segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Tributo de Martin Lings a René Guénon

A tradução apresentada na presente publicação corresponde a um texto transcrito de uma lição dada por Martin Lings no Outono de 1994 no Instituto do Príncipe de Gales em Londres, patrocinada pela Temenos Academy. Este texto foi publicado no Número 1 - Volume 1 do Sophia Journal em 1995.


***

No que diz respeito ao início da vida de René Guénon o nosso conhecimento é muito limitado devido à sua extrema reticência. A sua objectividade, a qual é um aspecto da sua grandeza, fê-lo compreender os males do subjectivismo e individualismo no mundo moderno, o que o impeliu, talvez em demasia, na direcção oposta; evitando de todas as formas falar sobre si próprio. Desde a sua morte, têm sido escritos livros atrás de livros e os seus autores têm, sem dúvida, sentido uma enorme frustração por serem incapazes de descobrir diversas coisas e, em resultado, livros atrás de livros contêm erros factuais.


Aquilo que sabemos é que nasceu em Blois, França, em 1886, e que era o filho de um arquitecto; teve uma educação tradicional Católica e era um excelente aluno em filosofia e matemática. Mas com a idade de 21 ele já estava em Paris, no mundo do ocultismo, o qual estava em grande agitação naquela altura, por volta de 1906-08. E os perigos daquele mundo foram talvez nele contrabalançados pelo facto de ser mais aberto a amplas perspectivas. Por volta desta altura, em Paris, entrou em contacto com alguns Hindus da escola Advaita Vedanta, um dos quais o iniciou na sua própria linha Shivaita de espiritualidade. Não temos detalhes da altura ou local e parece que ele nunca falou sobre esses Hindus nem parece ter mantido o contacto após um ou dois anos. Mas aquilo que aprendeu com eles encontra-se nos seus livros e os seus encontros com eles foram claramente providenciais. Estes contactos devem ter sido extremamente intensos enquanto duraram. Os seus livros são precisamente aquilo que era e é necessário como antídoto para a crise do mundo moderno.


Pela altura em que tinha quase 30 anos, a sua inteligência fenomenal permitiu-lhe ver exactamente o que estava errado no Ocidente moderno, e essa mesma inteligência tinha-lo trazido para fora dele totalmente. Eu próprio me lembro desse mundo no qual e para o qual Guénon escreveu os seus primeiros livros, na primeira década a seguir à Primeira Grande Guerra, um mundo monstruoso tornado impenetrável pela euforia: a Primeira Grande Guerra tinha sido a guerra para acabar com a guerra. Agora nunca mais haveria uma outra guerra; e a ciência tinha provado que o homem era descendente do macaco, isto é, ele tinha progredido dos primatas, e agora este progresso iria continuar sem nada que o impedisse; tudo iria tornar-se melhor, melhor e melhor. Eu estava na escola nessa altura e lembro-me de ser ensinado estas coisas, com apenas uma hora por semana a ser ensinado o oposto nas aulas de religião. Mas a religião no mundo moderno já tinha há muito sido encostada a um canto. Desse canto ela protestava conta a euforia, mas sem resultado.


Hoje a situação é consideravelmente pior e consideravelmente melhor. Ela é pior porque os seres humanos degeneraram ainda mais. Podemos ver bem mais faces maldosas do que se viam nos anos 20, se tal me é permitido dizer, ou, pelo menos, é essa a minha impressão. Ela é melhor porque já não existe qualquer euforia. O edifício do mundo moderno está a cair em ruína. Grandes fissuras estão a surgir por toda a parte, através das quais se pode penetrar como nunca foi possível. Mas é ainda pior porque a Igreja, ansiosa para não ficar atrás dos tempos, se tornou cúmplice da modernidade.


Mas para voltar aos anos 20, lembro-me de um político proclamar, como alguém se atreveria actualmente, “Estamos agora na manhã gloriosa do mundo.” E nesta mesma altura, escreveu Guénon deste maravilhoso mundo, “É como se um organismo com a sua cabeça cortada continuasse a viver uma vida, intensa e desordenada.” (retirado de Este e Oeste publicado a primeira vez em 1924).


