quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A questão da promessa divina de proteção à Igreja

por Mateus Soares de Azevedo


Com relação à questão sobre a promessa do Cristo de proteção à Igreja (Mateus, 16: 18), posta pelo leitor do blogue Fábio Luque, é importante ponderar o seguinte.

A promessa divina não se refere apenas à Igreja Católica Romana. Pois a tradição cristã universal engloba três grandes confissões, ou correntes:

1. A Igreja Católica, cuja área providencial de atuação é, sobretudo, a Europa ocidental e as Américas, com extensões em África meridional, Oceania e partes de Ásia (como Filipinas e Coréia);

2. As Igrejas Ortodoxas Orientais, cuja área principal de atuação é o leste europeu e o Oriente Próximo, incluindo comunidades gregas, russas, melquitas, sírias etc estabelecidas nas Américas, na Oceania e Europa ocidental;

3. As igrejas protestantes originais, pré-liberais, sobretudo luteranas.

Jesus disse: “Onde dois, ou três, estiverem reunidos em meu Nome, eu estarei no meio deles”.

Frithjof Schuon interpretou os dois primeiros desta palavra divina como sendo o Catolicismo e a Ortodoxia. O terceiro, no condicional, expressa, entre outras possíveis interpretações, o caráter mais ou menos problemático e ambíguo do Protestantismo. Schuon escreveu, em seu magistral ensaio “A Questão do Protestantismo”, que este “manifesta incontestavelmente uma possibilidade cristã, limitada sem dúvida, e excessiva em algumas de suas características, mas não intrinsecamente ilegítima e, consequentemente, representativa de certos valores teológicos, morais e mesmo místicos. Se o Evangelismo - para usar o termo favorito de Lutero - estivesse situado num mundo como o do Hinduísmo, ele apareceria nesse particular como uma via possível, o que quer dizer que seria, sem dúvida, um darshana secundário entre outros (...)”.

Permitam-nos citar ainda algumas linhas deste mesmo texto, pois ele é bastante esclarecedor e, ademais, fornece uma resposta incisiva à opinião do grande René Guénon, que repelia o Protestantismo como manifestação heterodoxa e anti-tradicional no seio da Cristandade: “Poder-se-ia dizer analogicamente que a alma germânica - tratada por Roma de uma maneira demasiadamente latina, mas esta é outra questão - que esta alma, que não é grega, nem romana, sentia a necessidade de um arquétipo religioso mais simples e mais interior, um arquétipo menos formalista, portanto, e mais “popular” no melhor sentido da palavra; este é em certos aspectos o arquétipo religioso do Islã, uma religião baseada num Livro e conferindo o sacerdócio a todo fiel. Ao mesmo tempo, e de outro ponto de vista, a alma germânica sentia nostalgia por uma perspectiva que integrasse o natural ao sobrenatural, isto é, uma perspectiva tendendo a Deus sem ser contra a natureza; uma piedade não-monástica, todavia acessível a todo homem de boa vontade no meio das preocupações terrenas; uma via fundada na Graça e na confiança, e não na Justiça e nas obras; e esta via [o Protestantismo] tem incontestavelmente suas premissas no próprio Evangelho.”

Seja como for, e voltando o foco para a questão da promessa, creio que ela se refere fundamentalmente às igrejas ortodoxas, que não tiveram aggiornamento (como nota o grande William Stoddart em Remembering in a World of Forgetting (EUA, 2008, pp. 29-30), as igrejas orientais não sofreram estas três grandes ondas de destruição que devastaram a Cristandade ocidental: a Renascença, o Iluminismo e o aggiornamento).

