Como anunciado numa publicação anterior, vamos publicar no Sabedoria Perene um texto do escritor brasileiro Mateus Soares de Azevedo. Agradecemos profundamente não só a autorização que nos deu para a sua publicação mas também o apoio e incentivo que tão gentilmente ofereceu aos autores deste espaço. O nosso eterno obrigado.
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Schuon e as grandes figuras espirituais do séc. XX (1)
Mateus Soares de Azevedo
Aqui, vamos apresentar e debater o legado dos mais importantes e influentes guias espirituais de nossa época, à luz dos ensinamentos da Filosofia Perene. Nesta tarefa, faremos referência aos ilustres representantes de religiões mundiais e, simultaneamente, recorrendo ao ‘universalismo’ perenialista, abordaremos a equivalência fundamental de suas mensagens. Cada um dos sábios e santos aqui expostos traz o aporte da ‘cor’ específica de sua religião de origem, enquanto a sabedoria perene enfatiza sua unidade subjacente, mediante seu acesso à ‘luz incolor’ que unifica os diversos patrimônios espirituais da humanidade. Tal sabedoria não pertence especificamente nem ao Oriente nem ao Ocidente, mas simultaneamente os engloba e transcende ambos.
Entre os mestres que melhor expuseram e viveram esse conhecimento inspirado estão Frithjof Schuon (1907—1998) e Sri Ramana Mahârshi (1879—1950). O primeiro tendo seu raio de ação privilegiado, mas não exclusivo, no Ocidente e o segundo em parte relevante do Oriente, isto é, a Índia. Ambos são ‘universalistas’, o que significa que eles creram e ensinaram explicitamente, no caso de Schuon, a “unidade transcendente das religiões”; ambos expuseram a mais pura e também mais intrinsecamente ortodoxa forma de gnose, cada qual à sua própria maneira. Ambos, finalmente, atraíram admiradores de variados horizontes religiosos. Schuon foi, de fato, um sábio na dupla capacidade de metafísico – na linha de Platão, Pitágoras e Shânkara – e de guia espiritual “extra-confessional”, dotado de um profundo amor por todas as religiões autênticas, mas sem nenhum apego a seus aspectos mais formalistas e nacionalistas. Schuon foi um mestre da verdade incolor, da verdade além das formas. (2) Há certamente distinções a serem feitas no alcance, completude e universalidade das doutrinas metafísicas que Schuon e o Mahârshi expuseram e nos métodos de realização espiritual que advogaram. Mais sobre tais questões no que segue.
Ao escolher o “filósofo” (no sentido original de “amigo da sabedoria”) suíço e o místico hindu como principais objetos de nosso estudo, não esquecemos a imensa importância (especialmente nos domínios da metafísica tradicional, do simbolismo religioso e da crítica da mentalidade moderna) do esoterista francês René Guénon (1886-1951).
Guénon foi o precursor da escola perenialista ou tradicionalista, da qual Schuon constitui o ápice. Se Guénon é o originador deste fenômeno único e sem precedentes de influxo intelectual e espiritual numa época quase completamente impermeável à verdadeira intelectualidade, Schuon é sua floração máxima e conclusão. O esoterista francês foi a semente e o metafísico alemão a flor e o fruto. Guénon foi o pioneiro e Schuon a consumação; o primeiro foi como um rio e o segundo como um oceano — tão profundas e diversificadas a doutrina metafísica que expôs, o aconselhamento espiritual que concedeu e os poemas e pinturas que produziu.
Dando início, então, a esta expedição em busca das luzes espirituais de nosso tempo, focamos, no que diz respeito ao Cristianismo ocidental, dois descendentes espirituais do grande Francisco de Assis, ambos capuchinhos italianos: a irmã Consolata Betrone (1903—1946) e o Padre Pio de Pietrelcina (1887—1968).
Soror Consolata Betrone pode ser considerada, num certo sentido, uma sucessora de Santa Teresa de Lisieux; (3) ela foi uma alma piedosa e devota diretamente ensinada pelo Cristo sobre a via da oração jaculatória e da invocação perpétua do Nome Santo. Caminho visto pela Filosofia Perene como a quintessência mesma de toda espiritualidade. A mensagem de irmã Consolata é bastante significativa para os cristãos; para Schuon, trata-se de uma contribuição central, na medida em que vincula a via da infância espiritual e da confiança em Deus de santa Teresinha com a invocação.