Parece que Guénon não manteve contactos adicionais com o Hindus e sem dúvida eles regressaram à Índia. Entretanto, ele foi iniciado numa ordem Sufi, a qual seria a sua casa espiritual para o resto da sua vida. De entre os males que viu à sua volta ele era muito preocupado com o preconceito anti-religioso que era particularmente comum entre os designados intelectuais Franceses. Ele tinha a certeza que algumas dessas pessoas eram, no entanto, virtualmente inteligentes e seriam capazes de responder à verdade se esta lhes fosse claramente exposta. Este preconceito anti‑religioso surgiu porque os representantes da religião tinham gradualmente se tornado menos inteligentes e mais e mais centrados em considerações sentimentais. Especialmente na Igreja Católica, onde a divisão da comunidade em clero e leigos era sempre enfatizada, um leigo tinha de confiar na Igreja, não sendo sua função pensar sobre coisas espirituais. Os homens leigos inteligentes colocariam questões a padres que não teriam capacidade de responder e que se refugiariam na ideia que a inteligência e o orgulho estavam intimamente ligados. E, assim, não é difícil ver como este preconceito extremamente anti-religioso surgiu especialmente em França.


Guénon colocou-se então a seguinte questão: Uma vez que estas pessoas rejeitaram o Cristianismo, serão elas capazes de aceitar a verdade quando expressa nos termos Islâmicos do Sufismo, os quais estão proximamente relacionados com os Cristãos em vários aspectos? Ele decidiu que elas não seriam, que diriam que era outra religião; que tinham tido religião a mais. No entanto, O Hinduísmo, a religião viva mais antiga, é à superfície muito diferente, quer do Cristianismo, quer do Islamismo, e, assim, ele decidiu confrontar o mundo Ocidental com a verdade tendo por base o Hinduísmo. Foi com este fim que escreveu a sua geral Introdução ao Estudo das Doutrinas Hindu. O livro foi publicado em 1921, seguido em 1925 por aquela que é talvez a sua maior obra, O Homem e o Seu Devir de acordo com o Vedanta.


Ele não poderia ter escolhido uma melhor forma para a sua mensagem de verdade para o Ocidente, pois o Hinduísmo tem uma objectividade que resulta de ter sido revelada ao homem numa era remota em que ainda não existia a necessidade de estabelecer uma distinção entre o esoterismo e o exoterismo, e essa objectividade significa que a verdade não teve de ser velada. Ainda na Antiguidade Clássica os Mistérios, ou seja, o esoterismo, eram apenas para alguns. No Hinduísmo, no entanto, eles eram a norma e as mais elevadas verdades podiam ser faladas de forma directa. Não havia a questão de “Não lances as tuas pérolas aos porcos” e “Não dês coisas sagradas aos cães”. As religiões irmãs do Hinduísmo, por exemplo, as religiões da Grécia e de Roma, há muito que tinham desaparecido. Mas graças ao sistema de castas, tendo os Brahmins como salvaguarda da religião, temos hoje um Hinduísmo que ainda se encontra vivo e que ao longo deste século produziu flores de santidade.


Um dos pontos a ser referido em primeiro lugar é a questão da distinção que deve ser feita ao nível divino e que é feita em todos os esoterismos, não podendo ser feita exotericamente, ou seja, nas religiões dadas actualmente às massas – a distinção entre o Absoluto e o início, a partir daí, da relatividade. O Absoluto que é Um, Infinito, Eterno, Imutável, Indeterminado, Incondicionado, é representado no Hinduísmo pela monossílaba Aum, e é designado por Atmâ, que significa o Si, e Brahma, a qual é uma palavra neutra que serve para enfatizar que está para além de toda a dualidade, tal como o masculino e feminino. E é também designado por Tat (Aquilo), tal como no Sufismo, onde o Absoluto é por vezes designado por Huwa (Ele). Depois, temos o que corresponde em outras religiões ao Deus pessoal, Ishvara, o que corresponde já ao início da relatividade, uma vez que diz respeito à manifestação, o termo que os Hindus usam para a criação, e a criação é claramente o inicio da dualidade – Criador e criado. Ishvara está ao nível divino, no entanto, é o princípio da relatividade.