A promessa vale também, certamente, aos grupos tradicionalistas católicos que não aceitaram a Weltanchauung conciliar e que lutam com grandes dificuldades, um pouco por todo mundo, para manter vivo o depósito da tradição que Cristo legou à sua Igreja, depósito este desprezado e mesmo “substituído” pela “nova” igreja, a de Roncalli, Montini, Woityla e Ratzinger. As igrejas católicas de rito oriental (melquita, armênia, ucraniana etc) estão igualmente cobertas pela promessa -- desde que, é claro, mantenham-se fieis à tradição que receberam do divino Mestre. Pois o importante aqui é ter claro que a promessa do Cristo não é incondicional, ou seja, ela não vale para aquelas partes de um organismo vivo como é a igreja que se corromperam ao longo do tempo e se desviaram da doutrina correta (este é o significado etimológico do termo grego “ortodoxia”).

As portas do inferno não prevalecerão contra a minha Igreja”, diz o Cristo na passagem do Evangelho de São Mateus citada. Hoje, não há dúvida que há correntes da tradição cristã que se corromperam ou se desviaram da “correta doutrina”, e a “nova igreja”, ou a igreja romana oficial, é desgraçadamente uma delas – ela certamente não faz parte da “minha igreja”. A promessa não cobre a heterodoxia; portanto, a promessa não cobre a “nova igreja”.

3 comentários:

  1. "Hoje, não há dúvida que há correntes da tradição cristã que se corromperam ou se desviaram da “correta doutrina”, e a “nova igreja”, ou a igreja romana oficial, é desgraçadamente uma delas – ela certamente não faz parte da “minha igreja”. A promessa não cobre a heterodoxia; portanto, a promessa não cobre a “nova igreja”."
    Não há uma contradição dessa frase com outra escrita antes, dita por Jesus "Onde estiverem duas ou mais pessoas reunidas em meu nome, alí eu estarei"? Acaso o ilustre articulista não está creditando à uma ou umas determinada(s) igreja(s) o fato de serem as de Cristo pelo fato de seguirem um rito? Acaso Salvação está relacionada com rito? Ou está relacionada com crer no Senhor Jesus?! Salvação é João 14.6 e tantas outras passagens. Acaso o ladrão que reverenciou e aceitou a Cristo na cruz pertencia a alguma igreja? Igreja no máximo só pode nos instruir nessa ou naquela doutrina, além de servir como lugar acolhedor ou "acolhedor". Somente Jesus Cristo Salva. João 3.16

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  2. É com muito apreço que assistimos à participação activa dos leitores deste espaço dedicado ao estudo das doutrinas tradicionais e da Sophia Perennis. Todos os comentários são para nós renovados incentivos ao estudo de todas as grandes tradições religiosas ou espirituais da humanidade, entre elas o cristianismo, o islão, o hinduísmo, o budismo ou a religião dos índios americanos.

    As questões colocadas pelo leitor coincidem em parte com um destes estudos, concretamente com o estudo dos ensinamentos do grande S. Bernardino de Siena. Tomo a liberdade de traduzir uma transcrição de um ensinamento deste gigante da igreja católica, o qual abrange de alguma forma as questões colocadas pelo leitor e, talvez não de menor importância, traz mais alguma luz à questão da “nova igreja” constituir um desvio da “correcta doutrina”, isto é, a da “nova igreja” se ter tornado heterodoxa.

    É por isso que S. Paulo diz na 1.ª Carta aos Coríntios 3: “[Segundo a graça de Deus que me foi dada, eu, como sábio arquitecto, assentei o alicerce, mas outro edifica sobre ele. Mas veja cada um como edifica,] pois ninguém pode pôr um alicerce diferente do que já foi posto: Jesus Cristo”, (…) pois Ele é a porta da vida e a fundação da eterna salvação. Se uma pessoa não tiver esta fé, ou se a abandonar, então é como se vagueasse pela escuridão da noite sem uma luz, tal qual um cego ou um coxo que arrojadamente se lança por um caminho perigoso. Por mais eminentes que sejam os feitos intelectuais de alguém, essa pessoa deve evitar seguir um líder cego, um líder cujo intelecto, desligado do céu, segue o seu próprio caminho.