Entre os mestres que melhor expuseram e viveram esse conhecimento inspirado estão Frithjof Schuon (1907—1998) e Sri Ramana Mahârshi (1879—1950). O primeiro tendo seu raio de ação privilegiado, mas não exclusivo, no Ocidente e o segundo em parte relevante do Oriente, isto é, a Índia. Ambos são ‘universalistas’, o que significa que eles creram e ensinaram explicitamente, no caso de Schuon, a “unidade transcendente das religiões”; ambos expuseram a mais pura e também mais intrinsecamente ortodoxa forma de gnose, cada qual à sua própria maneira. Ambos, finalmente, atraíram admiradores de variados horizontes religiosos. Schuon foi, de fato, um sábio na dupla capacidade de metafísico – na linha de Platão, Pitágoras e Shânkara – e de guia espiritual “extra-confessional”, dotado de um profundo amor por todas as religiões autênticas, mas sem nenhum apego a seus aspectos mais formalistas e nacionalistas. Schuon foi um mestre da verdade incolor, da verdade além das formas. (2) Há certamente distinções a serem feitas no alcance, completude e universalidade das doutrinas metafísicas que Schuon e o Mahârshi expuseram e nos métodos de realização espiritual que advogaram. Mais sobre tais questões no que segue.
Ao escolher o “filósofo” (no sentido original de “amigo da sabedoria”) suíço e o místico hindu como principais objetos de nosso estudo, não esquecemos a imensa importância (especialmente nos domínios da metafísica tradicional, do simbolismo religioso e da crítica da mentalidade moderna) do esoterista francês René Guénon (1886-1951).
Guénon foi o precursor da escola perenialista ou tradicionalista, da qual Schuon constitui o ápice. Se Guénon é o originador deste fenômeno único e sem precedentes de influxo intelectual e espiritual numa época quase completamente impermeável à verdadeira intelectualidade, Schuon é sua floração máxima e conclusão. O esoterista francês foi a semente e o metafísico alemão a flor e o fruto. Guénon foi o pioneiro e Schuon a consumação; o primeiro foi como um rio e o segundo como um oceano — tão profundas e diversificadas a doutrina metafísica que expôs, o aconselhamento espiritual que concedeu e os poemas e pinturas que produziu.
Dando início, então, a esta expedição em busca das luzes espirituais de nosso tempo, focamos, no que diz respeito ao Cristianismo ocidental, dois descendentes espirituais do grande Francisco de Assis, ambos capuchinhos italianos: a irmã Consolata Betrone (1903—1946) e o Padre Pio de Pietrelcina (1887—1968).
Soror Consolata Betrone pode ser considerada, num certo sentido, uma sucessora de Santa Teresa de Lisieux; (3) ela foi uma alma piedosa e devota diretamente ensinada pelo Cristo sobre a via da oração jaculatória e da invocação perpétua do Nome Santo. Caminho visto pela Filosofia Perene como a quintessência mesma de toda espiritualidade. A mensagem de irmã Consolata é bastante significativa para os cristãos; para Schuon, trata-se de uma contribuição central, na medida em que vincula a via da infância espiritual e da confiança em Deus de santa Teresinha com a invocação.
Padre Pio, o estigmatista, (4) ensinou e praticou a invocação do Nome Santo e foi o diretor espiritual de milhares de almas; foi neste sentido que Schuon escreveu, em carta a um correspondente italiano dos anos 1950, Guido di Giorgio, que Padre Pio era “une protection, sinon bien plus” (5) para o mundo cristão.
