domingo, 14 de dezembro de 2008

A universalidade da arte sagrada

Aproveitámos, numa anterior publicação, a recente abordagem da arte neste espaço para apresentar um autor fundamental e ilustre perenialista que ainda não constava entre as grandes personalidades que temos vindo a introduzir e dar a conhecer através das suas obras. Trata-se de Titus Burckhardt, eminente metafísico e estudioso da arte tradicional, cuja importância se deve equiparar à de Guénon, Coomaraswamy e Schuon.

Apresentado o autor, publica-se agora uma tradução de um ensaio seu, A Universalidade da Arte Sagrada, publicado inicialmente na sua obra, Sacred Art in East and West, e republicado na obra a si dedicada, The Essential Titus Burckhardt, editada por William Stoddart e publicada pela World Wisdom em 2003.

Neste ensaio, Burckhardt, não só nos oferece uma clara exposição de como deve ser entendida a arte sagrada, como, através de uma demonstração da sua erudição, viaja a diferentes mundos tradicionais para nos mostrar como esta arte se manifesta em formas muito distintas, mantendo, ao mesmo tempo, a sua “Essência Divina”.


Quando os historiadores de arte aplicam o termo “sagrado” a todas as obras que tenham um tema religioso, escapa-lhes o facto da arte ser essencialmente forma. Uma arte não pode ser considerada sagrada pelo simples facto dos seus temas derivarem de verdades espirituais; a sua linguagem formal deve também derivar da mesma fonte.

Este não é, de forma alguma, o que ocorre em artes religiosas tais como a dos períodos da Renascença e do Barroco, as quais, no que respeita ao estilo, em nada diferem da arte fundamentalmente profana desses períodos; nem os seus temas, que retiram da religião de uma forma totalmente exterior e literária, nem os seus sentimentos devocionais com que é muitas vezes permeada, nem mesmo a nobreza da alma que ocasionalmente aí encontra a sua expressão, são suficientes para lhe conferir um carácter verdadeiramente sagrado. Nenhuma arte merece o epíteto de sagrada a não ser que as suas próprias formas reflictam a visão espiritual característica de uma determinada religião.

Toda a forma “transporta” uma qualidade particular do ser. O tema religioso de uma obra de arte pode estar meramente sobreposto a uma forma, caso em que lhe faltará toda a relação com a “linguagem” formal da obra, como é demonstrado pela arte Cristã desde a Renascença. Tais produções são meras obras de arte profanas com temas religiosos. Por outro lado, não existe arte sagrada que seja profana na sua forma, pois existe uma rigorosa analogia entre a forma e o espírito. Uma visão espiritual encontra necessariamente a sua expressão numa dada linguagem formal. Se esta linguagem foi esquecida – com o resultado que uma, assim designada, arte sagrada retira as suas formas a partir de todo o tipo de arte profana – significa que uma visão espiritual das coisas não mais existe.

Seria infrutífero procurar desculpar o estilo proteiforme de uma arte religiosa, ou o seu carácter impreciso e mal definido, com base na universalidade do dogma ou da liberdade do espírito. Apesar de reconhecido que a espiritualidade em si é independente da forma, isto não implica que possa ser expressa e transmitida por qualquer tipo de forma. Através da sua essência qualitativa, a forma tem um lugar na ordem sensorial análogo ao da verdade na ordem intelectual; esta é a importância da noção Grega eidos. Do mesmo modo que uma forma mental, tal como um dogma ou uma doutrina, pode ser uma reflexão adequada, apesar de limitada, de uma Verdade Divina, também uma forma sensorial pode restaurar uma verdade ou uma realidade que transcende os planos das formas sensoriais e do pensamento.

