Após a crucifixão, a religião cristã foi gradativamente se enraizando e se estabelecendo, sobretudo na Europa e no Oriente Próximo, mas também na Ásia e na África. Depois de vários séculos, alcançou seu apogeu naquilo que hoje chamamos de Idade Média – grosso modo, entre a coroação de Carlos Magno no ano 800 e 1300. Nesta época, floresceram confrarias espirituais como a franciscana e a dominicana; escolas de pensamento como a tomista (aristotélica) e a eckhartiana (platônica); movimentos artísticos como o românico e o gótico; sábios e santos como Francisco de Assis, Catarina de Siena, Alberto Magno e Dante, sem falar dos hospitais, universidades e asilos criados pela igreja.
Depois deste ápice, três revoluções modificaram a face da Cristandade. A primeira foi o Renascimento (século XV), a segunda, o Iluminismo (século XVIII) e a terceira, o Vaticano II (século XX).
A Renascença foi o primeiro movimento de afastamento do divino rumo ao humanismo. O Iluminismo foi uma continuação disso, de uma maneira mais marcada e explícita. O Vaticano II foi a derradeira e mais devastadoras dessas revoluções, virando pelo avesso as principais crenças e práticas do Catolicismo. O concílio, assim, reforçou, de forma agressiva e destrutiva, e de dentro da cidadela da religião, as duas revoluções anteriores.
A própria denominação daquilo que estamos indicando como a ‘primeira’ das revoluções é enganosa, pois significou a ‘morte’, não o ‘renascimento’, do patrimônio intelectual, espiritual e cultural medieval. Este legado inclui a especulação teológica de séculos, como exposto na Suma de Santo Tomás de Aquino; a Divina Comédia de Dante, compreendendo uma visão e um ensinamento sobre o destino póstumo do homem; a altamente espiritual arte e arquitetura românica e gótica; os ícones bizantinos, e muitas outros elementos. A Renascença foi o primeiro movimento de afastamento da espiritualidade, transcendência, qualidade, interioridade e verticalidade, rumo a uma nova ênfase na materialidade, mundanidade, quantidade, exterioridade e horizontalidade. Sem esquecer a substituição do universalismo pelo individualismo, da intelectualidade pelo racionalismo. Em uma palavra, a Renascença significou o início do “reino da quantidade”, como explicado por René Guénon em seus clássicos A Crise do Mundo Moderno e O Reino da quantidade e os sinais dos tempos.
Três séculos após a Renascença, aconteceu uma segunda revolução, que traiu seu verdadeiro propósito pelo próprio nome; os líderes do auto-denominado “Iluminismo” viam a si mesmos como portadores da “luz” da ciência e da razão, contra as “trevas” da “superstição” e do “dogma”. Foi , assim, uma batalha ideológica contra a religião. Caracteristicamente, o movimento foi disseminado pela já secularizada maçonaria e serviu como base ideológica da Revolução Francesa. A redução da qualidade à quantidade, da espiritualidade ao materialismo, da interioridade à exterioridade experimentou assim um segundo estágio e representou uma radicalização dessas tendências que foi muito além da Renascença.
