua mais harmoniosa representação. É possível inscrever todas as figuras geométricas neste tímpano; será sempre em consonância com a ordenação das cinco figuras e com a onda de movimentos que saem para fora da figura central e que regressam a ela. Entre a curva das arquivoltas e a auréola em forma de amêndoa que envolve Cristo – estas formas que separam e reúnem – um fôlego ou respiração avança e recua, dando à imagem integral a sua vida.

Cristo está rodeado pelas quatro criaturas descritas por Ezequiel e João: o leão, o touro, a águia e o homem alado. Estes são interpretados como os protótipos eternos dos quatro evangelistas e a sua fantástica forma animal serve para elevar a representação antropomórfica da Divindade no seu meio a um nível supra-humano.

Na arquivolta mais interna das três, anjos rodeiam a majestade de Cristo, e os vinte e quatro anciãos do Apocalipse, que aparecem nas duas arquivoltas exteriores, erguem os olhos para Ele. No lintel, os doze apóstolos apresentam-se em grupos de três, e à sua direita e esquerda estão duas testemunhas proféticas, talvez Elias e Henoc, que estão para regressar no fim do tempo.


Porque é que o nascimento de Cristo está retratado sobre a entrada do lado direito, que fica a sul do eixo principal da igreja, e a ascensão de Cristo sobre a entrada do lado esquerdo, a norte do eixo principal, dado que o norte e o sul, segundo a interpretação litúrgica, correspondem respectivamente ao Antigo e ao Novo Testamento? Presumivelmente a posição física das portas encerra uma alusão ao antigo símbolo cósmico da januae coeli, as duas portas dos céus, conhecidas para o período Romano tardio. O Céu tem duas portas, nomeadamente os dois solstícios; através da “porta do Inverno”, o “novo sol” entra no mundo, e através da “porta do Verão”, a plenitude da luz deixa o mundo. Segundo uma visão antiga das coisas, mencionada por Platão, os deuses entram neste mundo pela primeira porta, e saem dele pela segunda. A localização do solstício de Inverno, que ocorre durante a época de Natal, fica nos céus do sul, e a localização do solstício de Verão nos do norte; pareceria que a ordem representativa na porta ocidental da Catedral de Chartres é uma referência directa a isto: através da porta a sul a Luz Divina descende ao mundo; pela do norte regressa ao invisível. Entre os dois portões do Céu permanece o eixo imutável do mundo; a isto corresponde a porta central.


(...)


Na ciência medieval, é menos uma questão de conhecer muitas coisas, do que de ter uma visão “integral” da existência. O seu método foi concebido para tudo menos para a investigação do mundo material e para o avanço da tecnologia. Ao contrário: possuía os meios para abrir o olho espiritual à beleza das proporções matemáticas, e o ouvido espiritual à música das esferas.



Quando hoje dizemos “forma”, referimo-nos apenas aos aspectos visíveis e mensuráveis das coisas, especialmente aos seus contornos espaciais. Para os mestres medievais, por outro lado – para os académicos e, num certo sentido, também para os artistas – “forma” era o somatório das propriedades ou qualidades essenciais de uma coisa; era o que constituía a unidade interior do objecto manifestado. “As formas das coisas,” escreve Thierry de Chartres, “estão, fora e para além da matéria, contidas no Espírito Divino. Aí, na sua plenitude simples e imutável, existe a verdadeira forma. Mas aquelas que, de uma certa e não totalmente explicável maneira, estão impregnadas na matéria, são por assim dizer efémeras e não são formas no verdadeiro sentido. Elas são apenas algo semelhante a reflexos ou representações de verdadeiras formas.”


Por conseguinte, a verdadeira forma não é nem limitável nem mutável; é antes como um raio do Espírito criativo que, descendendo na matéria, empresta-lhe forma passageiramente. Uma analogia para isto é a criação artística: assim como o artista pode mais ou menos completamente, dependendo da sua humildade, imprimir num material a imagem espiritual que carrega dentro de si, também a essência de uma coisa se pode manifestar mais ou menos perfeitamente nessa coisa particular.


Esta forma de olhar para as coisas é geralmente chamada de platónica, e por isso os homens que ensinavam em Chartres no início do século XII – tais como Bernard, Gilbert de la Porée, Guilherme de Conques, e Thierry (que, exactamente na altura em que a Porta Real estava a ser construída, era chanceler da escola da catedral) – eram todos platonistas. Seria contudo injusto atribuir simplesmente o seu pensamento a uma escola filosófica; nos seus trabalhos há um elemento que transcende o pensamento como tal, há nomeadamente uma contemplação espiritual genuína que, apesar de estar longe de depender de palavras, tem todavia que fazer uso delas para se comunicar a si mesma.


De acordo com o ponto de vista platónico, toda a existência emana hierarquicamente da Fonte Divina una, que não é nem diminuída nem alterada por esse facto. Pode esta perspectiva ser reconciliada com a história da criação relatada na Bíblia? Existe de facto uma contradição entre encarar uma luz que brilha porque está na sua natureza brilhar (e que não se consegue conceber de mais nenhum modo do que a brilhar), e encarar um acto criador que, num determinado momento, chama à existência algo que não estava lá previamente. Os mestres de Chartres perguntaram-se a eles mesmos esta questão e também responderam a ela. Quando, com Guilherme de Conques, se olha para o tempo ele mesmo como algo criado, a aparente contradição desaparece. Antes da criação do mundo, Deus não estava no tempo: ele estava na Eternidade, que fica para além de todo o tempo, no eterno Agora. Não se pode dizer que Deus criou o mundo num dado tempo, pois o tempo ele mesmo começou com o mundo; do ponto de vista deste mundo, a existência (que brilha ou irradia para diante a partir de Deus) aparece como se tivesse começado no tempo. Numa tal ponte de ligação de duas imagens aparentemente incompatíveis, pode-se ver o carácter mais do que meramente mental da contemplação espiritual.


A arte da Porta Real, na sua inimitável e inultrapassável reconciliação de distância estelar e proximidade viva, é nascida do mesmo espírito.

1 comentário:

  1. Miguel, acabei de receber duas sugestões de uma amiga...

    Dia 24 de Março no Teatro Garcia de Resende em Évora: http://www.cm-evora.pt/pt/conteudos/eventos/dervixes.htm

    e actividades relacionadas com a cultura turca no CCB até dia 1 de Abril: http://www.ccb.pt/sites/ccb/pt-PT/Programacao/Ciclos/Pages/Festival%20Pontes%20para%20Istambul.aspx?month=3

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