O trecho abaixo apresentado constitui uma dupla estreia neste espaço de divulgação da escola de pensamento tradicionalista/perenialista. A do notável Lorth Northborne, autor do extraordinário A Agricultura e o destino humano, cuja versão final e integral constará no próximo número da Revista Sabedoria Perene, e também a do tradutor do respectivo artigo, Sandro Faria, a quem estamos muito gratos pelo importante contributo.
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A Crosta desta terra experimenta periodicamente convulsões de várias naturezas e escalas. No decurso das maiores, continentes existentes são submersos e novos emergem. Entre convulsões, poderão existir idades de gelo e idades de chuva e de aquecimento que afectam a totalidade, ou apenas partes, da superfície do globo terrestre. Todas estas ocorrências, gigantescas e avassaladoras que são do ponto de vista humano, são incidentes triviais numa série de contínuas alterações que ocorrem numa escala cósmica, surpreendem a nossa imaginação pela sua imensidade e duração e reduzem todos os fenómenos terrestres a uma insignificância quantitativa. Em termos quantitativos, a vida humana é duplamente insignificante, pois desempenha um tão pequeno papel na história geológica do planeta, o qual não pode ser considerado separadamente do sistema solar nem este último separadamente do resto do universo.
Assim, se a vida humana tem algum significado de todo, não é no domínio da quantidade mas sim no domínio da qualidade. Valerá somente a pena preservar a vida humana em virtude do seu conteúdo qualitativo ou potencialidade qualitativa, ainda que a mesma tenha um aspecto quantitativo inerente, o qual não pode ser preservado a menos que se satisfaçam os seus requisitos quantitativos. A satisfação desses requisitos é justificada apenas até ao necessário para o desenvolvimento das potencialidades qualitativas da humanidade.
A maior dificuldade que surge no decorrer desta afirmação é que a natureza dessas potencialidades qualitativas não pode ser definida com precisão. Apenas a quantidade é mensurável, a qualidade como tal pode ser enunciada mas não medida. A qualidade é eternamente o que é, ou é percebida pelo que é ou não é percebida de todo. Nada pode expressar a sua natureza a quem não a percebe directamente. No entanto há que falar sobre qualidade, uma vez que é a chave para tudo; sem ela não há nada senão o caos da indistinção, a abstracção do número puro. Ao discutir qualidade, o mais que se pode fazer é comparar coisas que possuem uma qualidade com coisas que não a possuem. Ainda assim, a comparação é significativa apenas para alguém que conhece por experiência o que a qualidade em questão é.
Isto é tanto ou mais verdade para a qualidade, ou qualidades, que podem ser chamadas de “espirituais”. A palavra espiritual é inevitavelmente mal aplicada ou mal interpretada por qualquer um cujos limites da realidade coincidem com os limites da mensurabilidade. O mensurável é, em última análise, tudo o que pode ser contido nos poderes analíticos e descritivos do cérebro humano. Se não houvesse nada que transcendesse esses poderes, toda a qualidade poderia em princípio ser reduzida a quantidade. A distinção qualitativa essencial do homem reside nas suas potencialidades espirituais.
As convulsões terrestres envolvem a destruição periódica de vidas, humanas ou outras. Isto pode surgir-nos como algo terrível e tornar difícil compreender como é que um Deus todo misericordioso pode ter ordenado os acontecimentos desta forma. Esquecemo-nos que a lei da vida e da morte é aplicável não individualmente a criaturas vivas mas a tudo o que, por associação com a quantidade, é conferido uma forma, universos e o que fica para baixo. Tudo deve perecer; somente o Espírito, qualidade pura, é imperecível e sempre inteiramente ele próprio. Quer como indivíduos, quer como sociedades humanas, somos perecíveis. O Homem sempre soube isto, mas ao mesmo tempo também sempre considerou que deve haver, por assim dizer, algo por detrás de tudo, algo imperecível e maior que ele próprio. [1] Aceitar a perecibilidade e a dependência de nós mesmos e de todo o universo das formas, com toda a humildade que essa aceitação implica, é um prelúdio necessário para o entendimento da nossa situação, e tal entendimento é indispensável para uma actuação efectiva. No presente, os nossos alcances no domínio do quantitativo e do perecível parecem ter obscurecido a nossa dependência do qualitativo e do imperecível, confundindo por conseguinte o nosso sentido de direcção e frustrando muitas acções bem-intencionadas.