Em todo o esoterismo encontramos a mesma doutrina. Mestre Eckhart encontrou dificuldades com a Igreja porque insistiu em fazer a distinção entre Deus e Divindade [Godhead] – Gott und Gottheit. Ele usou o segundo termo para o Absoluto, isto é, para o Absoluto Absoluto, e usou o segundo termo para o Absoluto relativo. Podia ter sido o oposto, mas ele precisava de fazer alguma distinção. No Sufismo, falamos da Essência Divina e nos Nomes Essenciais de Deus, tais como O Uno, A Verdade, O Todo-Sagrado, O Vivo, O Infinitamente Bom, al-Rahmân, o qual contem as raízes de todo o bem e o qual é também um nome da Essência Divina. Abaixo disso existem os Nomes das Qualidades, como o Criador, o Misericordioso, no sentido daquele que tem Misericórdia pelos outros, e isso é claramente o início de uma dualidade. Em todos os esoterismos esta distinção é feita mesmo ao nível da Divindade. Ela não pode existir abaixo do esoterismo porque resultaria na ideia de dois Deuses; uma divisão na Divindade seria excessivamente perigosa nas mãos da massa de fiéis. A Unidade Divina tem que ser mantida a todo o custo.


Guénon, no seu livro, traça com toda a claridade a hierarquia do universo a partir do Absoluto, do Deus pessoal, até ao logos criado, isto é, buddhi, que é a palavra que significa intelecto e que tem três aspectos – Brahmâ (desta vez a palavra é masculina), Vishnu e Shiva. Falando apenas da hierarquia dos universos, estes devas (esta é linguisticamente a mesma palavra que a palavra Latina deus), têm o nível do que designaríamos por arcanjos. O Hinduísmo é, no entanto, tão subtil que apesar de serem criados eles podem ser invocados como Nomes do Absoluto porque descendem do Absoluto e regressam ao Absoluto. Eles podem ser invocados no sentido do Brahmâ Absoluto, no sentido de Atmâ, no sentido de Aum.


A doutrina Hindu, tal como o Génesis, fala de duas águas. O Corão fala de dois oceanos, as águas superiores e as águas inferiores. As águas superiores representam o aspecto mais elevado do mundo criado, isto é, do mundo manifestado, correspondendo aos diferentes níveis nos quais existem os diferentes paraísos. É tudo parte do próximo mundo do ponto de vista deste mundo. As águas inferiores representam o mundo do corpo e da alma, e tudo é uma manifestação do Absoluto.


Em O Homem e o Seu Devir de acordo com o Vedanta, Guénon, após traçar a manifestação do homem e mostrar com todo o detalhe qual é a sua natureza, procede mostrando como, de acordo com a doutrina Hindu, o homem pode regressar à sua fonte absoluta. Acaba com a suprema possibilidade de unidade com o Absoluto, uma unidade que já se encontra presente. Um rapaz Brahmin com a idade de oito anos é iniciado pelo seu pai e as palavras murmuradas aos seus ouvidos, “Tu és Aquilo” [Thou art That], sendo o significado de tu és o Absoluto, tat vam asi. Isto mostra o quanto estamos longe da religião tal como é compreendida no mundo moderno. Mas essa verdade, que no Sufismo é designada por o segredo, al-sirr, está necessariamente em todo o esoterismo nos tempos actuais, caso contrário não mereceria o nome de esoterismo.


Outro aspecto do Hinduísmo que serve de veículo perfeito para a mensagem de Guénon é a amplitude da sua estrutura. Nas religiões mais recentes, é como que a Providência tivesse encaminhado a humanidade para um vale cada vez mais estreito: a abertura é a mesma mas a perspectiva horizontal é cada vez mais estreita porque o homem não consegue receber mais do que apenas uma parte. A doutrina Hindu do samsâra, ou seja, da eterna corrente de inúmeros mundos que foram manifestados, e dos quais o universo é constituído, originaria todo o tipo de distracções. De qualquer forma, quando estamos a falar de um Absoluto, Divindade Eterna, a ideia que essa Infinitude produziu apenas um único mundo ao manifestar-se não satisfaz a inteligência. A doutrina do samsâra por outro lado, satisfaz, mas os mundos que foram manifestados são inumeráveis.


