O texto publicado de seguida é o editorial deste primeiro número que pode ser obtido aqui.
EDITORIAL
A revista agora apresentada é o resultado de um trabalho desenvolvido, ao longo dos dois últimos anos, no espaço em linha que agora partilha o nome com esta publicação. No entanto, ela é o fruto de uma intuição mais antiga. Com efeito, mais de década e meia passou desde o momento em que as palavras de René Guénon e Frithjof Schuon começaram a produzir os seus efeitos de solve et coagula numa mente e numa alma tão afastadas do sagrado como a maioria das muitas que vagueiam alienadas por este mundo em ruínas. Recorrendo a uma excelente analogia de Cutsinguer, as suas obras providencialmente colocadas à minha disposição foram como o arado que revolve a terra para que o oxigénio a alimente e a torne fértil.
Desse precioso instante até ao momento em que escrevo estas palavras, muitos foram os caminhos tortuosos percorridos, as desilusões e os desgostos vividos, até que, de um modo subtil, uma certeza se apoderou de mim e as dúvidas começaram a dar lugar a intuições da Verdade. Para tal, muito contribuíram as precisas e preciosas definições metafísicas de René Guénon, poderosos antídotos para os muitos preconceitos e falsas ideologias que nos são impostas desde tenra idade. Esta certeza rapidamente deu lugar a muitas outras dúvidas, mas estas com carácter positivo.
Logo nas primeiras palavras vindas a público deste projecto, escolhidas para a introdução do blogue Sabedoria Perene, foi referido que este nasceu sobretudo de um processo de busca pessoal da Verdade. Não obstante, já nessa altura existia um desejo latente de divulgar em Portugal a corrente de pensamento conhecida por “tradicionalismo” ou “perenialismo”. Não vou abordar aqui o seu significado, pois este brotará naturalmente da leitura dos diversos ensaios incluídos neste primeiro número da Sabedoria Perene.
Com efeito, é precisamente esse o principal objectivo deste primeiro número, e a grande maioria dos ensaios incluídos procuram apresentar diferentes, embora convergentes, pontos de vista sobre esta corrente ou escola de pensamento. Esta intenção é sobretudo cumprida no bloco de artigos da revista agrupados sob o título “Tradição e Sophia Perennis”, no qual se procurou clarificar de forma inequívoca os significados destas duas expressões. Apesar da excelência de todos os ensaios aí apresentados, não se pode deixar de salientar a inclusão do famoso “O que é a Tradição?” do ilustre Seyyeid Hossein Nasr e o maravilhoso texto de Reza Shah-Kazemi sobre a função espiritual da Tradição, onde expõe longa e claramente a perspectiva perenialista em relação à filiação religiosa, às vias espirituais e à oração. De semelhante importância são os já consagrados artigos de Schuon sobre a Filosofia Perene e a Religio Perennis.
Ao chegar a este bloco de textos, o leitor interessado já terá lido o ensaio seleccionado para “Introdução” à revista. Este importante texto, escrito há quase duas décadas, não só nos introduz a muitos dos temas chave do pensamento perenialista, como nos apresenta brilhantemente os seus três principais intérpretes e fundadores, René Guénon, Ananda Coomaraswamy e Frithjof Schuon.
São precisamente estes três sábios, cujo advento o mundo moderno não conseguiu evitar, os ‘alvos’ do bloco “In memoriam” que antecipa o encerramento deste primeiro número. Procurar-se-á manter esta forma de conclusão em futuros números, prestando homenagem às grandes iluminárias desta corrente de pensamento que procura fazer emergir da escuridão este mundo dessacralizado.
Antes deste bloco irá o leitor encontrar ainda “Estudos da Tradição”, um conjunto mais heterogéneo de artigos que procura apresentar e expor ensinamentos, métodos espirituais, simbolismo e outras facetas das tradições religiosas do mundo; objectivo aliás partilhado com a própria revista. Apesar de não serem abordadas todas as tradições religiosas, o considerável número de brilhantes estudos de vários aspectos dessas tradições oferece uma maravilhosa amostra do dedicado trabalho de homens e mulheres que partilham um modo especial de olhar e aceitar a Realidade. Destaca-se o artigo gentilmente cedido por Mateus Soares de Azevedo, com o qual se cumpre um dos objectivos desta revista, a publicação de artigos originais de autores de língua portuguesa.
