sábado, 30 de junho de 2007

Espiritualidade dos Índios Americanos

“Eu estou cego e não vejo as coisas destes mundo; mas quando a Luz desce do Alto e ilumina o meu coração, então vejo, porque o Olho do coração tudo vê. O coração é um santuário no centro do qual existe um pequeno espaço onde o Grande Espírito vive, e este espaço é o Olho. É o Olho do Grande Espírito, com o qual Ele vê todas as coisas e através do qual nós O podemos ver. Se o coração não é puro, o Grande Espírito não pode ser visto, e a alma daquele que morre nesta ignorância não pode regressar imediatamente para o Grande Espírito, ela terá de ser purificada através da vivência na terra. Para conheceres o centro do coração onde reside o Grande Espírito terás de ser bom e puro e viver da forma que o Grande Espírito nos ensinou. O homem que for assim puro contém o Universo no espaço do seu coração.”

“Talvez a razão mais importante para a “busca da visão” seja a que nos ajuda a compreender a nossa unidade com todas as coisas, a conhecer que todas as coisas são nossas parentes; e assim, em nome de todas as coisas, rezamos a Wakan Tanka para Ele nos dar o conhecimento da Sua existência, o qual é a origem de todas as coisas e, ainda assim, maior que todas as coisas.”

Black Elk
Oglala Lakota

Retirado e traduzido de “Indian Spirit”, editado por Michael Oren Fitzgerald & Judith Fitzgerald. Publicado por World Wisdom, Inc., 2006.

4 comentários:

  1. Miguel,

    Este texto que citas vem confirmar aquilo que já há muito penso sobre a essência da “Verdade” que constitui a base da Tradição (Sabedoria Perene) e as diferentes maneiras como o ser humano procura expressá-la, de acordo com a sua experiência pessoal, a sua cultura, etc. Enquanto essa Verdade é imutável e não varia com o tempo ou localização geográfica, o mesmo não acontece com o seu modo de transmissão, que pode variar na forma como é expressa, embora a sua essência permaneça a mesma.
    Se não vejamos: quando o índio americano Black Elk afirma que “o Olho do coração tudo vê”, não estará a dizer o mesmo que a raposa quando revela o seu segredo ao Principezinho (St. Exupéry) “Só se vê bem com os olhos do coração. O essencial é invisível aos olhos” ?
    Em seguida, quando se refere ao “Olho do Grande Espírito, com o qual vê todas as coisas”, não se pode estabelecer um paralelismo entre este “Olho” e o “Olho divino de Horus” da tradição egípcia ou “Olho de Shiva” da tradição indu?
    Mais adiante, quando diz que “ Se o coração não é puro, o Grande Espírito não pode ser visto”, (e admitindo que a palavra coração é, neste contexto, sinónimo de “olho”), não quererá dizer o mesmo que Jesus, quando disse "A lâmpada do corpo é o olho. Se o olho é são (puro), o corpo inteiro fica iluminado. Se o olho está doente, o corpo inteiro fica na escuridão”? (Mt 6,22) .
    E a frase “Por forma a conheceres o centro do coração onde reside o Grande Espírito terás de ser bom e puro e viver da forma que o Grande Espírito nos ensinou.” não traduz a mesma ideia da conhecida frase do Sermão da Montanha “ Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus."(Mt 5, 8)?
    Por fim, a frase “Talvez a razão mais importante para a “busca da visão” seja a que nos ajuda a compreender a nossa unidade com todas as coisas, a conhecer que todas as coisas são nossas parentes”, não se assemelha à essência do holismo, que visa a compreensão da unidade e inter-relação de todas as coisas?

    Bem hajas Miguel, por trazeres este texto, cuja “essência “ se encontra certamente contida em outros textos de outros autores, além dos que cito. Uma forma explêndida para mostrar que a verdade se pode esconder sob diversas roupagens (diferentes formas de linguagem), permanecendo sempre a mesma…

    E já que falei em Saint Exupéry, termino com uma frase dele (extraída do livro “Cidadela”), que utilizei como nota de abertura no primeiro livro que escrevi, já lá vão mais de vinte anos:

    “ (…) Perscrutei com verdadeira atenção as relações que intercedem entre os homens e vim a descobrir os perigos da inteligência, que acredita que a linguagem apreende. E as respostas nas disputas. Porque não é pela via da linguagem que eu hei-de transmitir o que em mim existe. O que em mim existe não há palavra que o diga. Eu só o posso significar na medida em que tu já o compreendes por outros caminhos que não a palavra. Pelo milagre do amor ou porque, por sermos filhos do mesmo Deus, tu te pareces comigo. (…)

    Grande Abraço!

