sexta-feira, 22 de agosto de 2008

O que é a Tradição? - parte I

A presente publicação é uma tradução da parte inicial do segundo capítulo “What is Tradition?” da obra absolutamente fundamental de Seyyeid Hossein Nasr, “Knowledge and the Sacred.

(parte II); (parte III)


***

Pela devoção ao Tao do passado
Mestrar-se-á a existência do presente
Tao Te-Ching

Eu não crio; Apenas falo do passado
Confucius



O termo tradição foi profusamente usado no capítulo anterior. É agora necessário defini-lo com tanta exactidão quanto possível de modo a evitar incompreensão sobre um conceito que reside no cerne da nossa preocupação para com o significado do sagrado na sua relação com o conhecimento. A utilização do termo tradição no sentido que lhe é conferido no presente estudo surgiu para a civilização Ocidental no momento da fase final da desacralização do conhecimento e do mundo que rodeava o homem moderno. A redescoberta da tradição constituiu uma espécie de compensação cósmica, uma bênção do Empíreo Divino e da sua misericórdia que tornou possível, num momento em que tudo parecia perdido, a reafirmação da Verdade que constitui o próprio coração e essência da tradição. A formulação do ponto de vista tradicional foi uma resposta do Sagrado, que é simultaneamente o alfa e o ómega da existência humana, à elegíaca sentença do homem moderno perdido num mundo deposto do sagrado e, por conseguinte, deposto de significado.

For though all seem lost, yet All is found
In the Last who is the First. Faithful pageant,
Not amiss is thy mine, for manifest in thee
Omega is an archway where Alpha stands framed,
The First who comes Last, for likewise art thou
The season of seeds, O season of fruits
[i]

The First who comes Last”, a reafirmação da tradição nesta tarda hora da história da humanidade, tradição que é ela própria de carácter primordial e que possui continuidade ao longo dos tempos, tornou possível uma vez mais o acesso àquela Verdade segundo a qual os seres humanos viveram durante a grande parte – ou antes a quase totalidade – da sua história terrestre. Foi necessário que esta Verdade fosse novamente declarada e reformulada em nome da tradição, devido precisamente ao quase total eclipse e à perda daquela realidade que constituiu a matriz da vida da humanidade normal ao longo dos tempos. A utilização do termo e o recurso ao conceito da tradição tal como se efectiva no mundo contemporâneo são, de certa forma, uma anomalia tornada necessária pela anomalia em que consiste o mundo moderno.[ii]


Várias línguas anteriores aos tempos modernos não utilizavam um termo que correspondesse exactamente ao da tradição já que a humanidade pré-moderna se caracterizava ela própria por aqueles que aceitavam o ponto de vista tradicional. O homem pré-moderno estava demasiado imbuído no mundo criado pela tradição para que tivesse a necessidade de ver este conceito definido de modo exclusivo. Este homem era como os peixinhos que, de acordo com a parábola Sufi, se aproximaram de sua mãe um dia pedindo que lhes fosse explicada a natureza da água de que tanto haviam ouvido falar, mas que jamais haviam visto ou lhes tinha sido definida e descrita. A mãe respondeu que se alegraria em revelar-lhes a natureza da água desde que primeiramente encontrassem algo que não fosse água. De igual modo, as humanidades normais viviam em mundos tão impregnados com aquilo a que agora chamamos de tradição que não reconheciam sentido em chamar tradição a um conceito isolado, tal como foi necessário definir e formular no mundo moderno. Os homens pré-modernos tinham uma percepção da revelação, da sabedoria, do sagrado e também conheciam os períodos de decadência das suas civilizações e da sua cultura, mas nunca tinham tido a experiência de um mundo totalmente secularizado e anti-tradicional que viesse a necessitar de uma definição e formulação da tradição, tal como foi o caso dos dias de hoje. Num certo sentido, a formulação do ponto de vista tradicional e a reafirmação da perspectiva tradicional total, a qual se equipara à recapitulação de todas as verdades manifestadas no actual ciclo da história da humanidade, não poderia senão surgir no crepúsculo da Idade Negra que marca de uma vez o fim e a véspera que precede um novo amanhecer de esplendor. Apenas o fim de um ciclo de manifestação torna possível a recapitulação da totalidade do ciclo e a criação de uma síntese que possa então servir como a semente para um novo ciclo.[iii]


