quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Civilização e Progresso

Publicamos desde já uma parte de uma selecção de trechos do capítulo Civilisation et progrès da obra Oriente et Occident do magistral autor tradicionalista René Guénon. A versão completa e definitiva desta tradução constará no terceiro número da Revista Sabedoria Perene.

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A civilização ocidental moderna aparece na história como uma verdadeira anomalia: entre todas aquelas que nos são conhecidas mais ou menos completamente, esta civilização é a única que se desenvolveu num sentido puramente material, e este desenvolvimento monstruoso, cujo início coincide com o que se convencionou chamar de Renascimento, foi acompanhado, tal como estava fatalmente destinado, por uma correspondente regressão intelectual; dizemos correspondente em vez de equivalente, pois tratam-se aqui de duas ordens de coisas entre as quais não poderia existir qualquer medida comum. Esta regressão atingiu tal ponto que os ocidentais de hoje deixaram de saber o que é a intelectualidade pura, e tão pouco suspeitam de que tal possa existir; daqui resulta o seu desdém, não só pelas civilizações orientais, mas também pela idade média europeia, cujo espírito lhes escapa pouco menos completamente. Como fazer compreender o interesse de um conhecimento puramente especulativo àqueles para quem a inteligência é nada mais que um meio de agir sobre a matéria e de a sujeitar a fins práticos, e para quem a ciência, no sentido restrito em que a entendem, vale sobretudo na medida em que é aplicável para fins industriais? Nada exageramos: basta olhar em redor para se dar conta que é esta precisamente a mentalidade da imensa maioria de nossos contemporâneos; e um exame à filosofia posterior a Bacon e Descartes apenas confirmaria de novo estas constatações. Lembraremos apenas que Descartes limitou a inteligência à razão, que considerou como única função daquilo que acreditava poder chamar de metafísica a de servir de base à física, e que esta mesma física estava essencialmente destinada, segundo o seu pensar, a preparar a constituição das ciências aplicadas, mecânica, médica e moral – o limite último do conhecimento humano tal como o concebia. Não serão já estas tendências, assim formuladas, as mesmas que caracterizam, à primeira vista, todo o desenvolvimento do mundo moderno? Negar ou ignorar todo o conhecimento puro e supra-racional foi um abrir do caminho que logicamente poderia apenas conduzir, por um lado, ao positivismo e ao agnosticismo, os quais se entregam às mais redutoras limitações da inteligência e do seu objecto e, por outro lado, a todas as teorias sentimentalistas e voluntaristas, as quais se obrigam a procurar no infra-racional por aquilo que a razão não lhes pode dar. De facto, aqueles que nos nossos dias desejam reagir contra o racionalismo aceitam todavia a plena identificação da totalidade da inteligência com a razão, e crêem que aquela não é mais que uma faculdade puramente prática, incapaz de sair além do domínio da matéria. Bergson escreveu textualmente: "A inteligência, considerada no que parece ser a sua característica original, é a faculdade de fabricar objectos artificiais, em particular ferramentas para fazer ferramentas (sic), e de variar indefinidamente o seu fabrico" [2]. E novamente: "A inteligência, mesmo quando deixa de operar sobre a matéria bruta, segue os hábitos adquiridos nessa operação: aplica formas que são as mesmas da matéria desordenada. Ela está feita para este tipo de trabalho. Sem mais, este tipo de trabalho satisfá-la plenamente. E é isto que ela exprime ao dizer que somente assim atinge a distinção e a clareza" [3]. A partir destas últimas características podemos reconhecer sem esforço que não é a própria inteligência que está em causa, mas tão simplesmente a concepção cartesiana da inteligência, o que é bem diferente. E a "filosofia nova", como lhe chamam os seus aderentes, vai substituir a superstição da razão por uma outra, ainda mais grosseira sob certos aspectos, a superstição da vida. O racionalismo, ainda que impotente para se elevar até à verdade absoluta, deixava todavia subsistir a verdade relativa; o intuicionismo contemporâneo afunda esta verdade até ser não mais que uma representação da realidade sensível, em tudo o que ela tem de inconsistente e de incessantemente mutável; por fim, o pragmatismo acaba por fazer desaparecer a própria noção de verdade ao identificá-la com a noção de utilidade, o que resulta na pura e simples supressão da primeira. Se esquematizámos um pouco as coisas, de modo algum as desfigurámos e, quaisquer que possam ter sido as fases intermediárias, as tendências fundamentais são exactamente as que acabámos de descrever; os pragmatistas, indo até ao limite, apresentam-se como os mais autênticos representantes do pensamento ocidental moderno: o que importa a verdade num mundo em cujas aspirações, unicamente materiais e sentimentais e não intelectuais, encontram plena satisfação na indústria e na moral, dois domínios em que se pode bem passar sem conceber a verdade? Sem dúvida, não chegámos a este extremo num só golpe, e muitos europeus protestarão que não atingiram ainda tal extremo; mas aqui pensamos sobretudo nos americanos, que já se encontram numa fase mais "avançada", se assim o podemos dizer, da mesma civilização: tanto mentalmente como geograficamente, a América actual é verdadeiramente o "Extremo Ocidente"; e a Europa seguir-se-á, sem dúvida alguma, se nada vier impedir o desenrolar das consequências implicadas na situação actual.