Um papa também tem lugar nesta síntese. Falamos de Pio XII (1939—1958), incluído aqui não apenas em razão de sua excelência, mas particularmente devido às covardes calúnias que sua memória tem sofrido (quando vivo e podendo respondê-las, elas não se manifestaram). Como derradeiro pontífice tradicional, sua memória tem sido atacada por oportunistas e mentirosos que se valem de falsas alegações de que teria sido indiferente ao destino dos judeus europeus durante a 2a Grande Guerra. (6). A verdade é que, diferentemente de muitos dos líderes seculares do período, que muito pouco fizeram para ajudar os judeus, Pio XII agiu claramente em sua defesa durante o conflito. (7)
Quando o anti-semitismo racista grassava solto, foi ele quem ousadamente declarou: “Somos todos semitas!” Aqui, ele tinha em mente a tradição monoteísta abraâmica que é comum a judeus, cristãos e muçulmanos. O papa se referiu também ao fato de que, se por um critério meramente racial ou étnico os europeus e seus descendentes não são semitas, eles de certa maneira se tornam espiritualmente semitas por sua adesão a uma religião de origem semita como o Cristianismo. A este respeito, é importante lembrar que, em 1942, milhares de judeus foram abrigados em mosteiros, escolas e conventos católicos sob o patrocínio do Supremo Pontífice. A própria cidade do Vaticano acolheu muitos deles e Castelgandolfo, a residência de verão dos papas, recebeu então mais de 15 mil. Em 1944, Pio XII mandou colocar o brasão papal na entrada da principal sinagoga de Roma, antes que a cidade fosse tomada pelas tropas nazistas; isso com o intuito de proteger seus objetos sacros de profanação. Em 1946, ninguém menos que o grão-rabino de Roma, Israel Zolli, abraçou o Catolicismo, com toda a sua família. Uma das razões que deu para esta espetacular mudança de religião foi precisamente a defesa que Pio XII fez de seu povo. Em suas memórias, o rabino dedica um capítulo a Pio XII, e escreve: “O Santo Padre escreveu à mão uma carta aos bispos, instruindo-os a abrir a clausura de conventos e mosteiros para, assim, se tornarem refúgios para os judeus. Eu soube de um convento em que as irmãs dormiram no porão e deram as camas para os refugiados.” Ademais, o rabino escolheu como seu nome cristão “Eugênio”, o nome de batismo de Pio XII. Curiosamente, a lenda do “papa nazista” começou a tomar forma muitos anos depois do fim da guerra – até então, a ação de Pio XII era elogiada unanimemente, inclusive por organizações judaicas. Até que, no início dos anos 1960, a coisa começou a mudar com o lançamento, em Berlim, 1963, da peça Der Stellvertreter, Ein christliches Trauerspiel (“O vigário, uma tragédia cristã”), de autoria de um ex-líder da juventude nazista, Rolf Hochhuth. Baseada em documentos históricos forjados, o papa é nela retratado como um homem frio que odiava os judeus. Uma obra recente, “O mito do papa de Hitler”, do rabino norte-americano David Dalin, desfaz a lenda. (8)
Tais informações constituem prova suficiente de que as acusações contra Pio XII não têm nenhuma base sólida e que, pelo contrário, só se mantêm por conta de uma inconfessável motivação ideológica e política. Ao mesmo tempo, ao atacar o legado do pontífice, ataca-se a Igreja tradicional, que, após sua morte, passou a ser severamente fustigada pelo concílio Vaticano II e suas sequelas.
Concluamos este tópico com mais algumas breves informações. Dois anos antes de se tornar papa, em 1937, quando era o secretário de Estado do Vaticano, o então cardeal Eugênio Pacelli colaborou com o papa Pio XI (9) na elaboração da famosa encíclica Mit brennender Sorge (“Com grande preocupação”), que condenou em termos enérgicos a ideologia racista nazista. Mas, quando alguns críticos alegam que a encíclica não foi forte o bastante, devemos lembrar-lhes que até praticamente o final do conflito nem mesmo organizações judaicas conheciam a plena extensão das atrocidades nazistas. E, no caso de Pio XII, ele foi às vezes obrigado a moderar o tom de suas intervenções ou mesmo manter um prudente silêncio para não agravar a já perigosa e cruel situação. (10)
Alguns acreditam que a origem principal desses ataques, disfarçados evidentemente, vêm dos ‘revolucionários’ que tomaram controle do Vaticano desde a época de João XXIII, Paulo VI e do concílio Vaticano II, quando se estabeleceu, por assim dizer, uma “nova “igreja e uma “nova” religião, a religião do “Homem “ e do “Mundo” (com maiúsculas por favor!), em total oposição à antiga e perene religião. (11) A despeito de atos e palavras, muitas vezes ambíguos, é indisputável que tal controle “revolucionário” tem sido mantido tanto por João Paulo II como por Bento XVI. (12)