No último bloco deste número, denominado “Fragmentos de espiritualidade”, são oferecidas algumas pérolas de sabedoria espiritual de várias tradições da humanidade, aquelas que como partilhei uma vez no blogue, fazem brotar “subtis lágrimas, … quando o corpo e a alma são invadidos por Essa Infinitude que não cabe em parte alguma”.
Na abordagem das diversas tradições reveladas da humanidade em futuros números da Sabedoria Perene, que se pretende iniciada no contexto de cada uma delas, não faltarão estudos relativos às artes tradicionais e às ciências que delas brotaram. Essa abordagem ou abordagens tradicionais que se procurarão desvendar nos artigos seleccionados, resultam do recurso às metodologias consagradas nessas mesmas tradições, como por exemplo, a Hermeneia (Grega), a Nirukta (Hinduísmo), a Lectio Divina (Cristianismo), as práticas cabalísticas como a gematria, notariqon, e temura, e as ciências islâmicas das letras, ilm alhuruf.
O leitor menos conhecedor dos ensinamentos oferecidos pelos três grandes pensadores que deram origem a esta corrente de pensamento compreenderá, ao percorrer os preciosos ensaios constantes nesta compilação, que esta revista é sobretudo direccionada para aqueles que reconhecem uma verdade fundamental na “unidade transcendente das religiões” e que buscam a via do conhecimento (da pura gnose). Ela dirige-se ao homem como um todo, “feito à imagem de Deus”, e ao seu Intelecto, o qual não existe sem a presença do Amor e da Beleza que abrem as portas para o Sagrado. “A beleza é o esplendor da Verdade”, diz Frithjof Schuon.
Apresentado de forma sumária o presente número da Sabedoria Perene, interessa revelar alguns dos objectivos para números futuros. Em primeiro lugar, é intenção dos editores que esta venha a ter um carácter temático. Assim, no próximo número será dada especial ênfase à arte, bem como à sua ligação ao símbolo. Para um número seguinte está prevista uma abordagem da crise do mundo moderno e dos problemas ambientais.
Em segundo lugar, é nosso desejo que a revista inclua, para além de traduções, artigos originais escritos por autores lusófonos. Este objectivo foi alcançado logo neste primeiro número com a contribuição de Mateus Soares de Azevedo, o que não deixa de ser um óptimo prenúncio para o futuro. Os editores apresentam assim o convite para o envio de trabalhos que desenvolvam os temas propostos recorrendo às metodologias e abordagens tradicionais que sobressaem destas páginas.
Para concluir este editorial refere-se um aspecto da maior importância. Interessa ao leitor saber que as traduções aqui apresentadas são da exclusiva responsabilidade dos tradutores e que não foram alvo de revisão por parte dos autores dos respectivos artigos. Deverá também ter presente que, apesar do esforço dispensado na sua revisão, as traduções são fruto de uma dedicação pessoal e não de um trabalho profissional, pelo que não estarão certamente livres de conter erros ou de exigir mais talento. Pede-se a complacência do leitor, por certo exigente, e deixa-se a promessa de uma entrega total e busca de aperfeiçoamento. No fundo, por imperfeita que seja, esta é uma oferta do fundo do Coração a todos aqueles que procuram a Verdade. A complexa arte de tradução, como brilhantemente apresenta Ali Lakhani num dos artigos que integram a revista é, na verdade, um acto de entrega total, ela “é, em ultima análise, a arte de auto-interpretação. É identificar a fonte de toda a criatividade com a Origem e a sua localização no interior do Centro espiritual de nós próprios. Este Centro espiritual de cada um, para o qual e a partir do qual tudo o que existe está conectado como que através de uma rede sagrada, é o Coração.”
Miguel Conceição
Lisboa, 12 de Junho de 2009
786
ResponderEliminarAlhamdulilah!!!
Muita luz para os autores de sabedoria perene.
Forte abraço,
Léo Magalhães
786
ResponderEliminarGostaria de comentar duas passagens da Introdução, o artigo "A renovação do Interesse na tradição".
"Adicionalmente, e na mesma altura, recebeu ensinamentos de alguns ocidentais mais ou menos ligados ao Taoísmo e ao Islão".
"Apesar da sua afiliação ser islâmica e tendo, a partir de 1930, vivido no Egito, a modalidade da sua visão manteve-se essencialmente vedantina e hermética."