O conceito da tradição teve que ser evidenciado e os ensinamentos tradicionais expressos na sua totalidade; e é exactamente isto que tem acontecido durante esta última etapa da história da humanidade. Mas os escritos tradicionalistas estão longe de ser amplamente conhecidos no mundo moderno. Na realidade, tivessem-se tornado bem conhecidos os escritos daqueles que partilham o ponto de vista tradicional e quase não seria necessário redefinir, aqui e agora, o significado da tradição à qual tantas páginas, artigos e até mesmo livros se têm devotado.[iv] Um dos aspectos mais significativos da vida intelectual deste século, contudo, é precisamente o omissão deste ponto de vista em círculos cuja função oficial é a de cuidarem aspectos de ordem intelectual. Se esta omissão é deliberada ou acidental não é a nossa preocupação aqui. Seja qual for a causa, o resultado é que sessenta ou setenta anos depois do aparecimento no Ocidente de trabalhos com carácter tradicional, a tradição ainda é incompreendida em muitos círculos e é confundida com costume, hábito, padrões de pensamento herdados, entre outros. Daí a necessidade de aprofundar uma vez mais o seu significado, apesar de tudo o que já foi escrito sobre o assunto.


No que concerne a linguagens tradicionais, estas não possuem, pelas razões já mencionadas, um termo que corresponda exactamente à tradição. Existem termos fundamentais com o dharma Hindu e Budista, o al-dīn Islâmico, o Tao Taoista, entre outros que estão inextricavelmente relacionados com o significado do termo tradição, mas que não são idênticos a este ainda que os mundos ou civilizações criados pelo Hinduísmo, Budismo, Taoismo, Judaísmo, Cristandade, Islão, ou para este contexto por qualquer outra religião, sejam obviamente mundos tradicionais. Cada uma destas religiões é também o coração ou origem da tradição que prolonga os princípios da religião para domínios diferentes. Tradição também não significa exactamente traditio na forma em que é usado no Catolicismo, apesar de incluir a ideia da transmissão de uma doutrina e práticas de uma natureza inspirada e enfim revelada que são implicadas pelo termo traditio. Na realidade, a palavra tradição está etimologicamente relacionada com transmissão e, no âmbito do seu significado, contém a ideia de transmissão de conhecimento, práticas, técnicas, leis, formas, e muitos outros elementos de natureza oral e escrita. A tradição é como uma presença viva que deixa impressa a sua marca mas que não é redutível a essa marca. Aquilo que transmite pode-se parecer com palavras escritas sobre pergaminho mas pode também consistir em verdades gravadas nas almas dos homens, de uma forma tão subtil como o murmúrio ou mesmo o relance do olho através do qual certos conhecimentos são transmitidos.


A tradição utilizada no sentido técnico deste trabalho, tal como em todos os nossos outros escritos, designa verdades ou princípios de origem divina revelados ou desvendados à humanidade e, de facto, todo um sector cósmico por meio de várias figuras encaradas como mensageiros, profetas, avatāras, o Logos ou outros agentes de transmissão, a par com todas as ramificações e aplicações destes princípios em domínios vários que incluem a lei e estrutura social, a arte, o simbolismo, as ciências, e abrange evidentemente o Conhecimento Supremo bem como os meios para a sua obtenção.


No seu sentido mais universal, tradição pode ser considerada como inclusa de princípios que ligam o homem ao Céu, e por conseguinte de religião, enquanto tomando um outro ponto de vista a religião pode ser considerada na sua essência como aqueles princípios que são revelados pelo Céu e que ligam o homem à sua Origem. Neste caso, tradição pode ser considerada num sentido mais restrito como sendo a aplicação destes princípios. A tradição implica verdades de um carácter supraindividual enraizadas na natureza da realidade como tal, porquanto, conforme foi afirmado, “A tradição não é uma mitologia infantil e fora de moda mas uma ciência terrivelmente real”.[v] A tradição, tal como a religião, é de uma vez verdade e presença. Concerne o sujeito que conhece e o objecto que é conhecido. Surge da Fonte da qual tudo se origina e para a qual tudo retorna. Por conseguinte, engloba todas as coisas tal como o “Respiro do Compassivo” que, de acordo com os Sufis, é precisamente a raiz da própria existência. A tradição está inextricavelmente relacionada com revelação e religião, com o sagrado, com a noção de ortodoxia, com autoridade, com a continuidade e regularidade da transmissão da verdade, com o exotérico e com o esotérico e bem assim com a vida espiritual, a ciência e as artes. As cores e nuances do seu significado tornam-se deveras clarificadas uma vez que a sua relação com cada um destes e de outros conceitos e categorias pertinentes é elucidada.