Homem profundamente compassivo e humilde, Pio XII tinha um dom particular para ensinar e transmitir um amplo corpo de guiamento doutrinal e moral. Tinha também profunda consciência da dignidade de sua função de supremo pontífice, mas também do homem como representante de Deus na Terra. Isso pode ser constatado pelas fotografias que nos permitem testemunhar seus gestos hieráticos – poder-se-ia usar o termo hindu “mudrâ”, especialmente quando ele dava a bênção papal aos fiéis -, a meu ver insuperáveis mesmo por mestres hindus ou budistas. (13)
Avancemos agora para o mundo do Islã. Talvez sua maior figura no século XX tenha sido o cheikh magrebino Ahmed al-Alawi (1869—1934). Ele é relevante para o fenômeno da Filosofia Perene por ser um mestre da mística sapiencial, ou gnose, e também do método espiritual da “Lembrança de Deus”. O cheikh Alawi tinha profundo interesse pelas grandes religiões, especialmente o Cristianismo. Sua aura de santidade já era tamanha que em um dado momento sua confraria espiritual (tariqa) contava com cerca de duas centenas de milhares de adeptos por todo dar el Islam, o que a fazia ter, além de influência espiritual, uma irradiação também cultural e política. Que contraste com líderes pseudo-islâmicos contemporâneos como Sadam Hussein e Hafez Assad que, apesar de terem sido secularistas anti-religiosos, exploraram desavergonhadamente o islamismo para seus fins políticos ou pessoais! Schuon conheceu pessoalmente o cheikh Al-Alawi e escreveu de forma tocante sobre ele:
“A idéia que é a essência secreta de cada forma religiosa, que torna cada qual o que é pela ação de sua presença interior, é demasiado sutil e profunda para ser personificada com igual intensidade por todos aqueles que respiram sua atmosfera. É, portanto, uma grande felicidade entrar em contato com um autêntico representante espiritual de uma dessas formas, alguém que representa em si mesmo, e não meramente porque ele pertence a tal civilização, a idéia que, por séculos, tem sido seu sangue vital.
“Encontrar-se com alguém assim é como ficar face a face, em pleno mundo moderno, com um santo medieval ou um patriarca semita, e esta foi a impressão que me causou o cheikh Al-Hajj Ahmad al-Alawi, um dos grandes mestres do Sufismo.... Em seu jelabá marrom e turbante branco, com sua barba prateada e mãos longas que pareciam, quando ele as movia, prostrar-se sob o fluxo da sua baraca (irradiação espiritual), ele exalava algo do ambiente puro e arcaico do Profeta Abraão... seus olhos, como duas lâmpadas sepulcrais, pareciam penetrar todos os objetos, vendo em sua casca externa apenas o mesmo nada, além do qual viam sempre a mesma realidade – o Infinito. Seu olhar era bem direto, quase duro em sua enigmática firmeza, mas ainda assim pleno de caridade... A cadência do canto, das danças e das invocações rituais parecia continuar vibrando nele perpetuamente; sua cabeça às vezes balançava de forma ritmada enquanto sua alma submergia nos mistérios insondáveis do Nome Divino, oculto no dhikr, a Recordação... Ele era envolvido ao mesmo tempo por toda a veneração devida aos santos, aos líderes, aos idosos e aos que estão próximos da morte.” (14)
Avançando ainda mais no Oriente, encontramos na Índia um grande precursor de Ramana Mahârshi – e também dos perenialistas – na figura de Sri Ramakrishna (1836-1886), conhecido como o Paramahansa (“cisne supremo”), designação mais elevada para um místico na tradição hindu. Ramakrishna foi um pioneiro da universalidade da revelação, conceito que seria posteriormente exposto e explicado pela Filosofia Perene. Apenas para mencionar um único exemplo de seu caráter único: em diferentes períodos de vida, ele praticou espontaneamente, e sinceramente, duas religiões não-hindus, o Cristianismo e o Islã. Às quais reconheceu plenamente validade e autenticidade espirituais, manifestando, desta maneira, e por participação pessoal direta, o conceito metafísico da “unidade transcendente das religiões” – tema desenvolvido por Schuon no livro de mesmo título.
Como William Stoddart escreve no seu estimulante “O Budismo ao seu alcance” (Record, 2004), Ramakrishna foi a primeira autoridade espiritual dos tempos modernos a ensinar explicitamente tal idéia. Além disso, também foi um praticante do método espiritual da invocação do Nome Divino, uma técnica tradicionalmente considerada – e igualmente enfatizada pela Filosofia Perene – como a melhor apropriada para o final da Kali-Yuga (a “Idade Sombria” dos hindus), que parece ser a nossa. Ramakrishna costumava citar um ditado que Schuon mais tarde explicaria de muitas formas, isto é, que “Deus e Seu Nome são um”.
