Todas as artes, sem excepção, são imitativas. A obra de arte apenas pode ser julgada como tal (e independentemente do seu “valor”) pelo grau em que o modelo tenha sido correctamente representado. A beleza da obra é proporcional à sua precisão (
orthotês = integritas sive perfectio), ou verdade (
alêtheia = veritas). Por outras palavras, o julgamento do artista relativo à sua própria obra pelo critério da arte é uma crítica baseada na proporção da forma essencial para a forma efectiva, do paradigma para a imagem. “Imitação” (
mimêsis), uma palavra que pode ser tão facilmente incompreendida como as de São Tomás de Aquino em “Arte é a
imitação da Natureza no seu modo de operação”,[i] pode ser enganosamente tomada com o significado de que é a melhor arte a que é “mais verdadeira para com a natureza”, tal como usamos actualmente esta palavra no seu sentido mais limitado, com referência não à “Mãe Natureza”, Natura naturans, Creatix Universalis, Deus, mas ao que quer que se apresente pelo nosso ambiente imediato e natural, tanto visualmente como por outra forma acessível à observação (
aisthêsis). Neste contexto é importante não negligenciar que a delineação do carácter (
êthos) na literatura e na pintura é, tanto como a representação da imagem reflectida de uma fisionomia, um procedimento empírico e realista, dependente da observação. A “Natureza” de São Tomás, por outro lado, é aquela Natureza “que para se encontrar”, tal como dito por Mestre Eckhart, “é necessário quebrar todas as suas formas”.
A imitação ou “re-presentação” de um modelo (mesmo um modelo “apresentado”) envolve, efectivamente, uma semelhança (
homoia,
similitudo, sânscrito s
âdrsya), mas dificilmente o que habitualmente entendemos por “verosimilhança” (
homoiotês). O que, tradicionalmente, se entende por “semelhança” não é uma cópia mas sim uma imagem afim (
sungenês) e “igual” (
isos) ao seu modelo; por outras palavras, um símbolo natural e “ad-equado” do seu referente. A representação de um homem, por exemplo, deve corresponder realmente à ideia do homem, mas não deve parecer-se tanto com ele a ponto de enganar o olho; porquanto a obra de arte, no que se refere à sua forma, é uma coisa feita da mente e visa a mente, mas uma ilusão não é mais inteligível do que o objecto natural que mimetiza. O molde de um homem em gesso não será uma obra de arte, mas a representação de um homem sobre rodas, onde a verosimilhança requereria pés, pode ser uma “imitação” inteiramente adequada, bem e
verdadeiramente feita.
[ii]
Está no perfeito direito de um matemático falar de um “equação bela” e que sente por ela o que sentimos em relação à “arte”.
[iii] A beleza da equação admirável é o aspecto atractivo da sua simplicidade. É uma única forma que é a forma de muitas coisas diferentes. Do mesmo modo, a Beleza é absolutamente a equação que é a forma única de todas as coisas, as quais são elas mesmas belas na medida em que participam na simplicidade da sua fonte. “A beleza da linha recta e do círculo, e do plano e das figuras sólidas formadas a partir destes… não é, como a de outras coisas, relativa, mas sim sempre absolutamente bela”.
[iv]
Acontece que sabemos que Platão, que diz estas coisas, honra sempre o que é antigo e desaprova as inovações (cujas causas são, no sentido estrito e pior da palavra, estéticas), e classifica as artes formais e canónicas do Egipto muito acima da arte humanista grega que ele viu aparecer na moda.
[v] O tipo de arte ratificada por Platão era, por conseguinte, precisamente a que conhecemos como arte geométrica grega. Não deveremos pensar que teria sido primariamente pelo valor decorativo que Platão admirava este tipo de arte “primitiva”, mas pela sua verdade e precisão,
por causa das quais tem o tipo de beleza que é universal e invariável, com as suas equações “afins” para com os Primeiros Princípios, dos quais os mitos e mistérios, relatados ou representados, são imitações noutro tipo de material. As formas dos tipos de arte mais simples e mais severo, o tipo de arte sinóptico que chamamos “primitivo”, são a linguagem natural de toda a filosofia tradicional; e é por esta mesma razão que a dialéctica de Platão faz uso contínuo de
figuras de linguagem, as quais são na realidade figuras de pensamento.
Platão sabia tão bem quanto os filósofos escolásticos que o artista como tal não tem qualquer responsabilidade moral, e que apenas pode pecar como artista se deixar de considerar unicamente o bem da obra a realizar, seja ela qual for.