Este ‘reino da quantidade’, que deu seus primeiros passos na Renascença e se expandiu no Iluminismo alcançou a cidadela da religião com o concílio Vaticano II de 1962-65. O concílio permitiu que a nova ideologia humanista do ‘progresso’, ciência e tecnologia invadisse os sacros limites antes reservados para o conhecimento e o amor de Deus. Mas, desde que a religião nunca pode ser um suporte para a mentalidade materialista como estruturada pela Renascença e o Iluminismo, e de fato está em completa oposição a ela, os chefes do concílio buscaram uma pacto e uma acomodação com a mentalidade moderna. Tal meta constitui, contudo, uma clara traição do espírito cristão. Muito antes do Vaticano II, ainda na década de 1920, Guénon escreveu: qualquer compromisso entre o espírito religioso e a mentalidade moderna enfraqueceria o primeiro e só beneficiaria a segunda, cuja hostilidade não seria por isso diminuída, dado que o modernismo almeja a aniquilação total de tudo que, na humanidade, reflete uma realidade superior a ela mesma (A Crise do Mundo moderno). Palavras proféticas. [2]
O principal arquiteto desta revolução dentro da igreja foi o jesuíta francês Teilhard de Chardin; ele foi o ‘elo perdido’ entre o Renascimento, o Iluminismo e o Vaticano II. Com seu evolucionismo panteísta com verniz cristão, Teilhard dizia que Cristo representou um grande “salto evolutivo” e que Deus também está sujeito à “evolução”! Seu ‘testamento intelectual’ pode ser resumido num extrato de seu livro Cristianismo e Evolução (p.99):
"Se, como resultado de alguma revolução interior, eu perdesse sucessivamente minha fé em Cristo, minha fé no Deus pessoal e a fé no espírito, creio que continuaria a crer de forma invencível no mundo. O mundo, seu valor, sua bondade, sua infalibilidade, é isso, ao final das contas, a primeira, a última e a única coisa em que creio.”
Não é sem razão que um comentário espirituoso diz que se Lutero foi um cristão que deixou a Igreja, Teilhard foi um pagão que permaneceu nela!
Juntamente com o espectro de Teilhard, podemos dizer que nossa época ainda é dominada pelos espectros de Darwin, Marx, Freud e Jung. Alguns deles, ou todos, podem ser já considerados “história”. Mas sua influência, percebida ou não, deixou marcas profundas em nosso modo de pensar e agir. Os “ismos” que forjaram continuam sendo as peças básicas de nossa “religião” secular. Esta também tem seus defensores “fundamentalistas”, que praticam uma “intolerância religiosa” que nada fica a dever aos piores exemplos do passado. E ai de quem ouse questionar seus “dogmas”!
Pouquíssimas pessoas e instituições não foram afetadas por tais idéias. Em razão de sua influência no mundo ocidental, vale a pena avaliar como afetaram a Igreja Católica. Elas o fizeram especialmente mediante a revolução que foi o concílio Vaticano II. A natureza desta revolução pode ser apreciada pelos ditos e escritos dos papas do período, de João XXIII a Bento XVI. Através deles, percebe-se um programa radical e sem precedentes de rompimento com a tradição. Apesar disso, não suscitou grandes indagações por parte de um público que permanece relativamente passivo. As citações abaixo de Paulo VI mostram claramente quão drástica foi a revolução. Suas palavras estão em contradição com os próprios fundamentos do Cristianismo.
Giovanni Battista Montini (Paulo VI)
(1963-78)
Na audiência geral de 2 Julho de 1969, Montini declarou: “‘se o mundo muda, não deveria a religião também mudar?”
Ao abrir a 4ª. sessão do Vaticano II, em 14 de setembro de 1965, ele disse à assembléia reunida: “Pode a igreja, podemos nós mesmos, fazer outra coisa senão olhar para o mundo e amá-lo?”
É no seu pronunciamento de encerramento do concílio, em 7 de dezembro de 1965, que chegamos ao cerne da questão: “ Uma corrente de amor e admiração fluiu do concílio para o mundo moderno… os valores do mundo foram não apenas respeitados, mas honrados, seus esforços foram aprovados, suas aspirações purificadas e abençoadas.”
Foi neste mesmo pronunciamento que, com particular eloqüência, Montini nos legou o cerne de sua visão: “Todas as riquezas doutrinais do concílio não têm senão um propósito: servir ao homem… Reconheçam pelo menos isso, vós humanistas modernos que renunciaram à transcendência das coisas supremas, pelo menos este mérito e saibam reconhecer nosso novo humanismo: Nós também, Nós mais do que ninguém, também temos o Culto do Homem!”
(parte 2/3)
[1] Uma versão deste ensaio foi publicada em inglês, como capítulo do livro “Men of a Single Book: Fundamentalism in Islam, Christianity and Modern Thought” (World Wisdom, 2010).