Para muitos dos que foram atraídos ao chamamento da tradição durante as parcas últimas décadas, o significado da tradição tornou-se relacionável acima de tudo com a sabedoria perene que reside no coração de cada religião e que não é outra que não a Sophia cuja posse foi considerada como o objectivo supremo da vida humana, no Ocidente bem como no Oriente, segundo a perspectiva sapiêncial. Esta sabedoria eterna da qual a ideia da tradição não pode ser dissociada e que constitui um dos componentes principiais do conceito da tradição é nenhum outro que a sophia perennis da tradição Ocidental a que os Hindus chamam sanatāna dharma[vi] e os Muçulmanos al-ḥikmat al-khālidah (ou jāvīdān khirad em Persa).[vii]


Num certo sentido, sanatāna dharma ou sophia perennis estão relacionadas com a Tradição Primordial[viii] e, por conseguinte, com a Origem da existência humana. Mas esta visão não deve de modo algum desviar ou anular a autenticidade das últimas mensagens do Céu na forma das várias revelações, cada uma das quais começa com uma origem que é a Origem e sinaliza o começo de uma tradição que é de uma vez a Tradição Primordial e a sua adaptação a uma humidade particular, sendo esta adaptação a Possibilidade Divina manifestada no plano humano. A atracção do homem do Renascimento pela quimera das origens e a “Tradição Primordial” que levou Ficino a desprezar a tradução de Platão em favor do Corpus Hermeticum, que era então considerado como mais antigo e primordial, atracção esta que passou também a fazer parte da visão do mundo e do Zeitgeist do século dezanove,[ix] provocou muita confusão em torno da questão do significado da “Tradição Primordial” na sua relação com as várias religiões. Cada tradição, e portanto Tradição, estão profundamente relacionadas com a sabedoria perene ou ‘Sophia’, não devendo esta ligação ser considerada como apenas temporal e nem como uma causa para a rejeição daquelas outras mensagens do Céu que constituem as diferentes religiões e que são, claramente, interiormente relacionadas com a Tradição Primordial sem que sejam somente a sua continuidade histórica ou temporal. A genialidade espiritual e a particularidade de cada tradição não podem ser negligenciadas em nome da sempre presente sabedoria que reside no coração de cada e de todas as descendências celestes.


A.K. Coomaraswamy, um dos mais relevantes expositores das doutrinas tradicionais no período contemporâneo, traduziu sanatāna dharma como philosophia perennis, ao que adicionou o adjectivo universalis. Sob a sua influência, muitos identificaram tradição como a filosofia perene com a qual está profundamente relacionada.[x] Mas o termo philosophia perennis, ou a sua tradução Inglesa, é de alguma forma problemático em si mesmo e carece de definição prévia para que a tradição possa ser compreendida por referência àquela. Contrariamente ao que Huxley afirma, o termo philosophia perennis não foi empregue pela primeira vez por Leibniz, ainda que este o tenha citado numa célebre carta escrita a Remond em 1714.[xi] Mais propriamente, o termo foi provavelmente primeiramente empregue por Agostino Steuco (1497-1548), o filósofo e teólogo Augustiniano da Renascença. Apesar do termo ter sido associado a muitas e diferentes escolas, incluindo a Escolástica, especialmente a escola Tomista,[xii] e o Platonismo em geral, estas são associações mais recentes, enquanto que a associação do termo com Steuco foi identificada a respeito da sabedoria perene que abrangia a filosofia e a teologia e não apenas pela relação com uma escola de sabedoria ou de pensamento.