[vi] Mas, tal com Cícero, Platão também sabe que “apesar de ser um artista, também é um homem”
[vii] e que, se for um homem livre, é responsável como tal pelo quer que se predisponha a fazer; um homem que, se representa o que não deveria ser representado e se traz à existência coisas indignas de homens livres, deverá ser castigado, ou pelo menos reprimido ou exilado tal como qualquer outro criminoso ou louco. São precisamente aqueles poetas ou outros artistas que imitam qualquer e toda a coisa e que não se envergonham de representar ou até mesmo “idealizar” coisas essencialmente ordinárias, que Platão, independentemente das suas habilidades, quão grandes sejam, baniria da sociedade dos homens racionais, “a menos que da imitação de coisas vergonhosas os homens devessem absorver a sua actualidade”,
[viii] que é o mesmo que dizer, pelas mesmas razões que nós em momentos de sanidade (
sôphrousunê) vemos como apropriada a condenação da exibição de filmes de bandidos em que o vilão é feito herói, ou concordamos em proibir o fabrico de alimentos sofisticadamente adulterados.
Se não nos atrevemos a perguntar, com Platão, “imitações de que tipo de vida?” e “da aparência ou da realidade, do fantasma ou da verdade?”
[ix] é porque já não temos a certeza sobre qual o tipo de vida que deveríamos imitar para o nosso próprio bem e felicidade, e estamos maioritariamente convencidos que ninguém sabe ou pode saber a verdade última sobre seja o que for: apenas sabemos o que “aprovamos” sobre, i.e., o que
gostamos de fazer ou pensar, e desejamos uma liberdade para fazermos e pensarmos o que queremos mais do que desejamos uma libertação do erro. Os nossos sistemas de educação são caóticos porque não há acordo sobre o que ensinar, excepto sobre a auto-expressão. Mas toda a tradição está em acordo relativamente ao tipo de modelos que devem ser imitados: “A cidade nunca pode de outro modo ser feliz a menos que seja concebida por aqueles pintores que seguem um original divino”;
[x] “Os ofícios tais como a construção ou a carpintaria… tomam os seus princípios desse reino e do pensamento daí”;
[xi] “Toma todas as providências para que o trabalho seja executado segundo o modelo que te mostrei neste monte”;
[xii] “É na imitação (
anukrti) das formas divinas que toda a forma humana (
silpa) se inventa aqui”;
[xiii] “Existe esta harpa divina, para ter certeza; esta harpa humana vem a ser na sua semelhança” (
tad anuktrti);
[xiv] “Temos que fazer o que os Deuses fizeram primeiro”.
[xv] Isto é a imitação da Natureza no seu modo de operação”, e, tal como a primeira criação, é a imitação de um modelo inteligível, não de um perceptível.
Mas uma tal imitação dos princípios divinos só é possível se os tivermos conhecido “como eles são”, porquanto se nós próprios não os tivermos visto, a nossa iconografia mimética, baseada na opinião, estará em falta; não podemos conhecer o reflexo de algo a menos que o conheçamos.
[xvi] A base da crítica de Platão aos poetas e pintores naturalistas é a de que eles não conhecem nada da realidade mas sim e apenas a aparência das coisas, para as quais a sua visão é excessivamente apurada; as suas imitações não são de originais divinos, mas apenas cópias de cópias.
[xvii] E vendo que apenas Deus é verdadeiramente belo, e que qualquer outra beleza é por participação, é apenas uma obra de arte que foi trabalhada, no seu tipo (
idea) e na sua significância (
dunamis), seguindo um modelo eterno, que pode ser chamada de bela.
[xviii] E uma vez que os modelos eternos e inteligíveis são suprasensuais e invisíveis, é evidente que eles devem ser conhecidos “não pela observação” mas sim em contemplação.
[xix] Logo, são necessários dois actos, um de contemplação e um de operação, para a produção de qualquer obra de arte.
[xx]
E agora no que se refere ao julgamento da obra de arte, primeiro pelo critério da arte, e segundo com respeito ao seu valor humano. Tal como já vimos, não é através das nossas reacções, aprazíveis ou não, mas pela sua perfeita precisão, beleza, ou perfeição, ou verdade – por outras palavras, pela igualdade ou proporção da imagem para com o seu modelo – que uma obra de arte pode ser julgada como tal. Isto é considerar apenas o bem da obra de arte a ser feita, que é a actividade do artista. Mas também temos que considerar o bem do homem para quem o trabalho é feito, quer este “consumidor” (
chrômenos) seja o próprio artista ou qualquer outro patrono.