Cada arte sagrada é, assim, fundada numa ciência de formas ou, por outras palavras, no simbolismo inerente às formas. Deverá ser mantido em mente que um símbolo sagrado não é apenas um sinal convencional; ele manifesta o seu arquétipo em virtude de uma determinada lei ontológica. Como observou Ananda Coomaraswamy, um símbolo sagrado é, num certo sentido, aquilo que expressa. Por esta razão, o simbolismo tradicional nunca é desprovido de beleza. Em relação a uma visão espiritual do mundo, a beleza de um objecto não é mais do que a transparência das suas limitações existenciais.

Uma arte digna desse nome é bela porque é verdadeira. Não é possível nem necessário que cada artista ou artesão envolvido na arte sagrada seja consciente da Lei Divina inerente às formas; ele saberá apenas alguns dos seus aspectos, ou certas aplicações que surgem a partir dos limites e regras do seu ofício. Estas regras irão permitir pintar um ícone, moldar um vaso sagrado, ou praticar caligrafia de uma forma liturgicamente válida, sem ser necessário que ele conheça o significado último dos símbolos com que trabalha. É a tradição que transmite os modelos sagrados e as regras de trabalho e, dessa forma, garante a validade espiritual das formas. A tradição possui um poder secreto que é comunicado a uma civilização e que determina mesmo aquelas artes e ofícios cujos objectivos imediatos não incluem nada de sagrado. Este poder cria o estilo de uma civilização tradicional. Um estilo – algo que não pode ser limitado a partir do exterior – é perpetuado sem dificuldade, de uma forma quase orgânica, apenas pelo poder do espírito que qual é animado.

Um dos mais tenazes preconceitos modernos é aquele que se opõe às regras impessoais e objectivas de uma arte, resultante do receio de reprimir o génio criativo. Na realidade, não existe qualquer obra tradicional – uma governada por princípios imutáveis – que não consagre uma significante expressão de alegria criativa na alma; o individualismo moderno, por outro lado, produziu, à excepção de algumas obras de génio apesar de espiritualmente estéreis, toda a fealdade – a infindável e desesperada fealdade – das formas que preenchem a “vida quotidiana” dos nossos tempos.

Uma das condições fundamentais para a felicidade é saber que tudo o que fazemos tem um significado eterno; mas quem, nos tempos actuais, pode ainda conceber uma civilização em que todos os seus aspectos vitais se encontram desenvolvidos “à imagem dos Céus”? Numa sociedade teocêntrica, a mais humilde actividade participava nesta graça celestial.

O objectivo último da arte sagrada não é evocar sentimentos ou comunicar impressões; ela é um símbolo e, como tal, utiliza meios simples e primordiais. Não pode, em caso algum, ser mais do que alusiva, o seu real objectivo inefável. É de origem angélica, pois os seus modelos reflectem realidades supra-formais. Ao recapitular a criação – a “arte Divina” – em parábolas, demonstra a natureza simbólica do mundo e liberta o espírito humano do seu apego a crus e efémeros “factos”.

A origem angélica da arte é explicitamente formulada pela tradição Hindu. De acordo com o Aitareya Brâhmana, toda a obra de arte é alcançada pela imitação da arte dos devas, “seja um elefante em terracota, um objecto de bronze, uma peça de vestuário, um ornamento de ouro, ou uma carroça”. As lendas Cristãs que atribuem uma origem angélica a certas imagens milagrosas exemplificam a mesma ideia.

Os devas não são mais do que as funções particulares do Espírito Universal, expressões permanentes da Vontade de Deus. De acordo com uma doutrina comum a todas as civilizações tradicionais, a arte sagrada deve imitar a Arte Divina, mas deve ser claramente compreendido que tal não implica que a criação Divina concluída, o mundo tal como o vemos, deva ser copiado, pois tal seria pura pretensão. Um “naturalismo” literal é estranho à arte sagrada. O que deve ser copiado é a forma como o Espírito Divino actua. As suas leis devem ser transpostas para o domínio restrito em que o homem trabalha como homem, ou seja, no seu ofício.