O que é que tem tudo isto a ver com agricultura? Tudo, na realidade; pela dupla razão de que o solo, resultado das convulsões terrestres, providencia a sua fundação física e que a relação da qualidade para com a quantidade, não apenas nos produtos finais da agricultura mas também na nossa abordagem aos seus problemas, envolve-nos a todos mais do que normalmente pensamos.
Do ponto de vista estrito da biologia e da economia, a agricultura é a fundação da vida humana no planeta e assim tem sido desde que o aumento da população ultrapassou as potencialidades de produção de alimentos da Natureza virgem. Uma vez estabelecida, torna-se na principal expressão do relacionamento entre o homem e a Natureza. Todas as restantes actividades humanas surgem como ramificações desta relação e são dela dependentes. Poderíamos seguir sem elas mas não sem a agricultura. Consequentemente, afecta-nos mais directamente que qualquer outra actividade; a qualidade das nossas vidas e a nossa posição é reflexo dela, e a sua qualidade reflecte-se em nós.
Esta verdade auto-evidente tem vindo a ser obscurecida pelas atracções e distracções do desenvolvimento industrial, mas surge-nos novamente, agora no seu aspecto quantitativo, devido ao rápido crescimento da população mundial. Este incremento parece acompanhar sempre uma revolução industrial. [2] Num período de tempo incrivelmente curto, o progresso industrial passou a ser o objectivo de quase todas as nações; e, uma vez estabelecido, um objectivo não é prontamente abandonado, especialmente quando a riqueza é o seu alvo e esta parece alcançável. Embora nos encontremos perante um risco de fome mundial dentro de poucas décadas, continuamos a dedicar uma proporção cada vez maior do nosso dinheiro e energia ao desenvolvimento industrial, cujas exigências são insaciáveis. A indústria gera constantemente novos crescimentos, que por sua vez criam novas oportunidades, mas com elas também novos desejos e novas necessidades. [3]
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[1] Se não fosse assim, tanto ele próprio como o mundo perecível das formas seriam inteiramente irreais, uma mera ilusão passageira, sem causa e sem objectivo. Não só um tal conceito é contradito pela nossa consciência de existência mas é também, em última análise, desprovido de significado.
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A Crosta desta terra experimenta periodicamente convulsões de várias naturezas e escalas. No decurso das maiores, continentes existentes são submersos e novos emergem. Entre convulsões, poderão existir idades de gelo e idades de chuva e de aquecimento que afectam a totalidade, ou apenas partes, da superfície do globo terrestre. Todas estas ocorrências, gigantescas e avassaladoras que são do ponto de vista humano, são incidentes triviais numa série de contínuas alterações que ocorrem numa escala cósmica, surpreendem a nossa imaginação pela sua imensidade e duração e reduzem todos os fenómenos terrestres a uma insignificância quantitativa. Em termos quantitativos, a vida humana é duplamente insignificante, pois desempenha um tão pequeno papel na história geológica do planeta, o qual não pode ser considerado separadamente do sistema solar nem este último separadamente do resto do universo.
Assim, se a vida humana tem algum significado de todo, não é no domínio da quantidade mas sim no domínio da qualidade. Valerá somente a pena preservar a vida humana em virtude do seu conteúdo qualitativo ou potencialidade qualitativa, ainda que a mesma tenha um aspecto quantitativo inerente, o qual não pode ser preservado a menos que se satisfaçam os seus requisitos quantitativos. A satisfação desses requisitos é justificada apenas até ao necessário para o desenvolvimento das potencialidades qualitativas da humanidade.
A maior dificuldade que surge no decorrer desta afirmação é que a natureza dessas potencialidades qualitativas não pode ser definida com precisão. Apenas a quantidade é mensurável, a qualidade como tal pode ser enunciada mas não medida. A qualidade é eternamente o que é, ou é percebida pelo que é ou não é percebida de todo. Nada pode expressar a sua natureza a quem não a percebe directamente. No entanto há que falar sobre qualidade, uma vez que é a chave para tudo; sem ela não há nada senão o caos da indistinção, a abstracção do número puro. Ao discutir qualidade, o mais que se pode fazer é comparar coisas que possuem uma qualidade com coisas que não a possuem. Ainda assim, a comparação é significativa apenas para alguém que conhece por experiência o que a qualidade em questão é.
Isto é tanto ou mais verdade para a qualidade, ou qualidades, que podem ser chamadas de “espirituais”. A palavra espiritual é inevitavelmente mal aplicada ou mal interpretada por qualquer um cujos limites da realidade coincidem com os limites da mensurabilidade. O mensurável é, em última análise, tudo o que pode ser contido nos poderes analíticos e descritivos do cérebro humano. Se não houvesse nada que transcendesse esses poderes, toda a qualidade poderia em princípio ser reduzida a quantidade. A distinção qualitativa essencial do homem reside nas suas potencialidades espirituais.