    (ver Rama Coomaraswamy, The Invocation of the Name of Jesus as Practiced in the Western Church, Fons Vitae, 1999, p. 77)

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  3. Para os protestantes, é a fé que salva. Para católicos e cristãos ortodoxos, é a fé juntamente com as obras; obras estas que provam e fortalecem a fé.
    Em outras palavras, o que salva é a fé com suas concomitâncias doutrinais, rituais e morais.
    Deste ponto de vista, a doutrina, o rito e a moral fazem parte da fé.
    Concomitâncias doutrinais: não basta ter fé em seja lá o que for; a doutrina do verdadeiro delimita as fronteiras da fé. Concretamente, a fé não é operante, por exemplo, se se sustentar que Deus evolui, ou que foram extra-terrestres que trouxeram a vida à Terra, ou que o homem vem do macaco. Fé sem verdade é fútil.
    Concomitâncias rituais: diferentemente do que o leitor expressou, o rito faz sim parte da fé; se não fosse assim, não haveria razão suficiente para o próprio Cristo ter instituído ritos, cuja função é justamente fortalecer os fiéis na fé. A fé não sobrevive a longo prazo numa ambiência de mundanidade e irresponsabilidade espiritual; os ritos, seja a oração, o batismo, a confissão, a comunhão reforçam a fé. "Fé" sem prática espiritual é vazia.
    Concomitâncias morais: que "fé" se sustenta num contexto de roubo, homicídio, cobiça, falso testemunho ou alguma outra infração moral, como resumida nos Dez Mandamentos? Fé sem respeito a um dado sistema de moralidade é hipocrisia.

    Vale dizer ainda que a concepção de "igreja" exposta na mensagem é complemente limitada e restritiva; igreja é muito mais do que "instruir nesta ou naquela doutrina", ou "servir como lugar acolhedor". Sim, ela também instrui em doutrinas e acolhe, mas é fundamentalmente o Corpo Místico , cujo cabeça é o próprio Cristo. Corpo Místico porque organismo vivo, não um ente meramente natural ou material, mas também e acima de tudo espiritual, invisível e, em última instância, divino.
    A Igreja (universal, não exclusivamente romana, ortodoxa ou evangélica) como Presença do Cristo no mundo. Jesus é o cabeça deste organismo e os fiéis são seus membros. Este é o Corpo Místico, do qual se faz parte pela graça.

    O caso do bom ladrão é um caso excepcional, e não pode evidentemente ser usado como regra. Se é verdade que ele, como diz o leitor, não pertencia a nenhuma "igreja" formal, ele não obstante, por seu arrependimento e por sua fé em Cristo, passou imediatamente a pertencer à igreja universal e eterna. Sua proximidade de Jesus naquele momento decisivo foi seu "batismo", sua iniciação na Igreja eterna. Mas não se pode querer fazer valer este evento único para todos, pois, como organismo vivo, a Igreja de Cristo pode ser simbolicamente associada a uma árvore.
    Neste momento decisivo na cruz, a Igreja existia simbolicamente, por assim dizer, como raiz, era uma realidade informal. Ao longo dos séculos, esta árvore foi crescendo, desenvolveu tronco, ramos, galhos, folhas e frutos, que são os santos.
    Não se pode querer, depois de dois milênios, que este organismo vivo, esta "árvore", simbolicamente falando, faça abstração de seus frutos, folhas, galhos, ramos e tronco, e volte por um passe de mágica a ser apenas raiz novamente.

    Não há volta pura e simples ao passado. É por esta razão, seja dito de passagem, que tradicionalistas e perenialistas conseqüentes não almejam uma volta da igreja à realidade dos anos 1930, digamos, ou a qualquer período anterior ao Vaticano Segundo -- como algumas organizações conservadoras católicas almejam --, mas sim uma nova e inspirada aplicação dos princípios metafísicos universais e perenes a novas e sempre cambiantes condições cíclicas.

    Mateus Soares de Azevedo

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