[2] Vale lembrar que, de acordo com os Evangelhos, São Pedro negou o Cristo três vezes. Simbolicamente, pode-se talvez dizer que a igreja que Pedro estabeleceu herdou, por assim dizer, essas três negações, as quais podem ser relacionadas às três grandes rejeições, ou revoluções, sobre as quais estamos falando.
Depois deste ápice, três revoluções modificaram a face da Cristandade. A primeira foi o Renascimento (século XV), a segunda, o Iluminismo (século XVIII) e a terceira, o Vaticano II (século XX).
A Renascença foi o primeiro movimento de afastamento do divino rumo ao humanismo. O Iluminismo foi uma continuação disso, de uma maneira mais marcada e explícita. O Vaticano II foi a derradeira e mais devastadoras dessas revoluções, virando pelo avesso as principais crenças e práticas do Catolicismo. O concílio, assim, reforçou, de forma agressiva e destrutiva, e de dentro da cidadela da religião, as duas revoluções anteriores.
A própria denominação daquilo que estamos indicando como a ‘primeira’ das revoluções é enganosa, pois significou a ‘morte’, não o ‘renascimento’, do patrimônio intelectual, espiritual e cultural medieval. Este legado inclui a especulação teológica de séculos, como exposto na Suma de Santo Tomás de Aquino; a Divina Comédia de Dante, compreendendo uma visão e um ensinamento sobre o destino póstumo do homem; a altamente espiritual arte e arquitetura românica e gótica; os ícones bizantinos, e muitas outros elementos. A Renascença foi o primeiro movimento de afastamento da espiritualidade, transcendência, qualidade, interioridade e verticalidade, rumo a uma nova ênfase na materialidade, mundanidade, quantidade, exterioridade e horizontalidade. Sem esquecer a substituição do universalismo pelo individualismo, da intelectualidade pelo racionalismo. Em uma palavra, a Renascença significou o início do “reino da quantidade”, como explicado por René Guénon em seus clássicos A Crise do Mundo Moderno e O Reino da quantidade e os sinais dos tempos.
Três séculos após a Renascença, aconteceu uma segunda revolução, que traiu seu verdadeiro propósito pelo próprio nome; os líderes do auto-denominado “Iluminismo” viam a si mesmos como portadores da “luz” da ciência e da razão, contra as “trevas” da “superstição” e do “dogma”. Foi , assim, uma batalha ideológica contra a religião. Caracteristicamente, o movimento foi disseminado pela já secularizada maçonaria e serviu como base ideológica da Revolução Francesa. A redução da qualidade à quantidade, da espiritualidade ao materialismo, da interioridade à exterioridade experimentou assim um segundo estágio e representou uma radicalização dessas tendências que foi muito além da Renascença.
Este ‘reino da quantidade’, que deu seus primeiros passos na Renascença e se expandiu no Iluminismo alcançou a cidadela da religião com o concílio Vaticano II de 1962-65. O concílio permitiu que a nova ideologia humanista do ‘progresso’, ciência e tecnologia invadisse os sacros limites antes reservados para o conhecimento e o amor de Deus. Mas, desde que a religião nunca pode ser um suporte para a mentalidade materialista como estruturada pela Renascença e o Iluminismo, e de fato está em completa oposição a ela, os chefes do concílio buscaram uma pacto e uma acomodação com a mentalidade moderna. Tal meta constitui, contudo, uma clara traição do espírito cristão. Muito antes do Vaticano II, ainda na década de 1920, Guénon escreveu: qualquer compromisso entre o espírito religioso e a mentalidade moderna enfraqueceria o primeiro e só beneficiaria a segunda, cuja hostilidade não seria por isso diminuída, dado que o modernismo almeja a aniquilação total de tudo que, na humanidade, reflete uma realidade superior a ela mesma (A Crise do Mundo moderno). Palavras proféticas. [2]
O principal arquiteto desta revolução dentro da igreja foi o jesuíta francês Teilhard de Chardin; ele foi o ‘elo perdido’ entre o Renascimento, o Iluminismo e o Vaticano II. Com seu evolucionismo panteísta com verniz cristão, Teilhard dizia que Cristo representou um grande “salto evolutivo” e que Deus também está sujeito à “evolução”! Seu ‘testamento intelectual’ pode ser resumido num extrato de seu livro Cristianismo e Evolução (p.99):
"Se, como resultado de alguma revolução interior, eu perdesse sucessivamente minha fé em Cristo, minha fé no Deus pessoal e a fé no espírito, creio que continuaria a crer de forma invencível no mundo. O mundo, seu valor, sua bondade, sua infalibilidade, é isso, ao final das contas, a primeira, a última e a única coisa em que creio.”