Não podemos deixar a Índia sem mencionar duas figuras de imenso valor. O grande bhakta (‘devoto’, ‘amigo de Deus’) Swami Râmdas (1884-1963) e o 68º. Jagadguru (“mestre universal”, em sânscrito) de Kanchipuram (1894-1994). Como o ‘peregrino russo’ no século XIX, swami Râmdas percorreu todo o subcontinente indiano como monge errante, sempre invocando o Nome Santo, no qual tinha uma confiança inabalável como meio privilegiado para alcançar Deus. Em sua única visita ao Ocidente, Râmdas se encontrou com Schuon, em Londres, encontro que lhe causou profunda impressão. Ele escreveu: “A imponente figura de Schuon se destacava de todos nós – ele me pareceu como um príncipe entre os santos.” (15)
Quanto ao Jagadguru de Kanchipuran, foi um descendente tradicional e autêntico de Sri Shankaracharia (século IX DC), o maior expositor da via sapiencial (gnose) na Índia. Mestre do jnâna por 90 anos (ele assumiu sua função ainda em 1907, o mesmo ano em que Schuon nasceu), o Jagadguru recebeu de Schuon a dedicatória de seu livro Language of the Self (“A linguagem do Si”) – prova da alta estima em que era tido. Além de ter sido um representante oficial do Advaita Vedanta, o Jagadguru foi um universalista versado no Cristianismo, no Islã e mesmo na religião dos índios americanos, tendo sido de fato um admirador do visionário sioux Alce Negro (Black Elk).
E já que mencionamos o pajé pele-vermelha, passemos agora para o mundo primordial da tradição xamanista dos índios, na figura extraordinária deste homem santo, chefe e xamã dos Sioux, Hekaka Sapa (“Alce negro” na língua índia) (1862-1950). Homem de contemplação intensa, ele recebeu diversas visões do mundo espiritual e explicou para as novas gerações de índios o sentido de sua religião e a utilidade de seus antigos ritos. Em uma série de ensaios penetrantes, especialmente em ‘The Feathered Sun – Plains Indians in art and philosophy’ (“O Sol com plumas: os índios das planícies na arte e na filosofia”), Schuon mostrou seu entendimento e amor pelo patrimônio espiritual dos índios e demonstrou sua universalidade e convergência com as demais religiões, provando, portanto, sua verdade intrínseca e sua ortodoxia. Vale a pena informar ao leitor interessado que Alce Negro terminou seus dias reverenciado não apenas como uma espécie de figura profética pelos índios americanos, mas também como um homem santo pelos missionários cristãos que lhe ensinaram o amor de Jesus Cristo, um amor que ele de certa maneira incorporou em sua religião nativa da Dança do Sol e do Cachimbo Sagrado.
Em nossa peregrinação intelectual e espiritual, cabe mencionar agora dois antecipadores da Filosofia Perene, ainda da época medieval. Muhiddin ibn Arabi no Islã (+ 1240) e o cardeal Nicolau de Cusa (1401—1464), no cristianismo ocidental. Ibn Arabî é particularmente conhecido pela declaração ‘universalista’ contida em um de seus poemas:
“Meu coração se abriu para todas as formas: é pasto para as gazelas, claustro para os monges cristãos, templo para os ídolos, a Caaba dos peregrinos, as tábuas da Tora e o livro do Corão. Eu pratico a religião do Amor: seja qual for a direção da caravana, a religião do Amor será meu caminho e minha fé.”
Certamente, uma confissão inspirada de universalismo e amor de Deus por parte do maior dos “gnósticos” muçulmanos! De sua parte, o cardeal Nicolau de Cusa escreveu um comentário sobre o Corão (Cribatio Alcorani) e um diálogo entre seguidores de diferentes fés, intitulado, De Pace Fidei, no qual advoga um entendimento entre as grandes religiões.
Nosso foco retorna agora para Schuon e o Mahârshi, cada qual a própria epítome da espiritualidade no mundo moderno. A este respeito, devemos considerar Guénon e Schuon como compartilhando um único e mesmo espírito –, com diferentes funções e estilos, contudo --, o da metafísica tradicional, da ortodoxia intrínseca e universal, e da crítica radical e devastadora da mentalidade, cultura, arte e ciência modernas. Mentalidade que eles castigam como materialista, relativista, inconsequente e prejudicial ao homem e ao ambiente. Como mencionado anteriormente, Guénon e Schuon são os dois chefs d’école da escola perenialista ou tradicionalista, e a diferença entre eles se refere ao fato de que o esoterista francês foi como a corporificação da mensagem intelectual ou metafísica, ao passo que Schuon foi um mestre tanto da intelectualidade como da espiritualidade. Guénon, por exemplo, não quis ter discípulos. Schuon escreveu: “A obra de Guénon é ‘teórica’, dado que não visa diretamente a ‘realização espiritual, e mesmo se abstém de assumir o papel de um ensinamento prático... O papel de René Guénon foi expor princípios, mais do que mostrar como aplicá-los...” Ele prossegue: “Guénon foi como a personificação, não da espiritualidade em si, mas da certeza metafísica....” (16)
Quanto ao Mahârshi, digamos de saída que, a rigor, não foi um mestre espiritual strictu senso, e isso pela razão de que foi um fard (um ‘solitário’), termo que tomo emprestado do sufismo. Isso significa que foi um daqueles santos que não tiveram um mestre que lhe ensinasse a Via espiritual, mas que obteve sua condição excepcional devido puramente à graça divina, por iluminação direta. (17) Não tendo sido discípulo de um mestre, ele não foi mestre de discípulos. A rigor, portanto, ele não ensinou um método espiritual propriamente dito.