Outro ponto a este respeito é o facto do Hinduísmo possuir uma surpreendente versatilidade. Ele depende em primeiro lugar da Revelação Divina. Os Vedas e os Upanishades são revelados; o Bhagavad Gita é geralmente considerado como revelado mas não a totalidade do Mahâbhârata, o épico “inspirado” a que pertence o Gita. No Hinduísmo, esta distinção entre revelação, sruti, e inspiração, smriti, é assinalada claramente, tal como o é no Judaísmo e no Islão: O Pentateuco, ou seja, os primeiros cinco livros do Antigo Testamento, foram revelados a Moisés, o Livro dos Salmos a David, o Corão a Maomé. Isto é algo que, de uma maneira geral, os Cristãos não compreendem. Eles têm dificuldade em entender, no Antigo Testamento por exemplo, a diferença entre o Pentateuco e os Livros dos Reis e as Crónicas, os quais são apenas história sagrada, sem dúvida inspirada, mas de forma alguma revelada. Para os Cristão a revelação é Jesus Cristo, a Palavra feita carne; o conceito da “Palavra feita livro”, a qual é uma revelação paralela, não entra na sua perspectiva.


O Hinduísmo tem ainda os avatâras, e isso um Cristão pode compreender, ou seja, as manifestações, as descidas, da Divindade. É claro que o Cristianismo não reconhece as descidas dos avatâras Hindus, pois para o Cristão comum apenas existiu uma única descida e essa foi o próprio Cristo, mas o Hinduísmo reconhece a descida como uma possibilidade inexaurível e nomeia dez avatâras que ajudaram a manter a vitalidade da religião até aos dias actuais. O nono avatâra, o qual é chamado de avatâra estrangeiro, é o próprio Buda, apesar de aparecer na índia, ele não foi para os Hindus mas claramente para o mundo Oriental. A amplitude do Hinduísmo é também visível na sua prefiguração do exoterismo, o qual é o reconhecimento das Três Vias. Estas são ainda Vias de retorno a Deus – as três margas – a via do conhecimento, a via do amor, e a via da acção – três vias que correspondem às inclinações e afinidades de diferentes seres humanos.


Outro aspecto que torna os termos Hindus tão ajustados para passar aos Europeus a sua mensagem, é que eles têm, como Arianos, uma afinidade com o Hinduísmo, pois as suas raízes estão nas religiões da Antiguidade Clássica, as quais são religiões irmãs do Hinduísmo; a sua estrutura era claramente semelhante à do Hinduísmo. É claro que elas degeneraram em completa decadência e estão agora desaparecidas. No entanto, a nossa herança reside nelas e Guénon oferece-nos a possibilidade de uma misteriosa renascença num sentido puramente positivo através da sua mensagem da verdade em termos Hindus. Esta afinidade não deve ser, no entanto, exagerada, e Guénon nunca, tanto quanto sabemos, aconselhou a ninguém que não fosse Hindu que se tornasse Hindu.


A sua mensagem foi sempre uma mensagem de estrita ortodoxia num esoterismo, mas ao mesmo tempo de igual reconhecimento de todas as outras ortodoxias, mas este propósito não era de forma alguma académico. O seu motto foi vincit omnia veritas, a Verdade conquista tudo, mas implicitamente o seu motto era “Procura e encontrarás, bate e a porta te será aberta”. Implícito nos seus textos está a certeza que eles aparecerão providencialmente para aqueles que forem qualificados para receber a sua mensagem e os impelirão a procurar e, dessa forma, descobrir um caminho.


Guénon estava consciente de ter uma função e sabia o que pertencia à sua função e o que não pertencia. Ele sabia que não era a sua função ter discípulos; ele nunca teve nenhum. A sua função era ensinar como preparação para uma via em que as pessoas pudessem encontrar por elas próprias, e esta preparação implicava preencher as lacunas provocadas pela educação moderna. A primeira destas lacunas é a incapacidade de compreender o significado do transcendente e o significado da palavra intelecto em consequência, uma palavra que continuou a ser utilizada, mas que no sentido tradicional da palavra, correspondente ao Sânscrito buddhi, foi simplesmente esquecida no mundo ocidental. Guénon insistiu nos seus textos em dar a esta palavra o seu verdadeiro significado, o qual é a percepção das realidades transcendentes, a faculdade que pode ver as coisas do próximo mundo, e os seus prolongamentos na alma são aquilo que pode ser designado por intuições intelectuais, as quais são as luzes preliminares que antecedem o momento da intelecção total.