O trabalho de Steuco De perenni philosophia foi influenciado por Ficino, por Pico e ainda por Nicolas de Cusa, especialmente pelo De pace fidei que fala da harmonia entre as várias religiões. Steuco, que conhecia Árabe e outras línguas Semitas e que era bibliotecário da Biblioteca do Vaticano, o que lhe concedeu acesso à “sabedoria dos tempos” com a profundidade que era possível no Ocidente naquela altura, seguiu as ideias destas figuras antigas no que respeita à presença de uma sabedoria ancestral que tinha existido desde o despertar da história. Ficino não falou de philosophia perennis mas aludiu sim por diversas vezes à philosophia priscorium ou prisca theologia, que pode ser traduzida como antiga ou venerável filosofia e teologia. No encalço de Gemisthus Plethon, o filósofo Bizantino que escreveu sobre esta sabedoria ancestral e enfatizou o papel de Zaratustra como mestre deste conhecimento ancestral de ordem sagrada, Ficino enfatizou a significância do Corpus Hermeticum e dos Oráculos Caldeus, os quais considerava terem sido compostos por Zaratustra e que teriam sido estes as origens desta sabedoria primordial. Steuco acreditava que Platão herdara esta sabedoria[xiii] e que com este a verdadeira filosofia tinha sido originada, tal como a verdadeira teologia teria tido origem na Cristandade. Esta verdadeira filosofia, vera philosophia, era para ele o mesmo que religião e, a verdadeira religião, o mesmo que esta filosofia. Para Ficino, tal como para tantos outros Cristãos Platonistas, Platão teria conhecido o Pentateuco e teria sido um “Moisés greco-falante,” este Platão a quem Steuco chamou Platão divinus e que muitos sábios Muçulmanos, de modo semelhante, titularam de Aflāṭūn al-ilāhī, o “Platão Divino.”[xiv] Ficino, de certa forma, reformulou a visão de Glemithus Plethon relativamente à perenidade da verdadeira sabedoria.[xv] O compatriota de Ficino, Pico della Mirandola, adicionaria ainda às fontes da philosophia priscorium consideradas por Ficino, não Cristãs e especialmente Greco-Egípcias, o Corão, a filosofia Islâmica e a Cabala, ainda que tenha dado seguimento à perspectiva de Ficino e que tenha enfatizado a ideia da continuidade de uma sabedoria que é essencialmente uma ao longo das várias civilizações e períodos da história.


A philosophia perennis de Steuco era nada mais que esta philosophia priscorium, mas sobre uma outra designação.[xvi] Steuco afirmou que a sabedoria era originariamente de origem divina, um conhecimento sagrado dado por Deus a Adão que, para a maioria dos seres humanos, foi gradualmente esquecido e se tornou num sonho sobrevivente apenas e quase integralmente na prisca theologia. Esta verdadeira religião ou filosofia, cujo objectivo é a theosis e a obtenção do conhecimento sagrado, existiu desde o começo da história humana e é obtenível através da expressão histórica desta verdade nas suas várias tradições ou pela intuição intelectual e contemplação “filosófica”.


Apesar de severamente atacada por muitos sectores por expressar ideias tão opostas ao humanismo da Renascença e às interpretações um tanto exotéricas e sectárias da Cristandade que prevaleciam naqueles tempos, o termo utilizado por Steuco continuou a sobreviver e ficou célebre devido à utilização que lhe foi dada por Leibniz, este que tinha uma certa simpatia com as ideias tradicionais. Mas, algo curiosamente, o termo apenas ganhou popularidade generalizada no século vinte. Se a sabedoria perene ou antiga for de facto compreendida tal como Plethon, Ficino e Steuco o fizeram, então está relacionada com a ideia da tradição e pode mesmo ser empregue como uma tradução de sanatāna dharma, desde que o termo philosophia não seja tomado apenas de maneira teórica mas que abranja também a realização.[xvii] A tradição contém o sentido de uma verdade que é simultaneamente de origem divina e perpetuada ao longo de um importante ciclo da história da humanidade através, quer de transmissão, quer da renovação da mensagem por meio de revelação. A tradição também implica uma verdade interior que reside no coração das diferentes formas sagradas e que é única porquanto a Verdade é una. Em ambos os sentidos, a tradição está intimamente relacionada com a philosophia perennis se este termo for entendido como a Sophia que sempre foi e sempre será e que é perpetuada juntamente por meios de transmissão horizontal e de renovação vertical através do contacto com aquela realidade que o era “no início” e que o é aqui e agora.[xviii]



