terça-feira, 23 de março de 2010

Revista Sabedoria Perene - Número 2

É com enorme satisfação que anunciamos a disponibilidade do segundo número da revista Sabedoria Perene.

O texto publicado de seguida é o editorial deste segundo número que pode ser obtido aqui.

EDITORIAL

Após a publicação do primeiro número desta revista dedicada ao estudo das doutrinas tradicionais e da Sophia Perennis e de nele termos exposto os significados dos termos “tradição” e “sabedoria perene”, na acepção que lhes é unanimemente conferida pelos muitos autores pertencentes à corrente de pensamento “tradicionalista” ou “perenialista”, e de termos constatado uma receptividade àquele primeiro número que ultrapassou as nossas melhores expectativas iniciais, é com enorme alegria e reforçado encorajamento que cumprimos neste segundo número o objectivo a que nos propusemos então – dar continuidade a este projecto de divulgação desta corrente de pensamento e, designadamente, disponibilizar desde já uma selecção de textos em língua portuguesa que versam sobre a temática da arte.

O leitor do primeiro número estará certamente ciente do sentido particular que aqui é dado à palavra “tradição”, o qual está em certa medida relacionado com a continuidade e a projecção em todos os aspectos da vida humana daquilo que é originalmente dado a conhecer ao homem dos vários contextos civilizacionais, em diferentes épocas e lugares, através das revelações religiosas ou sagradas. Inevitavelmente, a tradição entendida neste sentido particular deverá incluir os princípios espirituais e os valores subjacentes aos vários elementos que caracterizam uma determinada civilização. Entre estes elementos, a par com outros que esperamos abordar em números futuros, está o foco deste segundo número da Sabedoria Perene – a arte.

A arte, entendida neste contexto, pode ser abordada segundo aquele método científico que Platão utilizou, e que é em certa medida o mesmo da ciência medieval, e o mesmo que utilizam aqueles que nos dias de hoje valorizam e fazem eco do legado desta ciência antiga – ciência esta que não é mais do que a formulação da sabedoria perene em termos temporais, – reavivada por renomeadas personagens no campo das artes, tais como Ananda Kentish Coomaraswamy ou Titus Burckhardt, bem como por gigantes do pensamento tradicionalista ou perenialista dos nossos tempos, tais como os incontornáveis René Guénon e Frithjof Schuon. Importará esclarecer que a ciência aqui mencionada é aquela ciência “incriada” que se preocupa menos com a questão de conhecer muitas coisas do que com a perspectiva de ter uma visão “integral” da existência. “O seu método”, como escreve Burckhardt, “foi concebido para tudo menos para a investigação do mundo material e para o avanço da tecnologia. Ao contrário: (…) [esta ciência possui] os meios para abrir o olho espiritual à beleza das proporções matemáticas, e o ouvido espiritual à música das esferas.” A preocupação imediata desta ciência não é “um interesse antiquado, ultrapassado por algo mais sábio, mais abrangente, mais efectivo na sua habilidade para explicar quais as necessidades espirituais e práticas do homem, e como elas podem ser alcançadas”, conforme refere Brian Keeble, mas sim “um repositório vivo de sabedoria, que pode desafiar e demonstrar, de forma efectiva, o quanto inadequado é o que a substituiu.”