Ficamos com a impressão de que Guénon deve ter tido uma iluminação intelectual numa idade muito jovem. Ele deve ter pressentido directamente verdades espirituais com o intelecto no seu verdadeiro sentido. Ele preencheu as lacunas explicando o significado dos ritos, o significado dos símbolos, a hierarquia dos mundos. Na educação moderna o próximo mundo é deixado totalmente de fora, enquanto que na Idade Média os estudantes eram ensinados sobre a hierarquia das faculdades e, correspondentemente, da hierarquia do universo.


Vamos agora por uns instantes falar a um nível mais pessoal, mas talvez possa não ser sem interesse. Quando li os livros de Guénon no princípio dos anos trinta foi como se tivesse sido atingido por um relâmpago e compreendi que aquilo era a verdade. Eu nunca tinha visto a verdade exposta da forma como o foi na mensagem de Guénon, que existiam várias religiões e que todas deveriam ser tratadas com reverência; elas eram muito diferentes porque eram destinadas a pessoas diferentes. Fazia todo o sentido e era ao mesmo tempo para a glória de Deus porque qualquer pessoa com um nível de inteligência razoável, quando ensinada aquilo que nos ensinavam na escola, teria inevitavelmente que perguntar: então e o resto do mundo? Porque é que as coisas eram geridas desta forma? Porque é que a verdade foi dada em primeiro lugar apenas aos Judeus, a um só povo? E depois foi ordenado que o Cristianismo fosse espalhado pelo mundo, mas porquê tão tarde? E nos tempos antigos? Estas questões nunca eram respondidas, mas quando li Guénon eu soube que aquilo que ele dizia era a verdade e que eu teria que fazer algo em relação a isso.


Escrevi a Guénon. Traduzi um dos seus primeiros livros, Este e Oeste, para o Inglês, e mantive correspondência com ele em relação à tradução. Em 1930, Guénon deixou Paris após a morte da sua mulher e foi para o Cairo onde viveu durante vinte anos até à sua morte, em 1951. Uma das minhas primeiras ideias ao ler os livros de Guénon foi enviar cópias ao meu melhor amigo que tinha estudado comigo em Oxford, pois sabia que ele teria a mesma reacção que eu. Ele regressou ao Ocidente e seguiu o mesmo caminho que eu já tinha encontrado, um caminho do tipo do referido por Guénon nos seus livros. Depois, ao precisar de trabalho, aceitou um lugar de professor na Universidade do Cairo, e enviei-lhe o número da caixa postal de Guénon. Guénon era extremamente reservado e não dava a sua morada a ninguém; ele queria desaparecer. Ele tinha inimigos em França e suspeitava que eles o queriam atacar através de magia. Eu não tenho a certeza disto mas sei que Guénon tinha imenso receio de ser atacado por certas pessoas e desejava manter-se desaparecido, afundar-se no mundo Egípcio onde estava, o mundo do Islão. Assim, o meu amigo teve que esperar muito tempo até que Guénon tivesse aceitado encontrar-se com ele. Quando finalmente se encontraram Guénon afeiçoou-se imediatamente a ele e disse-lhe que podia ir a sua casa sempre que desejasse.


No Verão de 1939 fui visitar o meu amigo ao Cairo e enquanto lá estava a guerra começou. Eu tinha aulas para dar na Lituânia nessa altura e, uma vez que não podia regressar, fui forçado a ficar no Egipto. O meu amigo, que por essa altura se tinha tornado como que membro da família de Guénon, recolhendo o seu correio e ajudando-o em muitas outras coisas, levou-me a conhecer Guénon. Um ano depois estava a andar a cavalo no deserto com o meu amigo quando o seu cavalo fugiu com ele e o matou em resultado de um acidente. Nunca esquecerei o momento em que tive de ir dar a notícia a Guénon. Quando o fiz ele chorou durante uma hora. Não tive opção senão tomar o lugar do meu amigo. Eu já tinha sido posto à vontade para frequentar a sua casa e muito rapidamente me tornei como que parte da família. Foi obviamente um enorme privilégio. A mulher de Guénon não sabia ler e apenas falava Árabe. Rapidamente aprendi Árabe e consegui falar com ela. Era um casamento muito feliz. Eles estavam casados há sete anos e não tinham qualquer filho e Guénon, que já estava a ficar com alguma idade – ele era bastante mais velho que ela – não tinha tido filhos com a sua primeira mulher, razão pela qual foi inesperado quando eles começaram a ter filhos. Tiveram ao todo quatro filhos. Eu visitava Guénon praticamente todos os dias. Fui a primeira pessoa a ler o Reino da Quantidade, o único livro que escreveu enquanto estava com ele pois os outros livros já tinham sido todos escritos. Ele deu-me a ler capítulo a capítulo. Tive ainda a oportunidade de lhe dar o meu próprio primeiro livro, The Book of Certainty, o qual lhe dei igualmente capítulo a capítulo. Foi um grande privilégio conhecer tal pessoa.