As convulsões terrestres envolvem a destruição periódica de vidas, humanas ou outras. Isto pode surgir-nos como algo terrível e tornar difícil compreender como é que um Deus todo misericordioso pode ter ordenado os acontecimentos desta forma. Esquecemo-nos que a lei da vida e da morte é aplicável não individualmente a criaturas vivas mas a tudo o que, por associação com a quantidade, é conferido uma forma, universos e o que fica para baixo. Tudo deve perecer; somente o Espírito, qualidade pura, é imperecível e sempre inteiramente ele próprio. Quer como indivíduos, quer como sociedades humanas, somos perecíveis. O Homem sempre soube isto, mas ao mesmo tempo também sempre considerou que deve haver, por assim dizer, algo por detrás de tudo, algo imperecível e maior que ele próprio. [1] Aceitar a perecibilidade e a dependência de nós mesmos e de todo o universo das formas, com toda a humildade que essa aceitação implica, é um prelúdio necessário para o entendimento da nossa situação, e tal entendimento é indispensável para uma actuação efectiva. No presente, os nossos alcances no domínio do quantitativo e do perecível parecem ter obscurecido a nossa dependência do qualitativo e do imperecível, confundindo por conseguinte o nosso sentido de direcção e frustrando muitas acções bem-intencionadas.
O que é que tem tudo isto a ver com agricultura? Tudo, na realidade; pela dupla razão de que o solo, resultado das convulsões terrestres, providencia a sua fundação física e que a relação da qualidade para com a quantidade, não apenas nos produtos finais da agricultura mas também na nossa abordagem aos seus problemas, envolve-nos a todos mais do que normalmente pensamos.
Do ponto de vista estrito da biologia e da economia, a agricultura é a fundação da vida humana no planeta e assim tem sido desde que o aumento da população ultrapassou as potencialidades de produção de alimentos da Natureza virgem. Uma vez estabelecida, torna-se na principal expressão do relacionamento entre o homem e a Natureza. Todas as restantes actividades humanas surgem como ramificações desta relação e são dela dependentes. Poderíamos seguir sem elas mas não sem a agricultura. Consequentemente, afecta-nos mais directamente que qualquer outra actividade; a qualidade das nossas vidas e a nossa posição é reflexo dela, e a sua qualidade reflecte-se em nós.
Esta verdade auto-evidente tem vindo a ser obscurecida pelas atracções e distracções do desenvolvimento industrial, mas surge-nos novamente, agora no seu aspecto quantitativo, devido ao rápido crescimento da população mundial. Este incremento parece acompanhar sempre uma revolução industrial. [2] Num período de tempo incrivelmente curto, o progresso industrial passou a ser o objectivo de quase todas as nações; e, uma vez estabelecido, um objectivo não é prontamente abandonado, especialmente quando a riqueza é o seu alvo e esta parece alcançável. Embora nos encontremos perante um risco de fome mundial dentro de poucas décadas, continuamos a dedicar uma proporção cada vez maior do nosso dinheiro e energia ao desenvolvimento industrial, cujas exigências são insaciáveis. A indústria gera constantemente novos crescimentos, que por sua vez criam novas oportunidades, mas com elas também novos desejos e novas necessidades. [3]
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[1] Se não fosse assim, tanto ele próprio como o mundo perecível das formas seriam inteiramente irreais, uma mera ilusão passageira, sem causa e sem objectivo. Não só um tal conceito é contradito pela nossa consciência de existência mas é também, em última análise, desprovido de significado.
[2] Uma explosão populacional não é necessariamente ou somente resultado de mais ou melhor comida, habitação, ou atenção médica; por exemplo, nenhuma destas condições estiveram particularmente presente no início da revolução industrial britânica. Elas podem sem dúvida ajudar a sua concretização assim que esta começa, mas não são a sua causa.
[3] Curiosamente – ou talvez não tão curiosamente – os novos desejos são ao mesmo tempo os mais dispendiosos e os mais absurdos, por exemplo, televisão a cores, viagens cada vez mais rápidas e a colocação do homem na lua. Expansão pela expansão é a máxima; apenas pode ser alcançada mais rapidamente à custa de terceiros; quando todos a têm como objectivo, por toda a parte se exacerbam rivalidades entre interesses sectários, nacionais ou outros, e a preparação para a guerra, “fria” ou “quente”, torna-se de longe a maior consumidora de recursos.
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