[xxi] Este homem julga de outro modo, não, ou não apenas, por esta verdade ou precisão, mas pela utilidade ou aptidão (
ôpheleia) do artefacto para servir o propósito da sua intenção original (
boulêsis), viz. a necessidade (
endeia) que era a primeira e que é também a última causa do trabalho. Precisão e aptidão juntas fazem a “integralidade” (
hugieinon) do trabalho que é a sua rectidão-última (
orthotês).
[xxii] A distinção entre beleza e utilidade é lógica, não é real (
in re).
Então quando o gosto foi rejeitado como um critério na arte, o Estrangeiro de Platão conclui então, “O juiz de qualquer coisa que tenha sido feita (
poiêma) deve conhecer a sua essência – qual é a sua intenção (
boulêsis) e qual é a coisa real de que é uma imagem – ou então dificilmente conseguirá diagnosticar se acerta ou falha o alvo da sua intenção.” E de novo, “O crítico especializado de qualquer imagem, quer na pintura, na música, ou em qualquer outra arte, deve conhecer três coisas, qual era o arquétipo, e em cada caso se estava feita correctamente e se estava bem feita… se a representação estava boa (
kalon) ou não.”
[xxiii] O julgamento completo, feito pelo homem integral, está em se a coisa sob consideração foi simultaneamente verdadeira
e bem feita. É apenas “pela multidão que o belo e o justo se apartam”,
[xxiv] pela multidão, poderemos dizer, de “estetas”, os homens que “conhecem o que gostam”?
Dos dois julgamentos, respectivamente pela arte e pelo valor, o primeiro apenas estabelece a existência do objecto como uma verdadeira obra de arte e não uma falsificação (pseudos) do seu arquétipo: é um julgamento normalmente realizado pelo artista antes que possa permitir que a obra saia do seu ateliê, e portanto é um julgamento que é realmente pressuposto quando, na qualidade de patronos e consumidores, nos propomos a avaliar a obra. É apenas em certas circunstâncias, e tipicamente nas de fabrico e comércio moderno, que se torna necessário que o patrono ou o consumidor perguntem se o objecto que comissionaram ou que se propõe a comprar é realmente uma verdadeira obra de arte. Em condições normais, em que o trabalho é uma vocação e o artista está disposto e livre para considerar nada mais do que o bom da obra a ser feita, é supérfluo perguntar, Isto é uma “verdadeira” obra de arte? Contudo, quando a questão tem que ser colocada, ou se desejamos fazê-lo com o fito de compreender plenamente a génese da obra, então as bases do julgamento a este respeito serão as mesmas que para o artista original; temos que saber o que é que a obra intenta fazer lembrar, e se é igual a (é um “símbolo adequado” de) este conteúdo, ou se trai este paradigma por falta de verdade. Em qualquer dos casos, quando este julgamento tenha sido feito, ou quando é assumido como garantido, podemos prosseguir e perguntar se a obra tem ou não valor para nós, perguntar se servirá as nossas necessidades. Se somos homens integrais, não tais que vivamos apenas de pão, a questão formular-se-á com respeito à satisfação conjunta das necessidades espirituais e físicas; devemos perguntar se o modelo foi bem escolhido, e se foi aplicado ao material de tal forma que serve à nossa necessidade imediata; por outras palavras, O que é que diz? e Funcionará? Se pedimos um pão que irá suportar o homem integral, e recebermos uma pedra, por muito bela, não estamos moralmente, ainda que possamos estar legalmente, obrigados a “pagar o flautista”. Todos os nossos esforços para obedecer ao Diabo e “ordenar que esta pedra se faça pão” estão condenados ao fracasso.
Uma das virtudes de Platão, e de toda a doutrina tradicional sobre a arte, é que o significado de “valor” nunca é tomado como valor exclusivamente espiritual ou exclusivamente físico. Não é vantajoso, nem de todo inteiramente possível, separar estes valores, fazendo algumas coisas sagradas e outras profanas: a sabedoria mais elevada deve ser “misturada”
[xxv] com o conhecimento prático, a vida contemplativa combinada com a activa. Os prazeres que pertencem a estas vidas são inteiramente legítimos, e são apenas aqueles prazeres que são irracionais, bestiais, e no pior sentido das palavras, sedutores e distractivos, os que devem ser excluídos. A música e a ginástica de Platão, que correspondem à nossa cultura e ao nosso treino físico, não são currículo alternativo mas sim partes essenciais de uma e da mesma educação.
[xxvi] A filosofia é a mais elevada forma de música (cultura), mas o filósofo que escapou da caverna deve regressar à mesma para participar na vida quotidiana do mundo e, muito literalmente, jogar o jogo.