Quando exibida à luz dos holofotes desta ciência, a arte mostra-se em todo o seu esplendor e desempenha um papel vital para a existência espiritual do homem. A este respeito, fiquemos com as sábias palavras de Frithjof Schuon: “Poderíamos dizer que, depois da moral, a arte – no sentido mais amplo do termo – é uma dimensão natural e necessária da condição humana. Platão disse: ‘A beleza é o esplendor do verdadeiro.’ Digamos então que a arte, incluindo o artesanato, é uma projecção da verdade e da beleza no mundo das formas; ela é ‘ipso facto’ uma projecção de arquétipos. E é essencialmente uma exteriorização com vista a uma interiorização. Arte não significa dispersão, significa concentração, um caminho de volta a Deus. Toda a civilização tradicional criou um arcabouço de beleza; um meio circundante natural, ecologicamente necessário para a vida espiritual.” E, fazendo novamente uso das palavras de Burckhardt, as quais reiteram as de Schuon, “A arte esclarece o mundo; ajuda o espírito a desprender-se da perturbante multiplicidade de coisas, para que possa ascender em direcção à Unidade Divina.” Ainda no que respeita ao fim espiritual das artes, aquilo que Platão diz é que estamos dotados pelos deuses com a visão e a audição, e que a harmonia, à semelhança do ritmo, “foi dada pela Musas àquele que consegue fazer uso delas intelectualmente e não, tal como se supõe nos dias de hoje, como um auxílio ao prazer irracional.” Não deixa de ser relevante constatar que, já no seu tempo, Platão tenha pressentido que até o que eram originalmente imitações da realidade das coisas, não da aparência, se tornavam meras “formas de arte, cada vez mais esvaziadas de significação no seu percurso descendente até nós.” Não admira pois que Platão prescrevesse para a sua Cidade de Deus artes que, como ele dizia, “cuidarão dos corpos e das almas dos vossos cidadãos.” E se desta pequena resenha de citações, as quais poderão ser encontradas ao longo destas páginas, subsistir ainda a dúvida sobre se, segundo a perspectiva tradicionalista ou perenialista, existe espaço para aceitar aquele tipo de julgamento das obras de arte que se baseia no prazer que elas comportam, recorremos por fim às palavras de Sócrates, não totalmente desprovidas de humor: Não, “nem que todos os bois e cavalos e animais do mundo, em nome da perseguição do prazer, proclamem que tal é o critério.”

Poderá o leitor questionar-se sobre o porquê da necessidade de sistematizar e formular tão insistentemente este tipo de abordagem à arte. Ora, é verdade que isto nunca foi necessário durante todos os séculos em que a arte verdadeira era praticada pela maioria dos homens e mulheres. É contudo também verdade que, num tempo em que a concepção tradicional da arte já não é exercitada de forma generalizada, e num tempo em que parece predominar a confusão “artística” que a substituiu, este trabalho se tornou imperativo. Os artigos reunidos neste segundo número da Sabedoria Perene, não esgotando certamente tudo o que haveria a dizer ou escrever sobre a concepção tradicional da arte, constituem por si só um corpo de esclarecimento fundamental e contêm indicações e referências que poderão ser exploradas pelo leitor seriamente interessado nesta forma tão fulgurante de expressar a Verdade – a da arte verdadeira.

Passando ao conteúdo propriamente dito, o leitor encontrará desde logo três blocos de textos que visam, respectivamente, “introduzir”, “formular” e “expor” a arte tradicional. O primeiro destes três blocos inclui um trio de textos introdutórios, onde nos animamos com o estimado contributo de Pedro Sinde e Lídia Bom.

Este primeiro bloco prepara o encontro com o segundo bloco de textos, onde constam dois dos mais importantes e profundos ensaios contemporâneos de doutrina tradicional da arte, um deles o famoso “Uma figura de linguagem ou uma figura de pensamento?” da autoria de Ananda Kentish Coomaraswamy, e o outro o contundente “Princípios e critérios da arte universal” de Frithjof Schuon, ensaios cujo conteúdo, conforme diria o próprio Coomaraswamy, “pode ser ignorado mas (…) não pode ser refutado.” É também neste segundo bloco que se incluem dois apontamentos doutrinais sobre “A universalidade da arte sagrada”, de Titus Burckhardt, e sobre “A iniciação e os ofícios”, de René Guénon.

