domingo, 4 de julho de 2010

O homem tradicional, o homem moderno e a crise ambiental

Com o início da preparação do terceiro número da Revista Sabedoria Perene, dedicada, tal como já anunciado, à Natureza, iremos procurar direccionar as nossas publicações para esta temática, quer seja com trechos extraídos dos ensaios que constarão revista, quer seja com outros textos a ela relacionados.

O texto que se apresenta de seguida é uma tradução da versão inglesa, publicada no Volume 12 – Número 2 (2000) do Sophia  –  The Journal of Traditional Studies, de uma entrevista efectuada pela revista espanhola Agenda Viva em Outubro de 2006 a Seyyed Hossein Nasr, autor que dispensa apresentação aos nossos leitores. Cremos que será uma boa introdução aos textos que irão surgir neste espaço durante os próximos meses.


O que significa para si natureza?

Seyyed Hossein Nasr: Tudo o que não é criado por seres humanos nem afectado pelas suas actividades humanas é natureza (no contexto aqui usado), do topo das montanhas ao fundo dos oceanos, das algas aos elefantes. De certo modo, o homem faz também parte da natureza na medida em que o seu corpo segue as mesmas leis naturais e físicas que seguem todos os restantes seres no mundo natural; no entanto, ao lhe ser dada a liberdade para se insurgir contra Deus e dessacralizar a natureza, o homem, de um outro ponto de vista, não é tecnicamente semelhante aos outros seres naturais. De todo o modo, eu defino natureza aqui como tudo o que não é humano e não é afectado pela actividade humana. É claro que, nas sociedades tradicionais, tais actividades estavam naturalmente em harmonia com a natureza mas, no caso das sociedades industrializadas, elas não têm qualquer tipo de harmonia. Escusado será dizer que, mesmo no nosso mundo actual, a natureza e os ambientes criados pelo homem também se interpenetram das mais variadas formas.

Como descreveria o actual estado do ambiente natural e da relação do mesmo com os seres humanos?

Seyyed Hossein Nasr: O homem moderno e pós-moderno destruiu grande parte da natureza, desde florestas a bancos de corais, e o que resta está gravemente ameaçado. A situação é crítica. Com a propagação global do paradigma modernista, o qual é inseparável das ideias de poder e domínio sobre a natureza de modo a satisfazer as sempre crescentes “necessidades” (as quais na maior parte dos casos não são mais do que desejos criados artificialmente e não verdadeiras necessidades), o caso é cada vez mais grave. No entanto, no decurso das últimas décadas, ocorreu também um despertar, no Ocidente e mais recentemente também no mundo não ocidental, entre um número de pessoas preocupadas com o estado precário do mundo natural e com a necessidade de cultivar uma atitude correcta para com a natureza de modo a não destruir o que resta dela. Deve ser relembrado, no entanto, que por muito que a natureza seja explorada e destruída pelo homem, será ela a ter a última palavra a dizer.

Num dos seus livros traça uma correspondência entre a actual crise ambiental e a crise espiritual do homem moderno. Poderia desenvolver um pouco aqui essa ideia?

Seyyed Hossein Nasr: A crise na relação dos seres humanos com a natureza nasceu no Ocidente moderno com base em dois erros: a incompreensão do significado profundo da natureza do homem e a incompreensão da realidade sagrada da natureza. Foi em consequência desta crise espiritual que ocorreu durante a Renascença e o séc. XVII, que o homem moderno veio a considerar-se, na medida em que se tornou “moderno,” como um ser puramente terrestre, sem qualquer responsabilidade para com Deus e a Sua criação. Também em resultado desta crise espiritual e intelectual, a realidade sagrada da natureza foi posta de lado e passou-se a olhar para a mesma em termos puramente quantitativos e mecânicos, tal como vemos na física clássica. É esta crise espiritual interior que se torna cada vez mais reflectida exteriormente a partir da Revolução Industrial.