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[i] Do poema “Autumn” de M. Lings, um dos principais escritores tradicionalistas contemporâneos que é também poeta, no seu The Heralds and Other Poems, Londres, 1970, p. 26.
[ii] Tal como um dos mais importantes mestres tradicionais contemporâneos afirmou, a exposição das doutrinas tradicionais na sua totalidade é necessária nos dias de hoje porque “uma irregularidade merece uma outra”.
[iii] No plano microcósmico, as escatologias tradicionais ensinam que no momento da morte, toda a vida de um ser humano é recapitulada laconicamente perante ele mesmo. Ele é então julgado em conformidade e entra num estado póstumo em acordo com o seu estado de existência e obviamente com a Misericórdia Divina, cujas dimensões são imponderáveis. O mesmo princípio existe no plano macrocósmico, e como envolve a vida da humanidade como tal, obviamente com todas as diferenças implicadas pela variação do plano individual para o colectivo.
[iv] Os primeiros trabalhos de R. Guénon, um dos mais importantes expositores da perspectiva tradicional no Ocidente moderno, contêm muitas passagens sobre o significado da tradição. Ver “What is meant by Tradition”, no seu Introduction to the Study of Hindu Doctrines, trad. M. Pallis, Londres, 1945, pp. 87-89; e “De l’infallibilité traditionnelle”, em ed. Aperçus sur l’initiation, Paris, 1946, pp. 282-88. Do mesmo modo, A. K. Coomaraswamy e F. Schuon escreveram numeras páginas e passagens sobre o próprio conceito de tradição. Ver, por exemplo, Coomaraswamy, The Bugbear of Literacy, esp. caps. 4 e 5; e F. Schuon Spiritual Perspectives and Human Facts, pt. 1; idem, Light on the Ancient Worlds, caps. 1 e 2; idem, “Fatalité et progress”, Etudes Traditionelles, n. 261 (Jul-Ago 1947): 183-89; e idem, “L’impossible convergence“, Etudes Traditionelles, n. 402-3 (Set-Out 1967): 145-49; Ver também E. Zolla, Ché cos’ è la tradizione?“, esp. pt. 2, “La Tradizione Eterna”, que trata a tradição de um ponto de vista mais literário; e idem, “What is Tradition?”, um volume dedicado a A.K. Coomaraswamy e editado por R. Fernando. A tradição também foi usada com um significado semelhante, ainda que mais restrito do que o significado utilizado no presente trabalho, por certos autores católicos tais como J. Pieper, Überlieferung-Begriff und Anspruch, Munique, 1970, enquanto outras figuras católicas a quem retornaremos adiante adoptaram integralmente a ideia da tradição.
[v] F. Schuon, Understanding Islam.
[vi] Sanatāna dharma não pode ser traduzido com rigor, ainda que sophia perennis seja talvez o que mais se aproxima, já que sanatāna significa perenidade (que é, perpetuidade ao longo de um ciclo de existência humana e não eternidade) e dharma o princípio de conservação dos seres, tendo cada ser o seu próprio dharma com o qual deve conformar e que é a sua lei. Mas dharma também se relaciona com a humanidade como um todo no sentido de Mānava-dharma e neste caso relaciona-se com o conhecimento sagrado ou ‘Sophia’, o qual está no coração da lei que governa um ciclo humano. Neste sentido sanatāna dharma corresponde a sophia perennis, esp. tendo em consideração a realizada e não apenas a dimensão teórica de ‘Sophia’. No seu significado pleno, sanatāna dharma é a tradição primordial ela mesma tal como tem subsistido e continuará a subsistir no decurso do presente ciclo da humanidade. Ver R. Guénon, “Sanatāna Dharma”, no seu Études sur L’Hindouisme, Paris, 1968, pp. 105-6.
[vii] Este é, na realidade, o título de um trabalho de Ibn Miskawayh (Muskūyah) sobejamente conhecido e que contém aforismos e ditos metafísicos e éticos de sábios Islâmicos e pré-Islâmicos. Ver a edição de A. Badawi al-Ḥikmat al-khālidah: Jāwīdān khirad, Cairo, 1952. Este trabalho discute o pensamento e escritos de muitos sábios e filósofos, incluindo aqueles da Pérsia antiga, Índia, e do mundo Mediterrânico (Rūm). Neste trabalho, ver a introdução de M. Arkoun para a tradução Persa de Ibn Miskawayh, por T. M. Shushtarī, Jāvīdān khirad, Teerão, 1976, pp. 1-24.
[viii] A tradição primordial não é outra que a que o Islão refere como al-dīn al-ḥanif, e que o Corão refere um vários contextos mas habitualmente em relação com o Profeta Abraão que é habitualmente referido como ḥanif; por exemplo, “Recusa mas (nós seguimos) a religião de Abraão, o correcto [upright] (ḥanifan), e ele não era dos idólatras” (II; 135-Pickthall translation). Ver também versos III; 67 e 95-VI; 79 e 161-XVI; 120-e XVII; 31.