Sua preocupação permanente e constantemente reiterada era a auto-investigação, “Quem sou eu?”. Na resposta, o Mahârshi apontava para o Si, o Ser divino como nosso autêntico centro. (18) Em seu caso, o divino estava, por assim dizer, em sua poderosa presença espiritual. A “via” do Mahârshi, se podemos considerá-la assim, consistia em sua presença: mediante seu darshan, ele abençoava todos aqueles que buscavam sua baraca (outro termo sufi). Ele foi um contemplativo nato e um gnóstico nato, o mais extraordinário fenômeno espiritual que a Índia engendrou no Século XX.
O sábio, que viveu na montanha sagrada de Arunâchala, próxima de Tiruvannamalai, no sul da Índia, costumava dar sua bênção através de seu silêncio contemplativo, não apenas aos seguidores do Sanâtana Dharma (Hinduísmo), que o procuravam vindos de todas as regiões da Índia, mas também a europeus e americanos, católicos, protestantes, judeus, budistas e muçulmanos, e mesmo a indivíduos sem uma filiação religiosa. Este último aspecto implicava uma problemática, pois, desde que ele não requeria explicitamente de seus visitantes uma filiação tradicional (cujo propósito é garantir uma estrutura ou moldura para a jornada espiritual), seus seguidores não-hindus permaneciam sem suporte doutrinal ou ritual e, portanto, não se preparavam para alcançar algo de sólido e permanente em termos de vida espiritual.
Muito provavelmente, Schuon tinha este ponto em mente quando incluiu o seguinte poema em sua coleção:
Ein Weiser sagte: fragt euch — wer bin Ich?
Dies ist kein Weg. Der Weise meinte sich,
Beschrieb sein Geisteswesen, gottgeschenkt;
Es ist nicht euer, weil ihr Gleiches denkt.
Man kann nicht ohne Gott die Welt verbrennen —
“An seiner Frucht wird man den Geist erkennen.”
Um sábio disse: questionem a si mesmos – quem sou eu?
Mas isso não é uma via espiritual. O sábio referia-se a ele mesmo,
Ele descreveu seu estado espiritual, dado por Deus;
Tal estado não é o teu, apenas porque pensas o mesmo.
Não é possível vencer o mundo sem Deus –
“Conhecereis o Espírito por seus frutos.”
Schuon tem mais a dizer sobre o santo indiano, e concluímos a seção sobre o grande Ramana Mahârshi com suas palavras:
“Com o Mahârshi, encontramos a Índia antiga e eterna (...) A função espiritual que pode ser descrita como ‘ação de presença’ encontrou no Mahârshi a sua expressão mais rigorosa. Sri Ramana foi por assim dizer a encarnação, nestes últimos dias e em face da febre ativista, de tudo o que é primordial e incorruptível na Índia. Ele manifestou a nobreza da ‘não-ação’ contemplativa em face de uma ética da agitação utilitária (...) A grande questão ‘Quem sou eu?’ surge, com ele, como expressão concreta de uma realidade que é viva, e tal autenticidade dá a cada palavra do sábio uma fragrância de inimitável frescura – a fragrância da verdade quando ela é corporificada da maneira mais direta. Todo o Vedanta está contido na questão do Mahârshi: ‘Quem sou eu?’ A resposta é: o Inexprimível.” (19)
Quanto ao próprio Frithjof Schuon, seu método espiritual estava longe de ignorar a questão da filiação tradicional, pois, para ele, a conditio sine qua non para receber guiamento espiritual era o comprometimento na prática, com sinceridade e discernimento, de uma religião ortodoxa. Em seu círculo de admiradores e seguidores havia muçulmanos, cristãos (tanto católicos como ortodoxos e protestantes clássicos), judeus, budistas, hindus e adeptos indígenas da religião da Dança do Sol e do Cachimbo Sagrado.