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Em nenhuma doutrina tradicional a ideia de Arte Divina goza de um papel tão fundamental como na doutrina Hindu. Pois Mâyâ é, não só o misterioso Poder Divino que faz com que o mundo pareça existir exteriormente à Realidade Divina e, como tal, sendo a origem de toda a dualidade e ilusão; como também é, no seu aspecto positivo, a Arte Divina que produz todas as formas. Por princípio, Mâyâ não é mais do que a possibilidade do Infinito em Se limitar e, assim, se tornar objecto da Sua própria “visão”, sem que a Sua infinidade não seja, por essa razão, limitada. Desta forma, Deus manifesta-Se, e não Se manifesta no mundo. Ele, em simultâneo, expressa-Se e mantém-Se silencioso.

Tal como, em virtude da sua Mâyâ, o Absoluto objectiva certos aspectos de Si próprio, ou certas possibilidades contidas em Si, e as determina por uma distinta visão, também o artista na sua obra realiza certos aspectos de si próprio. Ele projecta-os para além do seu ser indiferenciado. E, na medida em que a sua objectivação reflicta as profundezas do seu ser, tomará um carácter puramente simbólico, ao mesmo tempo que o artista se tornará cada vez mais consciente do abismo que separa a forma, reflectora da sua essência, daquilo que aquela essência realmente é na sua intemporal plenitude. O artista tradicional sabe: esta forma sou eu, no entanto, eu sou infinitamente mais do que isto, pois a sua Essência mantêm-se o puro Conhecedor, a Testemunha que nenhuma forma pode alcançar; mas ele sabe que é Deus que é expresso através da sua obra, para que a obra transcenda, por sua vez, o fraco e frágil ego do homem.

Aqui reside a analogia entre a Arte Divina e a arte humana: nomeadamente na realização do eu através da objectivação. Para que esta objectivação tenha significado espiritual, e não apenas por uma vaga introversão, os seus meios de expressão devem nascer de uma visão essencial. Por outras palavras, não deverá ser o “ego”, a raiz de toda a ilusão ignorância do eu, que arbitrariamente escolhe esses meios; eles devem ser derivados a partir da tradição, da formal e “objectiva” revelação do Ser Supremo, que é o “Si” de todos os seres.

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Da mesma forma, do ponto de vista Cristão, Deus é “artista” no mais exalto sentido da palavra, pois Ele criou o homem “à Sua própria imagem” (Géneses: 1,27). Para além do mais, uma vez que a imagem compreende não só a semelhança ao seu modelo, mas também uma quase absoluta dissemelhança, não pode não ser corrompido. A reflexão divina no homem foi perturbada pela queda de Adão; o espelho foi manchado; e, ainda assim, o homem não pode ser completamente posto de lado; pois enquanto a criatura é sujeita às suas próprias limitações, a Plenitude Divina não é sujeita a qualquer tipo de limitação. Isto implica que essas limitações não podem, na realidade, ser opostas à Plenitude Divina, a qual Se manifesta como Amor ilimitável, característica que requer que Deus, “pronuciando-Se” como Palavra Eterna, tenha que descer a este mundo e, dessa forma, assumir os contornos perecíveis da imagem – natureza humana – e, assim, restaurar-lhe a sua beleza original. No Cristianismo, a imagem divina par excellence é a forma humana de Cristo. A arte Cristã tem, assim, um único propósito: a transfiguração do homem, e do mundo que depende do homem, pela sua participação em Cristo.

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Aquilo que a visão Cristã das coisas alcança através de uma espécie de venerada concentração na Palavra incarnada em Jesus Cristo, é transposta, na perspectiva Islâmica, no universal e no impessoal. No Islão, a Arte Divina – e de acordo com o Corão, Deus é “artista” (musawwir) – é, em primeiro lugar, a manifestação da Unidade Divina na beleza e na regularidade do cosmos. A Unidade é reflectida na harmonia do múltiplo, na ordem e no equilíbrio; a beleza encerra em si todos esses aspectos.

