sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Três revoluções, três papas e a “nova” Igreja [1] - Parte 1/3

por Mateus Soares de Azevedo

Após a crucifixão, a religião cristã foi gradativamente se enraizando e se estabelecendo, sobretudo na Europa e no Oriente Próximo, mas também na Ásia e na África. Depois de vários séculos, alcançou seu apogeu naquilo que hoje chamamos de Idade Média – grosso modo, entre a coroação de Carlos Magno no ano 800 e 1300. Nesta época, floresceram confrarias espirituais como a franciscana e a dominicana; escolas de pensamento como a tomista (aristotélica) e a eckhartiana (platônica); movimentos artísticos como o românico e o gótico; sábios e santos como Francisco de Assis, Catarina de Siena, Alberto Magno e Dante, sem falar dos hospitais, universidades e asilos criados pela igreja.

Depois deste ápice, três revoluções modificaram a face da Cristandade. A primeira foi o Renascimento (século XV), a segunda, o Iluminismo (século XVIII) e a terceira, o Vaticano II (século XX).

A Renascença foi o primeiro movimento de afastamento do divino rumo ao humanismo. O Iluminismo foi uma continuação disso, de uma maneira mais marcada e explícita. O Vaticano II foi a derradeira e mais devastadoras dessas revoluções, virando pelo avesso as principais crenças e práticas do Catolicismo. O concílio, assim, reforçou, de forma agressiva e destrutiva, e de dentro da cidadela da religião, as duas revoluções anteriores.

A própria denominação daquilo que estamos indicando como a ‘primeira’ das revoluções é enganosa, pois significou a ‘morte’, não o ‘renascimento’, do patrimônio intelectual, espiritual e cultural medieval. Este legado inclui a especulação teológica de séculos, como exposto na Suma de Santo Tomás de Aquino; a Divina Comédia de Dante, compreendendo uma visão e um ensinamento sobre o destino póstumo do homem; a altamente espiritual arte e arquitetura românica e gótica; os ícones bizantinos, e muitas outros elementos. A Renascença foi o primeiro movimento de afastamento da espiritualidade, transcendência, qualidade, interioridade e verticalidade, rumo a uma nova ênfase na materialidade, mundanidade, quantidade, exterioridade e horizontalidade. Sem esquecer a substituição do universalismo pelo individualismo, da intelectualidade pelo racionalismo. Em uma palavra, a Renascença significou o início do “reino da quantidade”, como explicado por René Guénon em seus clássicos A Crise do Mundo Moderno e O Reino da quantidade e os sinais dos tempos.

Três séculos após a Renascença, aconteceu uma segunda revolução, que traiu seu verdadeiro propósito pelo próprio nome; os líderes do auto-denominado “Iluminismo” viam a si mesmos como portadores da “luz” da ciência e da razão, contra as “trevas” da “superstição” e do “dogma”. Foi , assim, uma batalha ideológica contra a religião. Caracteristicamente, o movimento foi disseminado pela já secularizada maçonaria e serviu como base ideológica da Revolução Francesa. A redução da qualidade à quantidade, da espiritualidade ao materialismo, da interioridade à exterioridade experimentou assim um segundo estágio e representou uma radicalização dessas tendências que foi muito além da Renascença.

Este ‘reino da quantidade’, que deu seus primeiros passos na Renascença e se expandiu no Iluminismo alcançou a cidadela da religião com o concílio Vaticano II de 1962-65. O concílio permitiu que a nova ideologia humanista do ‘progresso’, ciência e tecnologia invadisse os sacros limites antes reservados para o conhecimento e o amor de Deus. Mas, desde que a religião nunca pode ser um suporte para a mentalidade materialista como estruturada pela Renascença e o Iluminismo, e de fato está em completa oposição a ela, os chefes do concílio buscaram uma pacto e uma acomodação com a mentalidade moderna. Tal meta constitui, contudo, uma clara traição do espírito cristão. Muito antes do Vaticano II, ainda na década de 1920, Guénon escreveu: qualquer compromisso entre o espírito religioso e a mentalidade moderna enfraqueceria o primeiro e só beneficiaria a segunda, cuja hostilidade não seria por isso diminuída, dado que o modernismo almeja a aniquilação total de tudo que, na humanidade, reflete uma realidade superior a ela mesma (A Crise do Mundo moderno). Palavras proféticas. [2]