Bem, isso difere da informação que me foi passada. Que eu saiba, e posso estar errado, mas sem querer "puxar a sardinha pro lado de cá", como se diz no Brasil, Guénon, apesar de ter iniciado sua trajetória pela linha hinduísta de Shancaracharya, e de ter escolhido esta linguagem como veículo principal de sua obra, foi da metade da sua vida até o final, um sufi, e é sabido que seu nome espiritual era Abdul-Wáhid Yáhia, e alguns até atribuem a ele, não sei se com autoridade ou não, o título de Shaykh. Também seu profundo conhecimento do taoísmo me faz duvidar se foi passado através de um ocidental ou não; com certeza não foi superficial nem de fonte desprovida de autoridade.
Por favor, se souberem de textos confirmando ou refutando esta tese, favor me indicar a leitura.
Obrigado,
Que a paz de Deus esteja convosco
Léo magalhães
Bravíssimo!
ResponderEliminarInformativo, abrangente e certamente muito útil para os leitores de língua portuguesa este número inicial da revista.
Meus calorosos parabéns para Miguel, Nuno e Noémia pela façanha!
Quanto à questão levantada, acima, por Léo Magalhães, creio que o sentido do trecho é o seguinte: Guénon praticava o Islã como sua religião pessoal e o Sufismo como via esotérica no interior deste. Não obstante isso, seu ponto de referência intelectual fundamental sempre foi a metafísica universal, sobretudo como "formatada" pelo Vedanta não-dualista de Shankara. Não há contradição entre as duas coisas, e é justamente esta compatibilização entre a religião particular de cada um e a metafísica perene o que faz cada indivíduo de formação "perenialista", seja ele de religião islâmica, católica, ortodoxa ou budista.
Pax, Salâm e vida longa ao Sabedoria Perene!
Mateus Soares de Azevedo
São Paulo, Brasil.
786
ResponderEliminarSim, claro Mateus, também não vejo contradição... Só achei estranho o artigo não assumir a opção pessoal de Guenon, apesar de ter escrito mais na linguagem vedantista, adotou em sua busca pessoal a tradição do sufismo...
Salam!
Léo Magalhães
Rio de Janeiro/ Brasil
Os congratulo pela iniciativa desta revista. Fazia falta uma reunião de artigos desta categoria em lingua portuguesa. Acredito que contribuirá para informar e esclarecer sobre o significado da "Sabedoria Perene" e de seus principais divulgadores; assim como, de 'limpar' confusões neste domínio.
ResponderEliminarSaudações,
Marcus B.
Divulgado n'O Bar do Ossian.
ResponderEliminarAbraço!
Miguel,
ResponderEliminarAo ler o artigo de Marcos Pallis sobre budismo, encontrei muita dificuldade em compreender. Acho que não sei nada de budismo... Fico à vontade quando a terminologia usada é hindu, islâmica ou Cristã, ou quando se faz comparação entre escolas destes, mas realmente, entendi muito pouco deste artigo budista. Que livro vc recomenda, para uma introdução ao estudo do budismo numa perspectiva perenialista??
Leo Magalhaes
Os livros de Pallis são excelentes.
ResponderEliminarAbraço
Caros Miguel e Léo,
ResponderEliminarSe vocês me permitem "meter minha colher" nesta questão, penso que a melhor introdução ao Budismo é o livro recente de William Stoddart, "O Budismo ao seu alcance", publicado no Brasil pela Record/Nova Era. Os livros de Marco Pallis são extraordinários, mas demandam um certo conhecimento inicial do tema. Ao passo que este de Stoddart foi feito para de fato introduzir o assunto para o não especialista. Stodart é na minha opinião um mestre da síntese; ele tem a rara e muito útil capacidade de extrair a quintessência dos fenômenos que avalia; esta qualidade pode ser constatada também neste breve volume sobre as doutrinas, ritos, costumes, arte e história do Budismo.
Abraços,
Mateus.
786
ResponderEliminarObrigado Mateus. Eu preciso mesmo de um livro introdutório, pois se desse artigo de Marco Pallis não entendi nada - principalmente por causa dos termos específicos e das referências às diferentes escolas, que desconheço - presumo que seus livros sigam a mesma linha e sejam para o iniciante de difícil compreensão...
Posso ler em inglês também...
Que a paz de Deus esteja convosco!
Léo Magalhães
Muitos Parabéns pela revista!
ResponderEliminarSó agora pude passar por cá e ver com tempo...
É uma óptima iniciativa!
Cumps
Sofia
Obrigado Sofia, espero que leiam.
ResponderEliminarBeijos
Abraço lusitano!
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