Atingir a Unidade a partir da beleza do mundo – isto é sabedoria. Por esta razão, o pensamento Islâmico liga, necessariamente, a arte à sabedoria; aos olhos de um Muçulmano, a arte é essencialmente fundada na sabedoria, ou “ciência”, ciência esta que não é mais do que a formulação da sabedoria em termos temporais. O propósito da arte é permitir ao ambiente humano – o mundo na medida em que se encontra moldado pelo homem – a participação na ordem que de forma mais directa manifesta a Unidade Divina. A arte esclarece o mundo; ajuda o espírito a se desprender da perturbante multiplicidade de coisas, para que possa ascender em direcção á Unidade Divina.

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Transpondo a noção de “Arte Divina” para o Budismo – que evita a personificação do Absoluto – ela aplica-se à miraculosa, e mentalmente inexaurível, beleza de Buddha.


Enquanto que nenhuma doutrina interessada a Deus pode escapar, na sua formulação, ao carácter ilusório dos processos mentais, o que atribui os seus próprios limites ao ilimitado e as suas próprias formas conjecturais ao informe, a beleza de Buddha irradia um estado de ser que não é limitado por qualquer processo mental. Esta beleza é reflectida na beleza do Lotus; é perpetuado ritualmente na imagem pintada ou esculpida de Buddha.

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De acordo com o ponto de vista Taoista, ser uma Arte Divina é essencialmente ser a arte de transformação: toda a natureza está constantemente a ser transformada, sempre de acordo com as leis dos seus ciclos; os seus contrastes giram em torno de um único centro que ilude a apreensão.

No entanto, quem perceber este movimento circular é capaz de reconhecer o centro que constitui a sua essência. O propósito da arte é conformar-se a este ritmo cósmico. A mais simples fórmula que atesta a mestria na arte consiste na capacidade para traçar um círculo perfeito num única pincelada e, desta forma, identificar-se implicitamente com o seu centro, sem que o próprio centro esteja explicitamente expresso.

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Todos estes aspectos fundamentais da arte sagrada estão presentes, de uma forma ou de outra, em cada uma das cinco grandes religiões mencionadas, pois cada uma possui em essência a totalidade da Verdade e Graça Divina, para que cada uma seja capaz de, em princípio, manifestar todas as possíveis formas de espiritualidade. No entanto, uma vez que cada religião é necessariamente dominada por um ponto de vista particular que determina a sua “economia” espiritual, as suas obras de arte – que são necessariamente colectivas e não individuais – irão reflectir, de acordo com o seu estilo, este ponto de vista e esta “economia” espiritual.

Adicionalmente, a forma, pela sua própria natureza, é incapaz de exprimir uma coisa sem excluir outra, porque a forma limita o que expressa e, assim, exclui outras possibilidades de expressão do seu próprio arquétipo universal. Esta lei aplica-se naturalmente a todos os níveos de manifestação formal, e não apenas à arte; assim, as várias Revelações Divinas, nas quais as religiões são fundadas, são também mutuamente exclusivas quando consideradas em termos dos seus contornos formais, mas não na sua Essência Divina, que é uma. Aqui, mais uma vez, a analogia entre a “Arte Divina” e a arte humana é evidente.

Não existe qualquer arte sagrada que não dependa de um aspecto de metafísica. A ciência da metafísica é, ela própria, ilimitada, dado que o seu objecto é infinito. Como não é possível descrever aqui todos os relacionamentos que ligam as diferentes doutrinas metafísicas neste domínio, o leitor é remetido para outros livros que apresentam as premissas nas quais este ensaio é baseado. Eles cumprem essa tarefa através da exposição, numa linguagem acessível ao leitor ocidental moderno, a essência das doutrinas tradicionais do Oriente e do Ocidente Medieval. Referimo-nos em particular aos escritos de René Guénon e Frithjof Schuon.

2 comentários:

  1. Muito bom o vosso traballho. Meus parabéns. (Alberto Queiroz)

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  2. Muito obrigado.
    É sempre com grande alegria que recebemos palavras de incentivo.
    Um abraço.

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