[xxvii] O critério da “integralidade” de Platão implica que nada devesse ser feito, nada pode ser verdadeiramente digno de ter, que não seja ao mesmo tempo correcto ou verdadeiro ou formal ou belo (qualquer que seja a palavra preferida)
e adaptado ao bom uso.
Pois, declarando a doutrina Platónica em palavras mais familiares, “Está escrito que nem só de pão vive o homem; de tudo o que sai da boca do Senhor é que o homem viverá… o pão que desceu do Céu”,
[xxviii] isto é, não só de meras utilidades mas também daquelas “realidade divinas” e da “beleza causal” com a qual as obras de arte integrais são informadas, para que também elas possam viver e falar. É apenas na medida em que tentamos viver só de pão e só de todas as outras utilidades in-significantes que “só pão” inclui – boas como utilidades, mas más como
meras utilidades – que a nossa civilização contemporânea pode ser justamente chamada de inumana e que deve ser desfavoravelmente comparada com as culturas “primitivas” nas quais, tal como os antropologistas nos asseguram, “as necessidades do corpo e da alma são satisfeitas em conjunto”.
[xxix] A manufactura para as necessidades só do corpo é a maldição da civilização moderna.
Propuséssemo-nos a elevar os nossos padrões de vida ao nível selvagem, no qual não existe distinção entre arte bela e aplicada ou entre arte sagrada e profana, e isso não implicaria necessariamente o sacrifício de qualquer das necessidades ou mesmo conveniências da vida, mas apenas dos luxos, apenas daquelas utilidades que não são ao mesmo tempo úteis e significantes. Se uma tal proposta de regresso aos níveis primitivos da cultura possa parecer utópica e impraticável, é apenas porque uma manufactura de utilidades significantes teria que ser uma manufactura para o uso, o uso do homem integral, e não para o lucro do vendedor. O preço a pagar por devolver ao mercado, onde elas pertencem, tais coisas como as que agora apenas se encontram em museus seria o da revolução económica. Poder-se-á duvidar se o nosso ostentado amor pela arte chegaria tão longe.
Pergunta-se por vezes a se o “artista” pode sobreviver sobre condições modernas. No sentido em que a palavra é usada por aqueles que formulam a pergunta, não se vê como é que ele pode ou porque é que deveria sobreviver. Pois, tal como o artista moderno não é útil nem significante, mas apenas um elemento ornamental da sociedade, também o trabalhador moderno não é nada senão um membro útil da sociedade e não é nem significativo nem ornamental. É certo que devemos continuar a trabalhar, mas não tão certo que não possamos viver, e graciosamente, sem as exibições dos nossos estúdios, galerias e campos de jogo. Não podemos prescindir da arte, porque a arte é o conhecimento de como as coisas deveriam ser feitas, a arte é o princípio da manufactura (
recta ratio factibilium), e ainda que uma peça desprovida de arte possa ser inocente, uma manufactura sem arte é meramente um trabalho embrutecido e um pecado contra a integralidade da natureza humana;
podemos prescindir dos “belos” artistas, cuja arte não se “aplica” a coisa alguma, e cuja manufactura organizada da arte em estúdios é o inverso da manufactura sem arte do operário nas fábricas; e
devemos até ser capazes de passar sem os mecânicos ordinários “cujas almas são vergadas e mutiladas pelas suas ocupações vulgares ao mesmo tempo que os seus corpos são prejudicados pelas suas artes mecânicas.”
[xxx]
O próprio Platão examina, em relação a todas as artes, seja a do ceramista, do pintor, do poeta, ou do “artesão da liberdade cívica”, a relação entre a prática de uma arte e a obtenção de sustento.
[xxxi] Ele assinala que a prática de uma arte e a capacidade de obtenção de um salário são duas coisas diferentes; que o artista (no sentido de Platão e naquele das filosofias sociais Cristãs e Ocidentais) não obtém salários da sua arte. O artista
trabalha pela sua arte, e é apenas acidentalmente um comerciante se vender o que faz. Sendo uma vocação, a sua arte é mais intimamente sua e pertence à sua própria natureza, e o prazer que ele tira dela aperfeiçoa a operação. Não há nada em que ele preferisse trabalhar (ou “jogar”) além do seu trabalho; para ele, o estado de ócio seria uma abominação de aborrecimento. Esta situação, em que cada homem faz o que é naturalmente (
kata phusin = sânscrito
svabhâvatas) o seu fazer (
to heautou prattein = sânscrito
svadharma,
svakarma), não só é o tipo da Justiça,
[xxxii] mas para além disso, nestas condições (i.e. quando o fazedor ama trabalhar), “mais é feito, e mais bem feito, e com maior facilidade, do que de qualquer outra maneira”.
