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Ananda Coomaraswamy sugeriu que a grande admiração pelo Budismo no Ocidente se devia sobretudo ao que não representa; e referiu sobre o Hinduísmo que, apesar de ter sido examinado pela academia Europeia durante mais de um século, um entendimento fiel do mesmo poderia assumir uma forma que refutaria categoricamente a maioria das afirmações produzidas sobre o assunto, tanto por académicos Europeus como por Indianos treinados segundo as formas modernas de pensamento.
De igual modo, poder-se-ia dizer que a admiração pelo próprio Coomaraswamy, tanto no Ceilão como na Índia, deve-se em grande parte ao que ele não foi, e que uma verdadeira compreensão das suas ideias poderia configurar a negação de grande parte das afirmações proferidas sobre ele na terra onde nasceu.
Coomaraswamy vem sendo apresentado desde há muito, na Índia e no Ceilão, como patriota, famoso indologista e historiador de arte, distinto académico e orientalista; seria também de examinar a validade destas convicções generalizadas sobre um homem que foi sem dúvida uma das maiores figuras dos nossos tempos.
Os conteúdos das obras maturas de Coomaraswamy podem ser catalogados com um título, nomeadamente o de Tradição. A Tradição sobre a qual escreveu em quase nada se relaciona com a utilização corrente deste termo para designar costumes ou padrões sociais que prevalecem durante um determinado período de tempo. O tema central dos seus escritos é a Tradição Primordial e Universal imutável que, como Coomaraswamy demonstra, foi a fonte de onde todas as verdadeiras religiões do presente e também do passado surgiram, bem como a fonte das formas de todas as sociedades moldadas pela religião.
O aspecto particular da Tradição que Coomaraswamy escolheu como a sua especialidade particular – a que mais se adequava aos seus talentos – foi, claramente, a perspectiva tradicional da arte, agora principalmente associada ao Oriente mas em tempos universalmente aceite tanto no Oriente como no Ocidente e bem assim pelas civilizações da antiguidade e, seguramente, por aquelas sociedades que aprazivelmente são chamadas de primitivas. Coomaraswamy nunca se cansou de demonstrar que a perspectiva tradicional da vida e da arte sempre foi a perspectiva universal e normal até que os Gregos do denominado período clássico introduzissem pela primeira vez uma perspectiva da vida e da arte em divergência fundamental com a perspectiva até então aceite.
A aversão de Coomaraswamy para com o designado ‘milagre Grego’ é unissonante com a atitude de desaprovação veemente, no mínimo, de Platão para com as mudanças que se verificavam no seu tempo. Coomaraswamy demonstra, como Platão o fez, que a perspectiva da vida e da arte inventada e glorificada pelo Gregos, e subsequentemente adoptada pelos Romanos foi, no contexto da longa história da humanidade, uma perspectiva anormal, uma aberração; e que apesar da perda de suporte desta perspectiva nas mentes dos homens com o surgimento da Cristandade na Idade Média, o seu restabelecimento com ainda maior vigor durante o Renascimento torná-la-ia responsável pelos males fundamentais do mundo moderno.
Em todas as sociedades tradicionais, muito para além da faculdade de raciocinar, o homem sempre foi considerado como capaz de ir mais além e atingir o conhecimento directo e intuitivo da verdade absoluta que, tal como o escritor tradicionalista Gal Baton diz, “transporta consigo uma certeza imediata providenciada por nenhum outro tipo de conhecimento.”
“No mundo moderno”, aquele escritor prossegue, “pensa-se em termos de ‘progresso intelectual’, pelo qual se entende um progresso nas ideias que o homem formula relativamente à natureza das coisas; mas, do ponto de vista do conhecimento tradicional, não pode existir progresso, excepto porquanto determinados indivíduos progridem da ignorância para o conhecimento reflectido ou racional, e da razão para o conhecimento directo e intuitivo que, pode-se ainda acrescentar, pela sua natureza não pode ser definido, mas que, ainda assim se situa sobre e acima de todas as outras formas de conhecimento e é nada menos do que o conhecimento ele mesmo.”