No terceiro bloco de textos, poder-se-á intuir a unidade transcendente de artes aparentemente tão díspares como, por exemplo, a da construção das catedrais e dos templos da religiosidade europeia, a da dança tradicional oriental, ou a da manufactura das roupas dos índios americanos. Na realidade, à luz daquela ciência “incriada” a que aludimos anteriormente, deslumbra-se o reflexo dourado, contínuo, inquebrável, que se mostra ora no fio de prumo com que o pedreiro trabalha a jamba da porta da catedral de Chartres, ora no fio sagrado que adorna a dança de Shiva, ora na linha com que os índios americanos cosem a sua roupa, ora no pano que descobre os palcos onde se desenrolam as peças de Shakespeare, ora ainda nas cordas das caravelas que se avistam na janela manuelina do Convento de Cristo em Tomar. Assim, é neste bloco de exposição tradicional da arte que se encontra a majestosa expressão de doutrina cristã contida no muito aclamado “A Porta Real” de T. Burckhardt; o belíssimo “A dança de Shiva” de A. K. Coomaraswamy, assinalado pelo prezado contributo de Noémia Silva, e a “Mensagem da arte indumentária pele‐vermelha”, traduzida por Mateus Soares de Azevedo, veiculada num capítulo do livro Ter um Centro, de Frithjof Schuon, cuja muito esperada publicação pela editoria Sapientia se prevê para o segundo semestre deste ano. É também neste terceiro bloco de textos que, com outro importante contributo de Mateus Soares de Azevedo, repetimos o feito de publicar artigos originalmente escritos em português, nomeadamente “O impacto total da arte: os fundamentos espirituais do teatro de Shakespeare”. A rematar este terceiro bloco, “O vórtice de Tomar” reúne palavras escritas pelas portuguesíssimas mãos de Dalila Pereira da Costa, seleccionadas pelo nosso editor Miguel Conceição.

Na rubrica “in memoriam” deste segundo número da Sabedoria Perene, o artigo “Titus Burckhardt e a escola perenialista” encerra o ciclo de homenagem às duplas de originadores (René Guénon e Frithjof Schuon) e de imediatos prossecutores (Ananda Coomaraswamy e Titus Burckhardt) desta escola de pensamento que nos propomos dar a conhecer, de forma explícita, aos leitores da língua portuguesa. Este notável tributo a Titus Burckhardt – e à escola de pensamento que este autor ajudou a consolidar através das suas reflexões sobre a arte sagrada, sobre as fés e sobre as civilizações, – é da autoria do também muito notável William Stoddart, justamente considerado uma das figuras contemporâneas mais importantes no campo da filosofia perene. A tradução deste artigo é ainda um marco de colaboração transatlântica, que não podemos deixar passar sem um reconhecido agradecimento ao Alberto Vasconcelos Queiroz, responsável por grande parte do trabalho de tradução do texto incluído nesta rubrica. Esta rubrica prosseguirá, em números futuros, com o intuito de homenagear outros autores importantes desta escola de sabedoria, tais como Martin Lings, Marco Pallis, Whitall Perry e outros.

No último bloco deste número, recorremos novamente à rubrica “fragmentos de espiritualidade” e oferecemos ao leitor mais algumas palavras de pura sabedoria espiritual das várias tradições da humanidade, desta vez centradas no tema a que se dedica este volume – a arte.

Antes de entregar ao leitor mais um número desta revista, e inspirados nas palavras de Ananda Kentish Coomaraswamy, que nos esclarece que “todas as artes, sem excepção, são imitativas”, que “a obra de arte apenas pode ser julgada como tal (e independentemente do seu ‘valor’) pelo grau em que o modelo tenha sido correctamente representado” e ainda que “a beleza da obra é proporcional à sua precisão (integritas sive perfectio), ou verdade (veritas)”, importa recuperar as nossas palavras do primeiro número e reiterar que, com os textos aqui apresentados, pretendemos sobretudo “imitar”, o mais fielmente possível, o modelo da sabedoria intemporal – o modelo da Sabedoria Perene.

Nuno M. Almeida
Alvor, 10 de Março de 2010

4 comentários:

  1. Parabéns pelo trabalho!

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  2. Obrigado pelos textos fantásticos disponibilizados neste blog!

    Parabéns pela revista " Sabedoria Perene", a segunda edição está maravilhosa!!!

    Que o Eterno os Abençoe por este fundamental serviço em prol da Tradição!

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  3. Caro Omar,

    Muito obrigado pelas suas generosas congratulações.
    Com os nossos sinceros cumprimentos,
    Miguel

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  4. Parabéns pelo lançamento de mais um número!

    Abraço para todos,

    Paulo Silva

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