Não é sem razão que um comentário espirituoso diz que se Lutero foi um cristão que deixou a Igreja, Teilhard foi um pagão que permaneceu nela!
Juntamente com o espectro de Teilhard, podemos dizer que nossa época ainda é dominada pelos espectros de Darwin, Marx, Freud e Jung. Alguns deles, ou todos, podem ser já considerados “história”. Mas sua influência, percebida ou não, deixou marcas profundas em nosso modo de pensar e agir. Os “ismos” que forjaram continuam sendo as peças básicas de nossa “religião” secular. Esta também tem seus defensores “fundamentalistas”, que praticam uma “intolerância religiosa” que nada fica a dever aos piores exemplos do passado. E ai de quem ouse questionar seus “dogmas”!
Pouquíssimas pessoas e instituições não foram afetadas por tais idéias. Em razão de sua influência no mundo ocidental, vale a pena avaliar como afetaram a Igreja Católica. Elas o fizeram especialmente mediante a revolução que foi o concílio Vaticano II. A natureza desta revolução pode ser apreciada pelos ditos e escritos dos papas do período, de João XXIII a Bento XVI. Através deles, percebe-se um programa radical e sem precedentes de rompimento com a tradição. Apesar disso, não suscitou grandes indagações por parte de um público que permanece relativamente passivo. As citações abaixo de Paulo VI mostram claramente quão drástica foi a revolução. Suas palavras estão em contradição com os próprios fundamentos do Cristianismo.
Giovanni Battista Montini (Paulo VI)
(1963-78)
Na audiência geral de 2 Julho de 1969, Montini declarou: “‘se o mundo muda, não deveria a religião também mudar?”
Ao abrir a 4ª. sessão do Vaticano II, em 14 de setembro de 1965, ele disse à assembléia reunida: “Pode a igreja, podemos nós mesmos, fazer outra coisa senão olhar para o mundo e amá-lo?”
É no seu pronunciamento de encerramento do concílio, em 7 de dezembro de 1965, que chegamos ao cerne da questão: “ Uma corrente de amor e admiração fluiu do concílio para o mundo moderno… os valores do mundo foram não apenas respeitados, mas honrados, seus esforços foram aprovados, suas aspirações purificadas e abençoadas.”
Foi neste mesmo pronunciamento que, com particular eloqüência, Montini nos legou o cerne de sua visão: “Todas as riquezas doutrinais do concílio não têm senão um propósito: servir ao homem… Reconheçam pelo menos isso, vós humanistas modernos que renunciaram à transcendência das coisas supremas, pelo menos este mérito e saibam reconhecer nosso novo humanismo: Nós também, Nós mais do que ninguém, também temos o Culto do Homem!”
(parte 2/3)
[1] Uma versão deste ensaio foi publicada em inglês, como capítulo do livro “Men of a Single Book: Fundamentalism in Islam, Christianity and Modern Thought” (World Wisdom, 2010).
[2] Vale lembrar que, de acordo com os Evangelhos, São Pedro negou o Cristo três vezes. Simbolicamente, pode-se talvez dizer que a igreja que Pedro estabeleceu herdou, por assim dizer, essas três negações, as quais podem ser relacionadas às três grandes rejeições, ou revoluções, sobre as quais estamos falando.
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