No seio do movimento ambiental tem sido dito que os humanos são o maior inimigo da natureza e que a sua existência não é essencial para este planeta devido ao seu carácter destrutivo. O que pensa sobre esta afirmação?

Seyyed Hossein Nasr: Não são todos os seres humanos, mas apenas o homem moderno, o maior inimigo da natureza. Os aborígenes vivem na Austrália há mais de 40000 anos e não tivessem os seus padrões tradicionais de vida sido tão drasticamente alterados pelo homem branco como o foram nos últimos anos, poderiam ter vivido outros 40000 ou mais na maravilhosa natureza virgem da Austrália. O mesmo não se pode dizer dos habitantes da zonas urbanas de Sidney ou Melbourne ou, mais precisamente, de qualquer outra cidade moderna, de Seoul a Nova York. A existência do homem moderno não é necessária para a natureza e o modo de vida moderno não pode, de facto, continuar por muito mais tempo no seu percurso actual. Mas o homem na sua realidade perene, isto é, o homem tradicional, foi e continua a ser, na medida em que tal ser subsiste, sempre uma fonte de graça para a natureza, e a sua presença na terra permitia e continua a permitir que a natureza respire o ar do mundo espiritual. Existem razões esotéricas, cosmológicas e metafísicas para que a natureza não possa existir sem o homem. Não posso entrar aqui em detalhes sobre elas mas foram discutidas em vários dos meus livros, especialmente no Man and Nature: the Spiritual Crisis of Modern Man  (Kazi Publications, 1998), no Religion and the Order of Nature (Oxford, 1996) e no Knowledge and the Sacred (SUNY, 1989).

Nos seus livros afirma que a ciência actual e o modo de vida que promulga são criações do homem profano. O que significa aqui a palavra profano?

Seyyed Hossein Nasr: Com a palavra profano quero dizer o tipo de ser humano que deixou de ter a sua base no Sagrado e que, cada vez mais, perdeu inclusive o sentido do sagrado. Por essa razão, quer as faculdades mentais com as quais pensa, quer o objecto da sua ciência, que é a natureza, tornaram-se dessacralizados – esvaziados do sagrado. É a tal pessoa que chamo homem profano (ou, é claro, mulher, pois o termo homem aqui usado não diz respeito ao género, mas sim ao ser humano como tal).

Porque razão diz que o cosmos é como um livro com múltiplos significados?

Seyyed Hossein Nasr: O que é um livro? É um determinado número de folhas de papel nas quais se encontram escritas algumas figuras num determinado tipo de tinta, figuras essas que possuem um significado para além da sua forma exterior. De modo a compreender esse significado é necessária a linguagem com a qual o livro foi escrito. Vejamos agora, o cosmos é como um livro no sentido em que cada um dos seus fenómenos possui um significado no interior e para além da forma exterior e das características do fenómeno em questão. Se não conhecemos a linguagem com a qual um livro é escrito, podemos de qualquer forma pesá-lo e medir as suas dimensões. As ciências quantitativas da natureza fazem precisamente o mesmo vis-à-vis o livro cósmico. Elas estudam os aspectos quantitativos dos fenómenos naturais mas esqueceram-se da linguagem com a qual o livro da natureza ou o livro cósmico foi escrito e, assim, não podem compreender a mensagem nele contida.

Será possível aprender a ler os sinais da natureza e compreender o seu significado?

Seyyed Hossein Nasr: Sim, é possível dominar a linguagem de modo a sermos capazes de ler de novo o livro cósmico, tal como o faziam os antigos. Mas para alcançar este feito é necessário compreender, antes de tudo, a necessária metafísica e cosmologia, bem como ser capaz de viver de novo num universo intelectual e espiritual tradicional, o único ambiente onde esta linguagem pode ser dominada.

Qual da ciências actuais considera a mais próxima de um conhecimento do homem e da natureza?