De um ponto de vista tradicional, a falha dos Gregos reside em terem substituído a faculdade racional pela supra-racional como a mais elevada faculdade do homem, e nas palavras do distinto colega de Coomaraswamy, René Guénon, “quase parece que os Gregos, num momento em que estavam prestes a desaparecer da história, desejaram vingar-se da sua própria incompreensão impondo a uma fracção da humanidade as limitações do seu próprio horizonte mental”. “Desde o Renascimento”, conforme refere Baton, “o mundo moderno foi, claramente, ainda para além dos Gregos ao negar até mesmo a possibilidade de um conhecimento real que transcende os limites restringidos da mentalidade individual”. Mormente, conforme todos percebemos, aquilo que aparenta ser uma séria limitação de horizontes tomando uma perspectiva tradicionalista, é percepcionado como um avanço intelectual sem precedentes segundo a perspectiva moderna!
Porquanto é quase impossível num breve sumário, como este, discutir com maior profundidade os assuntos em causa, poderá ser útil ponderar sobre a alegoria de Platão acerca da caverna subterrânea onde alguns homens foram confinados desde a infância. Estes homens apenas estão familiarizados com as sombras projectadas pelo fogo sobre as paredes escuras da caverna, para as quais dispõe de todo o tempo de estudo, e sobre as quais são bastante conhecedores. Eles nada sabem do mundo exterior e como tal não acreditam na sua existência.
Coomaraswamy, tal como Platão, queria que se compreendesse que também nós estamos na escuridão como estes homens, e que faríamos bem em buscar a luz de outro mundo acima ocupando-nos com aquelas coisas que os nossos antepassados conheciam e compreendiam tão bem. Ele refere constantemente que as sociedades modernas ou anti-tradicionais são moldadas pelas ideias desenvolvidas pelos homens com recurso aos seus próprios poderes de racionalidade, pelo que acabam por existir tantos conjuntos de ideias como existem homens; ele também tenta demonstrar que as sociedades tradicionais, por outro lado, eram baseadas em ideias perenes de uma ordem bem diferente – ideias de origem divina e revelada – segundo a qual se determinavam todos os aspectos da sociedade.
Um tema recorrente nas obras de Coomaraswamy consiste na perspectiva tradicional da arte. Nas referências à arte Europeia, Coomaraswamy salienta repetidamente que a arte Greco-Romana e a arte do Renascimento, tal como todas as escolas de arte Europeia mais modernas, eram de inspiração terrena e por conseguinte de origem humana tal como as filosofias que as acompanhavam, enquanto a arte tradicional, à semelhança da filosofia tradicional, se relacionava com a ordem metafísica e portanto era de carácter religioso e de origem divina.
Reconhece-se agora que nas primeiras obras, designadamente a monumental “Medieval Sinhalese Art”, Coomaraswamy ainda não compreendera na totalidade a diferença entre estes dois pontos de vistas contrastantes, os quais viriam a formar a base dos seus trabalhos subsequentes e mais significativos; nos seus primeiros escritos, a compreensão profunda das artes tradicionais das Índias, assim como o já considerável alcance do verdadeiro sentido da religião, estavam ligeiramente enublados com preconceitos modernistas resultantes, sem dúvida, do tipo de formação académica prévia que obteve em Inglaterra e que, logo naquela altura, começaria a enjeitar. Contudo, posteriormente, e na sequência de se ter relacionado com o metafísico francês René Guénon, os escritos de Coomaraswamy assumiriam uma correcção de exposição plena e o grande reconhecimento que se associa à sua obra mais matura.
Na medida em que se consegue perceber que a abordagem universalista ao estudo das religiões do mundo, a par com a compreensão do verdadeiro significado da Tradição, tem uma importância especial para o mundo moderno actual, deve-se também perceber que estes dois homens, o Francês René Guénon e Ananda Coomaraswamy do Ceilão, se destacam como os maiores pensadores da primeira metade do século. Um grande abismo separa o pensamento destes homens daquele de quase todos os seus contemporâneos. A segunda metade deste século assistiu ao aparecimento de toda uma escola fundada no trabalho precursor destes homens e na ‘Filosofia Perene’, um movimento que encontrou aceitação em muitas partes de um mundo confuso e desorientado.