O principal arquiteto desta revolução dentro da igreja foi o jesuíta francês Teilhard de Chardin; ele foi o ‘elo perdido’ entre o Renascimento, o Iluminismo e o Vaticano II. Com seu evolucionismo panteísta com verniz cristão, Teilhard dizia que Cristo representou um grande “salto evolutivo” e que Deus também está sujeito à “evolução”! Seu ‘testamento intelectual’ pode ser resumido num extrato de seu livro Cristianismo e Evolução (p.99):

"Se, como resultado de alguma revolução interior, eu perdesse sucessivamente minha fé em Cristo, minha fé no Deus pessoal e a fé no espírito, creio que continuaria a crer de forma invencível no mundo. O mundo, seu valor, sua bondade, sua infalibilidade, é isso, ao final das contas, a primeira, a última e a única coisa em que creio.”

Não é sem razão que um comentário espirituoso diz que se Lutero foi um cristão que deixou a Igreja, Teilhard foi um pagão que permaneceu nela!

Juntamente com o espectro de Teilhard, podemos dizer que nossa época ainda é dominada pelos espectros de Darwin, Marx, Freud e Jung. Alguns deles, ou todos, podem ser já considerados “história”. Mas sua influência, percebida ou não, deixou marcas profundas em nosso modo de pensar e agir. Os “ismos” que forjaram continuam sendo as peças básicas de nossa “religião” secular. Esta também tem seus defensores “fundamentalistas”, que praticam uma “intolerância religiosa” que nada fica a dever aos piores exemplos do passado. E ai de quem ouse questionar seus “dogmas”!

Pouquíssimas pessoas e instituições não foram afetadas por tais idéias. Em razão de sua influência no mundo ocidental, vale a pena avaliar como afetaram a Igreja Católica. Elas o fizeram especialmente mediante a revolução que foi o concílio Vaticano II. A natureza desta revolução pode ser apreciada pelos ditos e escritos dos papas do período, de João XXIII a Bento XVI. Através deles, percebe-se um programa radical e sem precedentes de rompimento com a tradição. Apesar disso, não suscitou grandes indagações por parte de um público que permanece relativamente passivo. As citações abaixo de Paulo VI mostram claramente quão drástica foi a revolução. Suas palavras estão em contradição com os próprios fundamentos do Cristianismo.

Giovanni Battista Montini (Paulo VI)
(1963-78)

Na audiência geral de 2 Julho de 1969, Montini declarou: “‘se o mundo muda, não deveria a religião também mudar?”

Ao abrir a 4ª. sessão do Vaticano II, em 14 de setembro de 1965, ele disse à assembléia reunida: “Pode a igreja, podemos nós mesmos, fazer outra coisa senão olhar para o mundo e amá-lo?”

É no seu pronunciamento de encerramento do concílio, em 7 de dezembro de 1965, que chegamos ao cerne da questão: “ Uma corrente de amor e admiração fluiu do concílio para o mundo moderno… os valores do mundo foram não apenas respeitados, mas honrados, seus esforços foram aprovados, suas aspirações purificadas e abençoadas.”

Foi neste mesmo pronunciamento que, com particular eloqüência, Montini nos legou o cerne de sua visão: “Todas as riquezas doutrinais do concílio não têm senão um propósito: servir ao homem… Reconheçam pelo menos isso, vós humanistas modernos que renunciaram à transcendência das coisas supremas, pelo menos este mérito e saibam reconhecer nosso novo humanismo: Nós também, Nós mais do que ninguém, também temos o Culto do Homem!”

(parte 2/3)

[1] Uma versão deste ensaio foi publicada em inglês, como capítulo do livro “Men of a Single Book: Fundamentalism in Islam, Christianity and Modern Thought” (World Wisdom, 2010).

[2] Vale lembrar que, de acordo com os Evangelhos, São Pedro negou o Cristo três vezes. Simbolicamente, pode-se talvez dizer que a igreja que Pedro estabeleceu herdou, por assim dizer, essas três negações, as quais podem ser relacionadas às três grandes rejeições, ou revoluções, sobre as quais estamos falando.

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