Seyyed Hossein Nasr: Nenhuma das ciências modernas está próxima da verdadeira compreensão da relação entre o homem e a natureza, pois todas estas ciências baseiam-se no desprezar dos estados superiores do ser, incluindo a realidade espiritual. Mas uma vez que coloca essa questão, eu diria que, comparativamente, do ponto de vista da compreensão da admirável harmonia da natureza e da nossa relação com ela a ecologia seria a mais próxima. De um ponto de vista metafísico, no entanto, acredito que a mecânica quântica poderá ser importante caso se liberte da prisão da bifurcação cartesiana.

Como poderão as ciências orientais ajudar a compreensão ocidental da natureza?

Seyyed Hossein Nasr: As ciências orientais da natureza, sejam elas chinesas, indianas, islâmicas ou outras, são baseadas numa cosmologia que continua ligada à metafísica. Elas estudam a natureza à luz dos princípios espirituais e intelectuais que transcendem a natureza física e que se baseiam numa profunda correspondência entre o homem e a natureza, localizada para além do simples quantitativo e material. É a isto que se chama antropocosmismo no pensamento do extremo oriente. Estas ciências, se estudadas em profundidade no ocidente, não como fases rudimentares da ciência moderna ocidental, mas sim como formas independentes de conhecer a natureza, podem revelar aspectos fundamentais da natureza e da sua relação com o homem, aspectos que estão escondidos da perspectiva daqueles cujos horizontes estão limitados pela ciência moderna. Mormente, estas ciências tradicionais podem ajudar a ressuscitar um sério interesse nestes tipos de ciência (como ciência e não como história) existentes no próprio ocidente, tal como por exemplo as ciências Herméticas.

Que papel deverá desempenhar a religião neste debate?

Seyyed Hossein Nasr: As religiões têm tudo a haver com a crise ambiental e com o respectivo debate, especialmente nos locais do mundo onde, ao contrário da Europa ocidental, as pessoas ainda são religiosas. Em primeiro lugar, foi a religião, no seu sentido mais vasto, que providenciou uma visão espiritual da existência, incluindo a natureza, em todas as civilizações tradicionais. Como já referi, se no Ocidente a natureza não tivesse sido secularizada, as ciências modernas, seculares e puramente quantitativas, não se teriam desenvolvido; nem tão pouco a tecnologia teria causado tantos estragos no ambiente. Em segundo lugar, as grandes religiões, bem como, especialmente, as religiões primordiais, possuem todas uma ética religiosa relacionada com o mundo da natureza e dos seres humanos. Isto é válido inclusivamente para o Cristianismo, apesar deste aspecto da tradição cristã se ter eclipsado nos tempos modernos e apenas nas últimas décadas os teólogos e éticos cristãos se terem voltado para o problema e proclamado S. Francisco como o santo padroeiro da ecologia.
            Existe definitivamente a necessidade daquilo que agora se apelida de “esverdear” da religião, isto é, o reavivar dos aspectos dos seus ensinamentos que lidam com o ambiente natural e com a responsabilidade do homem perante a criação de Deus. Consegue imaginar a diferença que faria para a preservação do ambiente natural se os pregadores cristãos e muçulmanos, bem como os professores hindus e budistas, continuassem a relembrar aos cristãos, muçulmanos, hindus e budistas nos seus sermões e discursos diários do seu dever religioso como protectores da criação de Deus e não seus inimigos?

Qual é a sua opinião do nível de conhecimento que se pode obter, digamos, de um coiote, através dos estudos de um zoologista a partir da análise dos seus hábitos externos ou da dissecação do seu cadáver, e aquele que pode obter um xamane índio que se identifica com o espírito do animal?

Seyyed Hossein Nasr: A minha opinião é que conhecer o arquétipo – a essência – de um animal é uma forma mais elevada de conhecimento do que conhecer o seu peso, anatomia e hábitos de acasalamento. Este último conhecimento não é, de modo algum, insignificante, e é válido e legítimo ao seu próprio nível, não esgotando, no entanto, a realidade do animal. O conhecimento do animal na sua realidade essencial é sem dúvida um conhecimento mais profundo. É a isso que me referia quando escrevi sobre o homem que se identificava com o coiote, tal como podemos ver nas tradições dos nativos americanos.