Durante este tempo uma questão muito importante foi resolvida. Os Hindus com quem Guénon havia estabelecido contacto em Paris tinham lhe dado uma ideia errada, uma ideia não estritamente Hindu, sobre o Budismo. O Hinduísmo reconhece o Buddha como o nono avatâra de Vishnu apesar de alguns Hindus manterem a ideia que ele não era um avatâra, que ele era apenas um kshatriya revoltado, um membro da casta real, contra os Brahmins e foi esta ideia que Guénon aceitou. Consequentemente ele escreveu sobre o Budismo como se este não fosse uma das grandes religiões do mundo. Ananda Coomaraswamy, Frithjof Schuon e Marco Pallis decidiram em conjunto procurar elucidar Guénon sobre esta questão. Guénon mostrou-se muito aberto a ser persuadido e em 1946 levei Marco Pallis a ver Guénon e como resultado ele aceitou que estava enganado e que os erros deveriam ser corrigidos nos seus livros. Marco Pallis começou a mandar-lhe listas com as páginas que precisavam de ser corrigidas.


Guénon praticamente não saía de casa excepto quando nos vinha visitar. Eu mandava um carro para o apanhar e ele vinha visitar-nos com a sua família cerca de duas vezes por ano. Nessa altura vivíamos perto das pirâmides fora de Cairo. Saí com ele apenas uma vez quando fomos visitar a mesquita de Sayyidnâ Husayn perto de al‑Azhar. Ele tinha uma presença incrível; era fantástico ver o respeito com que ele era tratado. À medida que entrou na mesquita ouvia-se as pessoas sussurrar de todo o lado dizendo “Allâhumma salli ‘alâ Sayyianâ Muhammad,” ou seja, “Que Deus faça chover bênções sobre o profeta Maomé”, o que é uma forma de expressar grande reverência a alguém. Ele tinha uma presença luminosa e os seus maravilhosos olhos, uma das suas mais impressionantes características, retiveram o seu lustre até numa idade muito avançada.


Ao nível do seu livro sobre o Vedanta temos o livro que escreveu sobre símbolos, intitulado Símbolos Fundamenteais: A Linguagem Universal da Ciência Sagrada, publicado após a sua morte a partir dos artigos que foi escrevendo para a revista Études Traditionelles. Era maravilhoso ler estes artigos à medida que apareciam mês após mês, mas este livro transporta-nos de volta para os tempos pré-históricos, tal como no O Homem e o Seu Devir de acordo com o Vedanta, mas numa forma mais abrangente. Tudo é obviamente um símbolo, não poderia existir se não fosse um símbolo, mas os símbolos fundamentais são aqueles que expressam eloquentemente aspectos da Verdade Suprema e do Caminho Supremo. Por exemplo, um destes aspectos do Caminho e da Verdade é aquilo que é designado por “eixo do mundo”, eixo que atravessa de todos os estados elevados a partir do centro deste estado. Este é o significado do que é designado por Árvore da Vida. A Árvore da Vida é simbolizada por várias árvores particulares: o carvalho, o freixo, a figueira e outras em todo o mundo. O eixo é o próprio Caminho, o caminho de retorno ao Absoluto. É igualmente simbolizado por objectos criados pelo homem: a escada, o mastro, armas como a lança, e o pilar central de edifícios. Como os arquitectos sabem, muitos edifícios são construídos em torno de um eixo central que, na realidade não está lá, não se encontra materializado. Muitas vezes nas casas tradicionais a lareira é o centro da casa e a chaminé a partir da qual o fumo sobe é outra figura do eixo. E coisas que são normalmente horizontais podem ser igualmente símbolos do eixo: uma ponte também é um símbolo do eixo do mundo. Veja-se o título de Pontífice, o fazedor da ponte, o qual é dado a mais elevada autoridade espiritual da Igreja – a ponte, que é a ponte entre o Céu e a terra.