Talvez mais extraordinária é a pretensão de fazer desta civilização anormal o próprio modelo de todas as civilizações, de considerá-la como "a civilização" por excelência, vista mesmo como a única merecedora desse nome. Igualmente extraordinária, e como complemento desta ilusão, é a crença no "progresso", encarado de um modo não menos absoluto e identificado naturalmente, na sua essência, com este desenvolvimento material que absorve toda a actividade do ocidental moderno. Ambas estas ideias de "civilização" e de "progresso", fortemente relacionadas, datam apenas da segunda metade do século XVIII, o que equivale a dizer que datam da época que, entre outras coisas, viu nascer também o materialismo [4]; estas foram propagadas e popularizadas sobretudo pelos sonhadores socialistas do início do século XIX. Deve-se reconhecer que a história das ideias permite fazer, por vezes, observações assaz surpreendentes e reduzir certas ideias fantásticas ao seu justo valor; ela o permitiria sobretudo se fosse feita e analisada correctamente, se não fosse, como acontece aliás com a história comum, falsificada por interpretações tendenciosas, ou limitada a obras de mera erudição académica, a investigações insignificantes sobre aspectos de detalhe. A verdadeira história pode ser perigosa para certos interesses políticos; e estamos no direito de questionar se não é por esta razão que determinados métodos, neste domínio, são impostos oficialmente e à custa da exclusão de quaisquer outros: conscientemente ou não, descartamos a priori tudo o que permitiria ver claramente as coisas, e é assim que se forma a "opinião pública". Mas regressemos às duas ideias acima tratadas e esclareçamos que, ao atribuir-lhes uma origem tão próxima, visamos unicamente esta acepção absoluta, e ilusória segundo a nossa opinião, que é a que mais comummente lhes é dada nos dias de hoje. O significado relativo que estas mesmas palavras são susceptíveis de ter é uma outra questão e, como este significado é muito legítimo, podemos dizer que se tratam neste caso de ideias que surgiram num determinado momento; pouco importa se elas foram expressas de um ou de outro modo e, se um termo é conveniente, não será pelo facto de ser criação recente que vemos inconvenientes em empregá-lo. Assim, não hesitamos dizer que existem "civilizações" múltiplas e diversas. Seria deveras difícil definir com precisão o conjunto complexo de elementos de diferentes ordens que constituem aquilo que se chama de uma civilização mas, todavia, qualquer um compreende bem o que se deve entender por tal. Não pensamos ser necessário tentar encerrar numa fórmula rígida as características gerais da civilização como tal, ou as características particulares de uma tal civilização; Este é um processo algo artificial, e duvidamos grandemente desses enquadramentos limitadores que tanto aprazem a mentalidade sistemática. Assim como há "civilizações", há também, no decurso do desenvolvimento de cada uma delas, ou de certos períodos mais ou menos restritos desse desenvolvimento, "progressos" que influenciam, não tudo de forma indiscriminada, mas este ou aquele domínio específico; Este não é senão, em suma, um outro modo de afirmar que uma civilização se desenvolve num determinado sentido, numa determinada direcção; mas, assim como existem progressos, existem também regressões, e por vezes até coexistem ambos em domínios distintos. Logo, insistimos que tudo isto é eminentemente relativo; se tomarmos as mesmas palavras num sentido absoluto, elas deixam de corresponder a qualquer realidade, e foi precisamente nesta época que elas passaram a representar estas ideias novas que existem há menos de dois séculos, e apenas no Ocidente. Certamente que "o Progresso” e “a Civilização", com letra maiúscula, podem ser muito eficazes em certas frases, tão vazias quanto retóricas, muito apropriadas para impressionar as multidões para quem as palavras servem menos para exprimir o pensamento do que para colmatar a sua ausência; estas desempenham um dos mais importantes papéis no arsenal das fórmulas de que os "dirigentes" contemporâneos se servem para conseguir o singular feito de sugestão colectiva, sem o qual a mentalidade especificamente moderna não saberia subsistir duradouramente. A este respeito não cremos ter alguma vez destacado suficientemente a analogia deveras notável que a acção do orador, por exemplo, tem com a do hipnotizador (a do domador pertence igualmente à mesma ordem); chamamos, de passagem, a atenção dos psicólogos para este objecto de estudo. Sem dúvida, o poder das palavras foi também exercido, em maior ou menor escala, em tempos que não o nosso; mas o que não tem paralelo é esta gigantesca alucinação colectiva através da qual toda uma porção da humanidade foi levada a tomar as mais fantásticas fantasias por realidades incontestáveis; e, entre os ídolos da mentalidade moderna, aqueles que aqui denunciamos são talvez os mais perniciosos de todos.
(...)

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[2] L'Evolution créatrice, p. 151.
[3] Ibid, Pág. 174
[4] A palavra "materialismo" foi inventada por Berkeley, que dela se serviu unicamente para designar a crença na realidade da matéria; o materialismo no seu sentido atual, isto é, a teoria segundo a qual não existe qualquer outra coisa senão a matéria, remonta apenas a La Mettrie e a Holbach; não deve ser confundida com mecanismo, cujos exemplos podem ser encontrados mesmo entre os antigos.

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