Nos tempos actuais, se existe um ponto no qual muitos cientistas e religiosos se interceptam, esse ponto é o anúncio do iminente fim dos tempos como resultado de grandes catástrofes globais. Qual é a correspondência entre estes dois grupos no que respeita a este ponto?

Seyyed Hossein Nasr: As religiões falam do fim da história e de eventos escatológicos tal como vemos muito explicitamente nas fontes tradicionais hindus, cristãs e islâmicas. Elas falam também dos “sinais dos tempos,” sinais que caracterizam o fim da história tal como a conhecemos. O que os cientistas dizem sobre os iminentes desastres ambientais corresponde de muitas formas a estes profetizados “sinais dos tempos.” No entanto, é um grave pecado, falando em termos teológicos, continuar a destruir a natureza em resultado de crenças escatológicas que possamos ter. Esta seria a maior afronta a Deus, pois devemos continuar a seguir os seus ensinamentos enquanto o mundo existir. Seríamos nós, verdadeiros seguidores de uma religião, capazes de ir contra os ensinamentos dos fundadores das nossas religiões incluindo Cristo e não mais ajudar os pobres com o argumento de que a terra será destruída em breve e que é inútil aliviar o sofrimento dos outros? Apenas Deus sabe quando chegará “a Hora”, como dizem os muçulmanos. O Profeta do Islão disse que plantar uma árvore é um acto abençoado mesmo que o mundo esteja para acabar no dia seguinte.

Existe alguma esperança para uma reconciliação dos seres humanos com a natureza – para que nós como seres humanos possamos tomar o nosso devido lugar na ordem da natureza?

Seyyed Hossein Nasr: É claro que existe sempre esperança, e a esperança, tal como disse Santo Agostinho, é uma virtude teológica. Mas depois de passado quase meio século de preocupação e estudo da crise ambiental, cheguei à conclusão que, à excepção de uma intervenção divina, a única hipótese para a presente humanidade é uma grande catástrofe que seja extensiva o suficiente para mudar o paradigma que domina o pensamento e a actuação do homem moderno, e que quebre os seus hábitos de necessidades e de consumo infindável sem qualquer preocupação com os direitos do mundo não humano. Detesto afirmar tal coisa mas, para ser realista, uma vez que a humanidade moderna recusa alterar os seus modos de actuação de uma forma significativa através da educação na escala de tempo e na janela de oportunidade que temos, é melhor que ocorra uma calamidade significativa que cause o despertar da humanidade, do que todos os homens e outras criaturas experienciem uma morte lenta ou um cataclismo totalmente devastador. Espero estar errado nesta análise. De qualquer forma, esperemos que a humanidade recupere o bom senso por si própria antes que surja qualquer cataclismo que nos force a tal. Uma coisa é certa, o que quer que façamos à natureza e por mais certos que possamos estar em resultado do nosso orgulho pelo domínio da natureza, será, como referi anteriormente, a natureza a ter a última palavras a dizer. Finalmente, devemo-nos lembrar que, em última análise, todas as coisas estão nas Mãos de Deus. Devemos fazer o que pudermos e confiar Nele com todo o nosso ser. E Deus sabe mais.

2 comentários:

  1. Continuem o excelente trabalho! Aguardamos em entusiasmo a próxima edição da Revista.

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  2. É maravilhoso encontrar ressonância em nossas percepções e leituras de mundo. Concordo plenamente com a visão de um esvaziamento do sagrado em cada ser da natureza (o homem incluído). Quero saber mais das idéias de Nasr - consegui baixar na net o livro "O Homem e a Natureza". Gratidão por compartilhar Omar!

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