[ix] Ver M. Eliade, “The Quest for the ‘Origins of Religion’,” History of Religions 4/1 (Verão 1964); 154-69.
[x] O bastante conhecido trabalho de A. Huxley, Perennial Philosophy, Nova Iorque, 1945, é um dos trabalhos que procurou demonstrar a existência e apresentar os conteúdos desta sabedoria duradoura e perene recorrendo a ditos seleccionados e retirados de várias tradições, mas o trabalho permanece incompleto em muitos aspectos e a sua perspectiva não é tradicional. O primeiro trabalho que tomou plenamente a sugestão de Coomaraswamy em organizar o vasto compendio de conhecimento tradicional com o fito de demonstrar a notável perenidade e universalidade da sabedoria é o tristemente negligenciado trabalho de W.N. Perry, A Treasury of Traditional Wisdom, Londres e Nova Iorque, 1971, o qual consiste num trabalho chave para a compreensão do que autores tradicionais intentam por filosofia perene.
[xi] Depois de declarar nesta carta que a verdade é mais extensa do que havia sido pensado até então, e que o seu rasto se encontra entre os antigos, ele diz “et ce serait en effect perennis quaedam Philosophia.” C.J. Gerhardt (ed.), De philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm Leibnitz, Berlim, 1875-90, vol. 3, p. 625. Também citado em C. Schmitt, “Perennial Philosophy: Steuco to Leibniz,” Journal of the History of Ideas 27 (1966): 506. Este artigo (pp. 505-32 do volume citado) descreve a história da utilização do termo philosophia perennis dedicando especial atenção ao suporte Renascentista de Ficino e de outras figuras Renascentistas anteriores. Ver também J. Collins, “The Problem of a Perennial Philosophy,” na sua Three Paths in Philosophy, Chicago, 1962, pp. 255-79.
[xii] A identificação da “filosofia perene” com o Tomismo ou a Escolástica em geral é um fenómeno do Sec. XX, porquanto durante o Renascimento os Escolásticos em geral opunham-se às teses de Steuco.
[xiii] Especialmente herdeiro de Zaratustra, Hermes, Orfeu, Aglaophemus (o professor de Pitágoras), e Pitágoras.
[xiv] Este termo encontra-se entre filósofos Islâmicos tais como al-Fārābī e certos Sufis.
[xv] Sobre a visão de Ficino ver os vários trabalhos de R. Klibansky, E. Caisser, e P. O. Kristeller acerca do Renascimento, esp. Studies in Renaissance Thought and Letters de Kristeller, Roma, 1956; e idem, Il pensiero filosofico di Marsilio Ficino, Florença, 1953.
[xvi] Este facto é demonstrado claramente por Scmitt no seu artigo já citado, porquanto apesar do termo philosophia perennis ser de origem Renascentista, mesmo para a vida intelectual Ocidental, a ideia subjacente é de origem medieval e em última análise originária da Grécia antiga.
[xvii] Referindo-se à religio perennis, Schuon escreve “Estas palavras fazem lembram a philosophia perennis de Steuchus Eugubin (século XVI) e dos neo-escolásticos; mas a palavra ‘philosophia’ sugere, correcta ou erradamente, uma elaboração mental em vez de sabedoria e por conseguinte não aporta o sentido pretendido com exactidão.” Light on the Ancient Worlds, p. 143.
[xviii] “‘Philosophia perennis’ é geralmente entendida como relacionada com a verdade metafísica que não tem começo, e que se mantém inalterada em todas as expressões de sabedoria. Talvez fosse melhor e mais prudente falar de uma ‘Sophia perennis’. (…)
Quanto à Sophia Perennis, a questão é a seguinte: existem verdades inatas no Espírito humano, que apesar disso estão de certa forma enterradas nas profundezas do ‘Coração’-no puro Intelecto-e que são acessíveis apenas àquele que é espiritualmente contemplativo; e estas são as verdades metafísicas fundamentais. O acesso a estas verdades está na posse do ‘gnóstico’, ‘pneumático’ ou ‘teósofo’,- no sentido original e não sectário destes termos: por exemplo, Pitágoras, Platão e em grande parte também Aristóteles." Schuon, "Sophia perennis": Studies in Comparative Religion. Ver também Schuon, Wissende, Verschwiegene. Ein geweihte Hinführung zur Esoterik, Iniciativa Herderbücherei 42, Munique, 1981, pp. 23-28; e idem, a introdução e o primeiro capítulo, “Prémisses epistémologiques,” no seu Sur les traces de la religion pérenne.

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