quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Sobre a tradução

Volta a este espaço uma tradução de um editorial da revista Sacred Web escrito por Ali Lakhani. Não posso deixar de ficar surpreendido com a forma como este autor aborda os temas, fundindo o simples e o complexo, levantando o véu sobre conceitos de difícil compreensão, recorrendo à análise profunda de temas comuns. Este editorial foi publicado no nº 13 da Sacred Web e versa sobre um tema muito caro a este espaço, a tradução. Espero que apreciem este texto tanto como eu o apreciei.

Uma tradução pressupõe a existência de um “original” ou de um protótipo, consistindo a arte do tradutor na capacidade de se manter fiel a esse mesmo protótipo. No pensamento tradicional, o conceito de “original” refere-se sempre à Origem, ou seja, à realidade Absoluta, a qual é simultaneamente a fonte da realidade fenomenológica (e, desta forma, superior a ela) e a sua impressão (e, desta forma, ao seu nível). Assim, toda a existência teve a sua origem no Absoluto, sendo dele uma expressão.

O termo “existência” (etimologicamente derivado de ex-stare, fora da unidade) implica uma projecção a partir de uma norma, o Absoluto. O Absoluto expressa a existência de duas formas: através da singularidade e da universalidade. A singularidade é a relativização do Absoluto através da sua diferenciação extrínseca, em virtude do Absoluto ser livre para expressar a sua infinidade, enquanto que a universalidade é a igualdade intrínseca desta diferenciação, em virtude do Absoluto ser necessariamente Uno. A singularidade da existência não é, no entanto, contraditória com a unicidade do Absoluto, tal como a universalidade da existência não é contraditória com a unidade do Absoluto – esta não contradição é explicada pelo facto do Absoluto exibir diferentes atributos em diferentes planos.

O Absoluto, apesar de transcendente, desenvolve-se nos múltiplos planos em que participa como imanência. Estes planos inferiores desdobram-se sequencialmente a partir do plano mais elevado, do subtil para o grosseiro, da essência para a forma. Neste processo de desenvolvimento, o superior traduz-se no inferior através do símbolo, a partir do qual o inferior participa no superior.

A existência é um palimpsesto. Cada vida e cada geração representam um texto diferente, escrito na mesma Página e com a tinta da mesma Pena. Apesar da história de cada indivíduo ser única, a história em si é a mesma: é a expressão da mesma passagem, de prefiguração, projecção e retorno. Apesar do tempo exprimir esta passagem de forma unívoca para cada um de nós, a geografia desta passagem é intrinsecamente a mesma: ela ocorre no interior do espaço da Única-subsistência, o ser divino do Absoluto. Cada história individual é, assim, uma tradução da própria história.

“A vida procura padrões” (Plotino) porque a Unicidade do Absoluto forja a vida através de padrões. O Infinito traduz o Absoluto e a existência traduz o Infinito. Todos nós somos traduções das vidas de outros. Cada um de nós abriga no seu interior a marca do Absoluto, o potencial para alcançar a perfeição. É um único Centro aquele que nos liga a todos. Perder o trilho desta ligação intrínseca e desta capacidade para atingir a perfeição, é perder o padrão da ordem e, assim, sucumbir perante o caos. Apenas a partir do Centro a ordem pode ser entendida.

Traduzir é atribuir significado, o qual é uma epifania, a manifestação do sublime. O homem está, na sua essência, numa constante busca pelo sublime. As próprias palavras são inadequadas para transmitir o objecto desta busca, a qual está para além do horizonte dos meros conceitos. Este reside nas regiões mais profundas de nós próprios e nos cantos mais recônditos da natureza. Por muito que nos esforcemos para o pronunciar, estaremos sempre destinados ao insucesso, porque aquilo que se procura pronunciar é verdadeiramente inefável, atraindo apenas o silêncio, o silêncio do êxtase. Nesse silêncio, ele é mais do que mero conhecimento, mais ainda do que a própria existência: nesse silêncio, o nosso eu pode sentir a sua alma incendiar-se com a beleza, inflamar-se com a maravilhosa intimidade com tudo o que vive e com o qual partilha a mais profunda ligação. Este é o sublime estado de graça associado à compreensão da Verdade como Presença (o satchitananda do Vedanta), o estado de unicidade e comunhão a que todas as tradições religiosas se referem como o reino do espírito.