É então evidente que, para considerar Coomaraswamy como ilustre orientalista e historiador de arte, tem antes que se compreender perfeitamente que ele se destaca da quase totalidade de outros académicos que podem ser referidos de forma similar, porque enquanto estes abordam a vida e a arte das sociedades tradicionais segundo uma perspectiva moderna (que é simultaneamente “céptica e evolucionária”, para usar as suas próprias palavras), Coomaraswamy, bem como os seus poucos colegas e colaboradores verdadeiros, assume a perspective que assume a perspectiva de que a Tradição apenas pode ser compreendida através de uma consideração cautelosa da sua perspectiva própria por quão inconveniente isso possa ser. Compreendendo isto, seria certamente verdadeiro não só afirmar que Coomaraswamy foi um académico distinto mas, como Marco Pallis o disse, que foi um príncipe entre académicos.
Coomaraswamy visionou que uma sociedade feudal ou hierárquica baseada em princípios metafísicos é essencialmente superior aos sistemas supostamente igualitários tidos actualmente em tão grande estima. Tal como Platão, defendeu que a democracia era uma das piores formas de governo, nem visionou qualquer outro sistema materialístico mais favorável. O seu entusiasmo por instituições como casta e monarquia baseavam-se, não em sentimento, mas numa profunda compreensão da relação vital entre autoridade espiritual e poder temporal da sociedade e governo. Coomaraswamy dificilmente aprovaria o caminho que a Índia e o Ceilão tomaram desde que atingiram a assim chamada independência, ainda que o considerasse inevitável.
É bem conhecido que, à partida, Coomaraswamy deplorava a influência do Ocidente sobre os povos Orientais, e especialmente as consequências da governação Britânica nas Índias. Por conseguinte, foi colocado ao lado daqueles que, na Índia e no Ceilão, foram considerados como líderes nacionais na luta pela independência. Mas também neste plano, uma disparidade total de abordagem separa Coomaraswamy dos seus contemporâneos, porque não era o imperialismo ou o domínio de um povo sobre outro que constituía a sua preocupação, mas antes a destruição das sociedades tradicionais por povos que haviam abandonado as formas sagradas. Era o que os Britânicos representavam que detestava e não os Britânicos; pelo contrário, não existem dúvidas de que amou Inglaterra, porque havia conhecido uma outra Inglaterra antiga que, em forma como em espírito, tanto se havia parecido com o mundo oriental que tão bem compreendia.
Seria apropriado, em jeito de conclusão, citar as palavras do imensamente respeitado artista-filósofo Inglês, Eric Gill, que prestou este grande tributo a Coomaraswamy na sua autobiografia:
“Existiu um indivíduo, a cuja influência estou profundamente agradecido; Refiro-me ao filósofo e teólogo, Ananda Coomaraswamy. Outros escreveram a verdade sobre a vida e religião e o trabalho do homem. Outros escreveram em Inglês são e claro. Outros tiveram a bênção de expor argutamente. Outros compreenderam a metafísica da Cristandade e outros compreenderam a metafísica do Hinduísmo e do Budismo. Outros compreenderam o verdadeiro significado de desenhos e esculturas eróticas. Outros visionaram a relação da verdade com o bem e o belo. Outros tiveram ensinamentos aparentemente ilimitados. Outros amaram; outros foram amáveis e generosos. Mas não conheço outrem em quem todas estas bênçãos e todos estes poderes tenham sido combinados. Não me atrevo a confessar como seu discípulo; isso apenas o embaraçaria. Posso apenas afirmar que acredito que nenhum outro escritor vivo escreveu a verdade em matéria de arte e vida e religião e piedade com tanta sabedoria e compreensão.”
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