segunda-feira, 16 de julho de 2007

Tradição e Modernidade

Este texto é uma tradução de um trecho de um artigo de Rusmir Mahmutćehajić, intitulado "With the other", publicado no Sophia - The Journal of Traditional Studies, Vol. 9, Nº. 2 em 2003 e reeditado no livro “The Essencial Sophia”. Este artigo foca as relações entre seres humanos, analisando em profundidade a origem dos actuais receios pela diferença. O trecho traduzido aborda o tema da Tradição e a sua oposição à modernidade, dando uma contribuição importante para a sua compreensão.

Rusmir Mahmutćehajić é um dos intelectuais Bósnios mais activos. Foi eleito vice presidente do governo da Bósnia-Herzegovina em 1991, tendo um papel preponderante nas tentativas de obter reconhecimento internacional para este país. Demitiu-se, no entanto, de todas as funções governamentais no final de 1993, em protesto contra as decisões políticas que pretendiam uma Bósnia dividida em grupos étnicos. É fundador do Fórum Internacional Bósnio, uma organização não governamental que une alguns dos intelectuais do país na tentativa de criar e reforçar uma sociedade civil fundada em diálogo e confiança. É autor de numerosos trabalhos em Bósnio sobre assuntos relacionados com a tradição e os seus recentes livros: “Bosnia the Good: Tolerance and Tradition” e “Sarajevo Essays” foram traduzidos para a língua inglesa.


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Toda a tradição – ou mais precisamente, em toda a manifestação da Tradição imutável – podem ser distinguidos três níveis: a verdade e a sua concomitante, a doutrina; o caminho e o seu concomitante, o ritual; e a virtude e a sua concomitante, a potencialidade sagrada do indivíduo. A verdade é independente do caminho que a confirma; assim, sendo apenas a verdade una, existem uma multiplicidade de caminhos. A verdade não é contingente em nenhum destes caminhos, mas todos os caminhos que manifestam a verdade são-lhe contingentes como princípio supremo. A verdade manifesta o caminho e ordena-o para cada indivíduo e para a sua totalidade. A Virtude é o que confirma a aceitação pessoal e a perseguição do caminho; é expressa como humildade e generosidade. O que é estabelecido numa ordem descensional, da verdade ao caminho e deste à virtude, é transformada, pela humildade e generosidade, em ascensão.

O indivíduo recebeu tudo o que existe ficando, assim, em dívida com a verdade, razão pela qual anseia pela retribuição, o que significa o retorno à verdade e à orientação para ela. A Recepção transforma-se, assim, em retribuição, uma vez que o ser individual[1] constitui a totalidade do ser, tendo Deus reunido nele todos os nomes dispersos pelo cosmos. A sua submissão compreende toda a submissão de todos os mundos, estando, no entanto, fundada na liberdade, não existindo qualquer obrigatoriedade na entrega ou retribuição da dívida. É suposto que cada indivíduo recorde o acordo original estabelecido com Deus e se submeta a Ele num acto de confiança. Esta é uma submissão que surge de livre vontade, não imposta pela vontade da Verdade. É oferecida e aceite como uma escolha entre duas opções, sendo diferente da resposta de todos os restantes fenómenos existentes nos mundos: “Nós oferecemos confiança para os céus e para a terra e para as montanhas, mas eles recusaram-na e tinham receio dela; e os homens aceitaram‑na” (Corão 33:72). E esta é uma oferta que, caso rejeitada, não resulta em dívida para o Outro. Se aceite, existe uma dívida que resulta da liberdade de escolha e da confiança no Outro, sendo oferecida com confiança. Confiar nela é, assim, a liberdade de escolha de Deus e do indivíduo. O indivíduo pode esquecê-la ou quebrar o voto de fidelidade; mas Deus não o fará. Este é o significado da Sua Manifestação como o Misericordioso: mesmo o facto do indivíduo esquecer ou quebrar o voto de fidelidade, a ira de Deus nunca poderá ser superior à Sua misericórdia.

A aceitação desta verdade define o homem como diferente de tudo o resto na totalidade da existência – uma aceitação que, resultante de uma livre vontade, se manifesta como humildade: “Não vistes vós como se prostram perante Deus todos os que estão nos céus e na terra, o sol e a lua, as estrelas e as montanhas, as árvores e as bestas, e muitos da humanidade?” (Corão 22:18). Apesar da submissão dos mundos não incorrer em dívida perante Deus, a submissão do homem incorre em dívida para Ele. Assim, a humildade deriva da vontade e, através dela, é atingido o conhecimento e a fé, e com estes a beleza e o amor. Se um ser se submete de livre vontade, ganha essência e conhecimento – dois modos a partir dos quais a unicidade se manifesta. Na Verdade, ser e conhecimento são um; e assim ser e conhecimento reflectem a Verdade:

O animal não pode abandonar este estado, enquanto que o homem pode; na realidade, só aquele que é um ser humano completo poderá abandonar o sistema fechado da individualidade; através da participação no Ser uno e universal. Aí reside o mistério da vocação humana: aquilo que o homem “pode”, ele “deve”; neste plano, poder fazer corresponde a ter que fazer, dado que a capacidade pertence a uma substância positiva. Ou ainda, o que traduz a mesma ideia: saber é ser; saber O que é e O que só por Si é. [Frithjof Schuon, Roots of the Human Condition]

A sociedade é iluminada pela abertura do ser individual ao Absoluto. Mas, se o contexto social do ser individual se torna mais importante que a abertura do individual ao Absoluto, a sociedade transforma-se na magnitude e na medida que determina o indivíduo. Desta forma, “o servo dá à luz o seu senhor”: a magnitude e a perfeição da criação perdem a sua clareza, e a fantasia do poder obriga a que os seres humanos se esforcem para confirmar a ilusão da libertação da verdade transcendental através da construção de “grandes edifícios” e da alteração da forma original do mundo criado. Esta é uma inversão de valores através da qual o indivíduo se proclama superior a tudo o que o rodeia, e o mundo exterior como menor e mais fraco que ele. Desta forma, a atitude da humanidade em relação ao mundo exterior revela o seu entendimento da individualidade como sujeito e o cosmos como objecto, como expressão das relações entre o maior e o menor, entre o poderoso e o fraco. Se esta dualidade entre o ser individual e o cosmos se mantém restringida ao quantificável, não poderá ter um Princípio infinito, quer no mundo exterior, quer no ser individual. Isto implica excluir o Absoluto dessa relação externa e, apesar de omnipresente, simultânea e totalmente próxima e distante dos fenómenos – em termos filosóficos, simultaneamente imanente e transcendente.

A consequência resultante é a de que o conhecimento e o ser não podem ser idênticos. O pequeno transformado no grande e vice-versa. O externo e vasto parece assim estar incompleto e, como resultado, aberto a rectificação. Desta forma, a separação entre o ser individual e o cosmos torna-se determinante do potencial humano. O conhecimento da separação aumenta, mas com esse conhecimento a própria separação também é alargada. A ilusão da magnitude e do poder humano vai progressivamente preenchendo o ser individual com a sensação de suficiência e a expectativa de que o mundo se irá acomodar a ele, e será subordinado através da acção, não da misericórdia. Isto resulta na perda da ligação com o Princípio e, em consequência, reduz o indivíduo a um conjunto de fenómenos no mundo e no ser individual, com o qual ficamos aprisionados.

Mas cada uma das tradições sagradas aponta para o fim oposto: provocar o reconhecimento do indivíduo da sua natureza original, oferecer-lhe um exemplo perfeito e orientá-lo para o retorno à unicidade do princípio primeiro. Para a tradição sagrada, tudo o que é exterior a isto é “associação com Deus” – isto é, paganismo. Tudo o que não é a verdade é falsidade: se os fenómenos nos mundos exteriores e nos seres individuais não são sinais de Deus, eles surgem-nos como ídolos que exigem a nossa submissão e serviço (enquanto que a verdadeira sabedoria reside na capacidade de reconhecer as causas nos fenómenos e vice-versa). Esta separação do Princípio desloca as atitudes humanas para o futuro e impede-o de ver a Hora como certeza superior. O Homem é, desta forma, privado da inteligência através da qual o princípio do sobrenatural determina a sua própria humanidade. Sem o sobrenatural, a presença do incriado no centro do homem, ele perde todo o seu potencial original e fica sujeito à incerteza da mera expectativa. Os fenómenos no mundo e no ser individual transformam-se em deuses, exigindo a deformação e a negação do original, o criado; e o ser individual procura esta afirmação na arrogância ao invés de na humildade.

Mas a Hora ainda é o potencial humano supremo, a manifestação da eternidade. Não pode existir nem pensamento nem iluminação sem a Hora. Mesmo a ilusão da magnitude no mundo, em redor do ser individual, é a realidade da doutrina, ritual e virtude relativa à Hora. A lembrança da Hora significa a renovação da ligação com Deus, pois a Hora contém o acordo com Ele – isto significa a viragem para a presença do Ser e a Sua manifestação no contingente, onde a Sua presença no mundo é transformada no reconhecimento da Beleza como revelação Divina. O concomitante da Beleza é o Amor, o desejo de união. E o Amor é o caminho para Deus, pois Ele é belo.

A Tradição restaura ou eleva o ser individual para a sua verdadeira estatura original, através da purificação, do aperfeiçoamento e da unificação. Durante o processo de purificação, o ser individual reconhece e renova a sua dívida para com o princípio primeiro, o qual é o próprio centro do seu ser – incriado e incriável, e como tal, incorrupto e incorruptível. Ele distingue assim o irreal do real e aceita o Real como a sua natureza incriada. Esta aceitação está ligada à aproximação do “bom exemplo” e da unicidade – o que significa, com a aproximação do uno e único Deus, pois não existe deus para além de Deus.

[1] Esta foi a tradução adoptada para o termo inglês “self”, o qual apresenta ainda a forma “Self”, nesse caso traduzido como Ser (Atman). A palavra “ser” aparece ainda como tradução da palavra inglesa “being”.

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