A tradição ensina-nos que não somos aquilo que aparentamos ser: somos espíritos dotados de um corpo, “sombras de glória perdida”, como descritos por Wordsworth. Apesar do ser humano não poder ser separado da sua estrutura divina, a sua existência é, no entanto, uma “continuidade descontínua”, um “Véu Cósmico” de esquecimento e, assim, apenas através de vigilância espiritual podemos evitar que o mundo nos corroa a alma. A tradição entende o mundano como uma tradução do espiritual, e o objectivo da religião, a qual liga o humano ao divino, é precisamente despertar-nos para a presença do espírito, num mundo que está “demasiadamente em nós”. “Pois o homem fechou-se nele próprio até que apenas conseguisse ver através de estreitas fendas na sua gruta”, como constatou William Blake, reconhecendo que a percepção humana tende para a opacidade, reduzindo o espírito à matéria, o Intelecto à mera razão, o Coração ao ego, e o transcendente e maravilhosa fonte da existência a meros trabalhos mecânicos do universo. Esta visão humana separativa é espiritualmente moribunda:


O que quer que esteja aqui está lá.
O que quer que esteja lá está aqui.
Ele obtém morte após morte
Quem é que vê aqui alguma diferença.

(Katha Upanishad, 4:10)

Ela compele a vontade para o carnal e a inteligência para o orgulho, infernizando a alma.


Por outro lado, a visão unificadora do Intelecto, estando fundada no Absoluto, é salvífica: funciona através da visão interpretativa que religa a imagem ao seu protótipo, o humano ao divino. O olho do Intelecto entende a Verdade como Presença, “a gota de água no Oceano, e o Oceano na gota de água”. A sua visão é transformativa porque “quando a Rosa floresce, o Jardim está em toda a parte”. Saber é, assim, ver; no entanto, a visão espiritual não é apenas subjectiva (limitada apenas à opinião experimental do observador), nem apenas objectiva (reduzida a um conceito ou abstracção), ela é participativa, fundindo o sujeito e o objecto numa visão unitária e comprometida: “O olho com que vejo Deus é o mesmo olho através do qual Deus me vê” (Eckhart). O conhecimento espiritual (gnose) é assim ontológico. Está inscrito e ressoa nas regiões mais profundas no nosso ser. Por esta razão se afirma que “a metafísica afirma a identidade fundamental entre ser e conhecer” (Guénon).

A tradição ensina que o Absoluto Se traduziu no Centro espiritual do homem e, por essa razão, “conhecer-se a si próprio é conhecer a Realidade”. As verdades metafísicas são ontologicamente evidentes porque o “Reino de Deus está no interior”: “o Coração dos fiéis contém Deus”. O Coração, o Centro espiritual de cada um de nós, é simultaneamente o Centro que está em toda a parte. Apreender é participar metafisicamente naquilo que apreendemos. Isto implica o envolvimento do Coração naquilo que se apreende. Assim, saber é também amar. É a integração do conhecer e do amar no Coração que identifica o Coração com o Absoluto. Desta forma, existe uma qualidade eucarística na “iluminação”: a existência é metafisicamente transparente e invoca a Presença do Si Divino, o qual não é mais do que o Si Absoluto que reside no Coração puro dos fiéis.

Em termos metafísicos, a tradução pode ser então entendida como uma passagem do conhecer para o ser, através do amor, e a transmutação do ser em Presença da Verdade através do símbolo. Nas palavras de Frithjof Schuon: “amar é aquilo que permite que a compreensão chegue ao ser, ou seja, aquilo que nos liga ontologicamente à Verdade e que, dessa forma, nos abre para a magia transformativa do Símbolo”. Existem dois pontos nesta frase que gostaria de enfatizar.

Em primeiro lugar, em metafísica, o ontológico é logicamente anterior ao cognitivo. O ser precede o saber, para o qual o saber retorna. O conhecimento é um atributo (não necessariamente, mas suficientemente) do ser, e não inversamente como no caso da fórmula Cartesiana (‘cogito ergo sum’) que, compreendida neste sentido inverso, é um dos maiores erros da filosofia moderna. Por outras palavras, a implícita dicotomia Cartesiana da mente e da matéria, é desprezada no pensamento tradicional em favor de uma visão em que a matéria é uma tradução do espiritual, de uma forma em que a mente participa na matéria através do símbolo, o que resulta em que a matéria seja metafisicamente transparente ou traduzível em termos espirituais.

Em segundo lugar, a arte interpretativa do tradutor não é representativa mas simbólica: representar é apenas ilustrar, enquanto que simbolizar é transportar. O objectivo não é retratar mas transmitir. A tradução, entendida metafisicamente, acarreta uma dimensão ontológica de participação no sujeito que vai para além o mero acto de ilustrar ou imitar. Funcionando uma tradução como uma ponte entre a Origem e a nossa distância a ela, uma tradução fiel pode ser entendida como uma eliminação dessa distância ou como uma redução desse espaço até ao limite: assim, paradoxalmente, transcender o espaço é abrir uma nova dimensão de espaço, a qual é livre e sem limites. Este é um dos significados da hadith: “Na minha comunidade existem pessoas que irão entrar no Paraíso com almas semelhantes às dos pássaros.”