Outro símbolo fundamental é o rio. Existem três aspectos associados ao rio: a passagem do rio simboliza a passagem deste mundo para um mundo mais elevado, sempre, mas depois existe o próprio rio. Existe a dificuldade de subir contra o curso do rio o que simboliza as dificuldades do caminho espiritual, de regressar à nossa fonte contra a corrente. Existe também o simbolismo de movimento na outra direcção, a do oceano, de regressar finalmente ao oceano; este é outro símbolo do Caminho. No seu livro, entre muitos outros símbolos, Guénon aborda o simbolismo da montanha, da gruta, do ciclo temporal. No ciclo temporal, os solstícios de verão e do inverno são os portões dos deuses de acordo com o Hinduísmo. Os portões dos deuses do solstício de inverno, no signo de Capricórnio; os portões dos ancestrais no solstício de verão, no signo de Caranguejo.


Como referi, Guénon não gostava de falar sobre si próprio e eu respeitei a sua reticência, nunca lhe coloquei questões e acho que ele apreciava isso. Resumindo o que era a sua função, pode-se dizer que a esta era, num mundo cada vez mais abundante de heresia e pseudo-religião, relembrar ao homem do século vinte a necessidade de ortodoxia, a qual pressupõe, em primeiro lugar, a intervenção divina, e em segundo lugar, uma tradição que transmita fielmente de geração em geração aquilo que o Céu revelou. Neste sentido, estamos extremamente em dívida para com ele por ter restaurado ao mundo a palavra ortodoxia com todo o rigor do seu significado original, ou seja, rectidão de opinião, uma rectidão que compele o homem inteligente não só a rejeitar a heresia, mas também a reconhecer a validade de todas aquelas fés que estão conforme os critérios com os quais essas fés dependem para a sua ortodoxia.


Na base desta universalidade, a qual é muitas vezes conhecida como religio perennis, foi também função de Guénon lembrar-nos que as grandes religiões do mundo não são apenas meios para a salvação do homem, mas que frequentemente estão para além disso, mesmo durante esta vida, duas possibilidades esotéricas que correspondem àquilo que era conhecido na Antiguidade Greco-Romana como mysteria pava e mysteria magna, os “Grandes Mistérios” e os “Pequenos Mistérios”. O primeiro é o caminho de retorno à perfeição primordial perdida na queda. O segundo, que pressupõe o primeiro, é o caminho da gnosis, o cumprimento do preceito “conhece-te a ti próprio”. Este fim último é designado no Cristianismo por deificatio, no Hinduísmo, por yoga, união e moksha, libertação, no Budismo, por nirvana, isto é, extinção de tudo o que é ilusório. E no misticismo Islâmico, isto é, no Sufismo, por tahaqquq, o que significa realização tendo sido referido por um sheikh Sufi como auto-realização em Deus. Os Mistérios, e especialmente os Grandes Mistérios, são explicitamente ou implicitamente o tema central dos escritos de Guénon, mesmo na Crise do Mundo Moderno e no Reino da Quantidade. Ele demonstra que os problemas em questão tiveram a sua origem na perda da dimensão dos mistérios, isto é, da dimensão dos mistérios do esoterismo. Ele encontra a origem de todos os problemas do mundo moderno no esquecimento dos mais elevados aspectos da religião. Ele estava consciente de ser um pioneiro, e vou terminar simplesmente com uma citação de algo que ele disse de si próprio, “Tudo o que fizermos ou dissermos servirá para oferecer aqueles que vierem posteriormente as facilidades que nós próprios não tivemos. Aqui como em todo o lado, é o início do trabalho que é o mais difícil.”

2 comentários:

  1. Simplesmente brilhante..

    João Eduardo

    ResponderEliminar
  2. Assim é: ou fazemos um esforço para nos conhecermos enquanto membros de um todo ao qual pertencemos, mas no qual não temos a noção do lugar que aí ocupamos, ou então teremos um mundo de seres cada vez mais alienados e incapazes de fazer o que quer que seja para serenar a humanidade.
    A. M.

    ResponderEliminar