Aqueles a quem o destino concedeu a oportunidade de encontrar-se com este homem extraordinário, (20) invariavelmente se sentiam como que caminhando nas nuvens, ainda que não infrequentemente tais encontros engendrassem semanas ou mesmo meses de reflexão e meditação, para se digerir tudo que havia sido transmitido. Discernimento implacável, nobreza infinita, cortesia sincera, bom senso infalível: essas são algumas das expressões recorrentes que foram usadas por aqueles que conheceram Schuon pessoalmente. Toda questão lhe colocada, seja de filosofia, religião, mística, estética, ou mesmo de temas contemporâneos ou assuntos pessoais, mesmo as mais simples e prosaicas, era recebida com interesse e respondida com brilho. Certamente que ele não apreciava o pedantismo nem a presunção, tampouco questões estúpidas, mas a extraordinária discriminação e perspicácia de Schuon era como uma espada mágica – como a de Galaaz, o cavalheiro invencível da Távola Redonda – que, da maneira mais eficiente e indolor, cortava o nó górdio de nossas ilusões. Uma profunda gratidão era o sentimento predominante de todos aqueles a quem o amor e a inteligência de Schuon marcou, e é com este sentimento que agora encerro esta breve e incompleta avaliação do legado deste sábio.
Com sua morte, perdemos o penetrante e inspirado discernimento de um sábio e artista cuja lucidez confrontou nossa época – obcecada por novidades banais e passageiras - com as verdades profundas e permanentes da Filosofia Perene. Através de seus escritos, ele ensinou gerações a pensar com objetividade, a ver as causas das coisas em seus efeitos remotos e a antecipar os efeitos remotos nas causas presentes. Schuon se foi deste mundo em 5 de maio de 1998, mas sua mensagem permanece. Aliás, ela parece se tornar mais e mais relevante com a passagem do tempo, como a confirmar sua unidade com a sabedoria perene que ele tão resolutamente personificou. Seu legado continua à disposição de todos aqueles, do Ocidente ou do Oriente - para além de todo artificial ‘conflito de civilizações’ - que buscam o sentido profundo das coisas, que sondam o porquê do mundo e do homem e se fundam na certeza e na serenidade para superar o ambiente de dúvida fundamental e relativismo que envenena o pensamento e a vida dos agitados, ansiosos e angustiados homens e mulheres de nossa época.
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1. Publicado em inglês no livro ‘Ye Shall know the Truth: Christianity and the Perennial Philosophy’ (Word Wisdom, EUA, 2005); em francês, no ‘Dossier H: Frithjof Schuon’ (L’Age D’Homme, Paris, 2002); e, em espanhol, no volume ‘Frithjof Schuon: Notas biograficas, Biografias, Estudios, Homenajes’ (Olañeta Editores, Palma de Mallorca, 2004). Ainda inédito em português.
2. No mundo do Cristianismo, Schuon poderia ser classificado na linhagem dos “gnósticos” (o termo não é usado aqui num sentido sectário ou heterodoxo), como São João evangelista, S. Clemente de Alexandria, Angelus Silesius e Mestre Eckhart. No Islã, ele entraria no grupo de Ibn Arabi, Rumi e do cheikh al-Alawi.
3. Santa Teresa de Lisieux era admirada por Schuon em razão de sua completa confiança em Deus, sua profunda humildade, seu ‘bom senso’ espiritual e seu costume de oferecer tudo, incluindo alegrias e dores, a Deus.
4. Padre Pio é o único padre estigmatizado na história da Igreja católica (São Francisco também tinha os estigmas de Cristo, mas ele não era sacerdote). Pode ser de interesse observar que o Padre Pio era da mesma geração de Guénon e guardava semelhança facial com Schuon.
5. “Uma proteção, se não bem mais”.
6. Pode-se especular que a razão pela qual sua memória tem sido vilipendiada é precisamente porque ele foi o último representante da Igreja Católica não-modernista, constituindo, portanto, um alvo privilegiado para os inimigos da verdade e dos meios de salvação revelados.
7. Como foi o caso dos líderes populistas Getúlio Vargas, no Brasil, e Juan Domingo Perón, na Argentina, e mesmo em certa medida de Franklin D. Roosevelt nos Estados Unidos; até 1942, o presidente norte-americano não concordou com os pedidos de Pio XII para receber mais refugiados judeus da Europa.