As trajectórias da gnose são a ascensão através do conhecimento da Verdade (o pólo objectivo da realidade, representado pelo Absoluto), e a descida do ser para a Presença (o pólo subjectivo da realidade, representado pelo Homem Universal). O Homem Universal (ou a santidade) é, assim, uma tradução do Absoluto (ou do divino), tal como a Verdade é o protótipo da Presença. A fidelidade do tradutor ao protótipo é função da receptividade do tradutor ao texto original. Na medida em que o texto fala para, ou ressoa no interior do tradutor, podemos dizer que o tradutor participa no texto através do acto da tradução. Aquilo que é envolvido por parte do tradutor é simultaneamente um exercício das suas capacidades (na busca do significado e da sua expressão) e um acto de entrega (uma abertura para com a musa da tradução). Este esforço dialéctico e graça correspondem às trajectórias de ascensão através do conhecimento (ou da ignição do Intelecto para a iluminação) e de descida através do ser (ou da vitalização do espírito em santidade), referidas anteriormente. Sem esta participação não poderá existir fidelidade na tradução. Como uma semente plantada nas areias geladas do Inverno, a Verdade reside no interior do coração gelado do homem. Por esta razão, a tradição ensina-nos que o conhecimento espiritual é o processo de intuir aquilo que foi enterrado, de descobrir o que foi velado, recolhendo o que foi disperso, ou relembrando o que foi desmembrado. Isto envolve, quer um esforço de receptividade (abrindo as pálpebras do Coração), quer a graça da luz (a luz que sustenta a Presença divina: “uma luz que brilha nela própria em silenciosa quietude” escreve Eckhart).

Existem dois erros a ser evitados na arte da tradução: um é uma abstracção do significado do texto que leve à total perca da qualidade de ressonância com o original, enquanto que o outro é o ignorar do seu significado, sacrificando-o em detrimento da novidade, em nome da expressão criativa. Metafisicamente, estes erros correspondem à redução da realidade aos pólos objectivos e subjectivos, respectivamente. Ao isolar o pólo objectivo, a realidade é abstraída ou reduzida a fantasia. A abstracção da realidade cria um monstro de falsas utopias, nas quais a ressonância da teofania sagrada é meramente “externa”, rapidamente sacrificada por ideais fantasiados e utópicos. Desta forma, na tradição, o ideal não é uma mera abstracção (ou ilusão), mas sim uma realidade ontológica do protótipo divino, o qual deve ser entendido simultaneamente como Verdade e Presença. Assim, Frithjof Schuon refere:

"Nada é mais falso do que a convencional oposição entre “idealismo” e “realismo”, a qual insinua que o “ideal” não é “real”, e o inverso; como se um ideal situado fora da realidade não tivesse o mais pequeno valor, ou como se a realidade estivesse sempre situada a um nível inferior aquilo que se designe por “ideal”. Qualquer um que defenda este ponto de vista está a pensar em termos quantitativos e não qualitativos."

O segundo erro é uma forma de hipertrofia. Ao isolar o pólo subjectivo, a realidade é desconectada do seu Princípio basilar. Assemelha-se ao idolatrar o calçado, confundindo-o com o chão que este pisa. Desligado das suas raízes espirituais, a realidade torna-se subjectiva, sacrificando o sentido moral e cognitivo pelas preferências pessoais, o que resulta, na ausência de um Centro e Origem espiritual, no materialismo. O materialista esquece que não pode existir qualquer originalidade (ou valor criativo) fora da sua ligação à Origem, nem ordem (ou significado) fora da sua ligação ao Centro.

A tradução é, em ultima análise, a arte de auto-interpretação. É identificar a fonte de toda a criatividade com a Origem e a sua localização no interior do Centro espiritual de nós próprios. Este Centro espiritual de cada um, para o qual e a partir do qual tudo o que existe está conectado, como que através de uma rede sagrada, é o Coração. Assim, pode-se afirmar que não existe fidelidade na tradução excepto quando esta brota a partir do Coração. Este é o critério para a autenticidade: evitar a falsa atribuição de originalidade a outra coisa senão a Origem, reconhecendo a sua identidade com o mais profundo do nosso ser, esse Espírito ilimitado e inextinguível que eternamente Se verte em Si mesmo numa expressão de constante e infinita misericórdia.

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