    Lucília

    ResponderEliminar
  2. Olá Lucília!
    É de facto espantoso o grau de convergência que todas as tradições primordiais apresentam relativamente ao entendimento e à transmissão da Verdade (convergência essa que não poderia deixar de existir face ao carácter uno da Verdade), conforme ilustras com exemplos tão esclarecedores!

    As “nações primeiras” (não lhes chamo “povos primitivos” propositadamente para evitar que mentes contaminadas com a teoria evolucionista interpretem nessa expressão um conjunto de homens-macacos retrógrados, básicos e incapazes), com a sua vivência espiritual profunda, apresentam a capacidade de revelar a Verdade com uma simplicidade inspiradora, utilizando para tal “contos” extraordinários que viajam no tempo às costas da tradição oral, como é o caso do que o Miguel agora apresenta.

    Recentemente, em viagem pelo Canadá, deparei-me com museus e galerias de arte de uma destas “nações primeiras” que habitaram (e ainda habitam, embora com grandes dificuldades de adaptação ao mundo moderno) a região árctica e que ofereceram aos arqueólogos as mais antigas provas “consistentes” da existência humana naquela região: Os Inuit. Para além da herança cultural, artística e espiritual, retive com especial curiosidade o significado do vocábulo Inuit na sua língua original - “os seres humanos” -, que corresponde ao plural do vocábulo Inuk - “a pessoa, o individuo”.
    Segundo me explicou uma arqueóloga local, estes “seres humanos” viriam mais tarde a ficar conhecidos como “esquimós”, ou seja, os “comedores de carne crua”. Para além de ter ficado impressionado com o significado do nome que me era mais familiar, fiquei agradado com o facto do primeiro conceito começar a ser preferido actualmente e esperançoso que a visão do mundo destas nações primeiras, à semelhança da visão do Black Elk e do Oglala Lakota, voltem a ser partilhadas por todos os “Inuit” deste planeta.

    Abraços
    Nuno

    ResponderEliminar
  3. Obrigado Lucília, é um prazer enorme ser o seu comentário o primeiro ao Sabedoria Perene.

    A escolha do trecho citado do Principezinho foi excelente. Na minha opinião, o aspecto que considero mais importante dos textos de Black Elk, grande líder espiritual do povo Lakota, é sem dúvida a referência ao coração, tão fundamental quando estudamos profundamente as tradições espirituais das várias religiões.

    Não vou para já falar sobre a forma como podemos interpretar a convergência das várias tradições, sendo esse um assunto que será repetidamente abordado neste blog e que procurarei, dada a sua complexidade, ir introduzindo aos poucos. Falo obviamente da Sophia Perennis, sendo importante referir desde já, que não se trata de qualquer ecumenismo religioso, mas sim de uma busca da “Unidade Transcendente” no interior das várias religiões.

    Concluo com uma outra referência ao coração, neste caso de um dos mais brilhantes estudiosos da tradição islâmica no ocidente, Titus Burckhardt:

    De todas as faculdades humanas, o coração (al-qalb) é nuclear, sendo o “lugar” onde as Realidades Transcendentes entram em contacto com o Homem; é o órgão da intuição e da Revelação Divina (attajallî).

    Um abraço

    ResponderEliminar
  4. Olá Nuno e Miguel!

    O que mais me fascina nesta troca de ideias e de conhecimentos é precisamente a possibilidade de pormos em evidência "o grau convergência que todas as tradições primordiais apresentam", como diz o Nuno. Por isso, e ainda em relação ao simbolismo do coração nessas tradições (não é por acaso que a forma de um coração está representado no logotipo do CHI!), acrescento aquilo que se encontra escrito no primeiro livro da nossa Associação:

    Na Índia, o coração é considerado como Brahmapura, a morada de Brahma.

    O duplo movimento (sístole e diástole) do coração faz dele também o símbolo do duplo movimento de expansão e contracção do universo. É por isso que é também Prajapati; ele é Brahma na sua função produtora, é a origem dos ciclos do tempo.

    O coração, ensina o mestre taoista Liu-Tsu, é o senhor da respiração. O que pode ser explicado pela simples analogia entre o ritmo cardíaco e a respiração, identificados nas suas funções de símbolos cósmicos.

    Plutarco utiliza a mesma linguagem: "o sol difunde a luz como o coração difunde o sopro", podendo acrescentar-se que, no Taoismo, o sopro (Ki ou Chi) é a luz; é o espírito.

    Um enorme CHI para ambos!

    ResponderEliminar