8. The Myth of Hitler's Pope: Pope Pius XII and His Secret War Against Nazi Germany (2005).
9. Achille Ratti, papa Pio XI (pontífice entre 1922 e 1939), merece um lugar nesta síntese. Além de seu trabalho de esclarecimento das doutrinas sociais cristãs e suas vigorosas condenações do fascismo (1931), do comunismo (1937) e do Nazismo ( 1937), ele mostrou ser um homem de visão ao dizer as ousadas e universalistas palavras ao seu núncio para a Líbia: “Não penseis que seguis para um país de pagãos; os muçulmanos alcançam a salvação; os caminhos de Deus são infinitos .”
10. Alguns leitores podem se interessar em saber que Pio XII concedeu uma audiência privada a Titus Burckhardt em Castelgandolfo, quando conversaram sobre a arte sacra da Idade Média. O papa apreciou a presença de um representante eminente da escola de Guénon e Schuon, assim como Burckhardt apreciou o papa; ao final da audiência, o pontífice concedeu sua bênção ao visitante: “Eu te abençôo, seus colegas, sua família e seus amigos.” Certamente, uma iluminada conexão entre o Catolicismo de sempre e a philosophia perennis.
11. Nas palavras do cardeal Suennens, o Vaticano II foi a “Revolução Francesa na Igreja”; de acordo com o teólogo francês, e depois cardeal, Yves Congar, foi como “a Revolução de outubro de 1917”.
12. A despeito de seu sempre lembrado “carisma”, e de quase três décadas como papa, o pontificado de Karol Woitila foi um desastre em termos de frear ou limitar as conseqüências da trágica crise que se abate sobre a igreja desde os anos 1960. De fato, milhares de padres abandonaram o sacerdócio. As vocações escasseiam tanto entre o clero secular como entre as ordens religiosas. Apenas nos EUA, dos 49 mil seminaristas de 1965 restaram hoje 4.700. Por todo o mundo, seminários, escolas e conventos foram fechados. A freqüência à missa caiu para menos de 20%, quando era de 75% em 1960. No Brasil, "o maior país católico do mundo", a Igreja perde cerca de um milhão de fiéis ao ano. Pesquisa do Datafolha de maio de 2007 informa que de 1997, data da terceira viagem de JP II ao Brasil, até 2007, a porcentagem de católicos na população caiu de 74% para 64%. Ou seja, apenas nestes últimos dez anos a Igreja perdeu cerca de 15 milhões de almas! E segundo o último censo do IBGE, de 2000, no período entre 1970 e 2000, o número de ateus e agnósticos mais que decuplicou, de 0,5% para 7,4%. Na Europa Ocidental, metade dos recém-nascidos não é mais batizada na Igreja. Vale assinalar, em contraste, que as igrejas orientais, que não seguiram o aggiornamento, vivem um bom momento. E até recebem muitos católicos em suas fileiras, chamados de “refugiados do Vaticano II”! "Pelos frutos se conhece a árvore", ensina o Evangelho.
13. O gesto de juntar as mãos em oração é um típico “mudra” cristão.
14. ‘Râhimahu ’Llâh’, de Frithjof Schuon. Em Cahiers du Sud (Paris), août-septembre, 1935. Citado em Martin Lings: ‘A Sufi Saint of the 20 th century’ (University of California Press, 1973, pp. 116-117).
15. Ver World is God, de Swami Ramdas. Anandashram, P. O. Anadashram, Via Kanhangad, South India, p. 107.
16. Ambas as citações foram tiradas de “René Guénon: L’Oeuvre”, publicada em Études Traditionnelles, Paris, juillet—novembre 1951. A tradução para o inglês é: “René Guénon: Definitions” (Sophia, vol. 1, no. 2, Winter 1995).
17. À parte este último aspecto, Guénon também pode ser considerado um “fard”. Este aspecto fundamental da mensagem do Mahârshi converge perfeitamente com o ensinamento de Schuon, sendo em fato sua finalidade.
18. Este aspecto fundamental da mensagem do Mahârshi converge perfeitamente com o ensinamento de Schuon, sendo em fato sua finalidade.
19. Perspectives Spirituelles et Faits Humains. Paris, Maisonneuve & Larose, 1989. Pp. 164-65.
20. E tal qualidade pode ser percebida através deste espelho dele mesmo que é representado pelas palavras que disse de sábios de diferentes tradições, palavras que em parte foram reproduzidas aqui.
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