[xxxiii] Os artistas não são comerciantes. “Eles sabem como fazer, mas não como amealhar.”
[xxxiv] Nestas condições, o trabalhador e fazedor não é um assalariado, mas um cujo salário lhe permite continuar a trabalhar e fazer. Ele é como qualquer outro membro da sociedade feudal, na qual os homens não são “contratados”, mas todos são enfeudados e todos possuem uma posição hereditária, a de um profissional cuja recompensa é por dotação ou doação e não “por tanto por hora”.
A separação entre o motivo criativo e o do lucro não só deixa o artista livre para por o bom da obra acima do seu próprio bem, mas ao mesmo tempo abstrai da manufactura a mancha da simonia, ou o “tráfico nas coisas sagradas”; e esta conclusão, que soa estranha aos nossos ouvidos, para quem o trabalho e o jogo são actividades similarmente seculares, está na verdade plenamente de acordo com a ordem tradicional, em que a operação do artista não é um trabalho sem sentido, mas muito literalmente um rito significante e sagrado, e quase tanto como se o próprio produto um símbolo adequado de uma realidade espiritual. É por conseguinte uma via, ou melhor
a via, através da qual o artista, tanto ceramista como pintor, poeta ou rei, pode melhor erigir ou edificar (
exorthoô)
ele próprio ao mesmo tempo que “verdadeira” ou rect-ifica (
orthoô) o seu trabalho.
[xxxv] Deveras, é apenas pelo “verdadeiro” trabalhador que o “verdadeiro” trabalho pode ser feito; igual engendra igual.
Quando Platão estabelece que as artes devem “cuidar dos corpos e das almas dos vossos cidadãos”, e que apenas devem representar-se coisas que são sãs e livres e não quaisquer coisas vergonhosas que aviltem homens livres (
aneleuthera), é tanto como dizer que o verdadeiro artista, em qualquer material, tem que ser um homem livre, entendo-se por isto não um “artista emancipado” no sentido vulgar daquele que não tem obrigações ou compromissos de qualquer tipo, mas sim um homem emancipado do despotismo do vendedor. Quem é a “imitar as acções dos deuses e dos heróis, as intelecções e as revoluções do Todo”, os si mesmos verdadeiros e divinos paradigmas ou ideias das nossas invenções úteis, deve ter conhecido estas realidades “próprias (
auta) e como são realmente (
hoia estin)”: pois “o que não temos e não conhecemos não podemos dar a outro nem ensinar ao próximo”.
[xxxvi]
[i] Aristóteles,
Física II.2.194a 20, hê technê mimeitai tên phusin – ambos empregam meios adequados a um fim conhecido.
[ii] Arte é iconografía, a realização de imagens ou cópias de algum modelo (
paradeigma), tanto visível (apresentado) como invisível (contemplado); ver Platão,
Républica 373B, 377E, 392-397, 402,
Leis 667-669,
Estadista 306D,
Crátilo 439A,
Timeu 28AB, 52BC,
Sofista 234C, 236C; Aristóteles,
Poética I.1-2. Da mesma forma, as obras de arte indianas são chamadas imitações ou comensurações (
anuktri,
tadâkâratâ,
pratikrti,
pratibimba,
pratimâna), e exige-se semelhança (
sârûpya,
sâdrsya). Isto não significa que seja uma semelhança em todos os sentidos que seja necessária para evocar o original, mas uma igualdade para com a quidade (
tosouton,
hoson) e a queididade (
toiouton,
hoion) – ou forma (
idea) e força (
dunamis) – do arquétipo. É esta “igualdade real” ou “adequação” (
auto to inson) que é a verdade e a beleza do trabalho (Leis 667-668,
Timeu 28AB,
Fédon 74-75). Mostrámos noutra ocasião que a
sâdrsya indiana não implica uma ilusão mas apenas uma equivalência real. Está claro em
Timeu 28-29 que por “igualdade” e “semelhança” Platão também entende parentesco (
sungeneia) e analogia (
analogia) reais, e que são estas qualidades que tornam possível para uma imagem o “interpretar” ou “deduzir” (
exêgeomai, cf. sânscrito
ânî) do seu arquétipo. Por exemplo, as palavras são
eidôla das coisas (
Sofista 234C), os “nomes verdadeiros” não estão correctos por acidente (
Crátilo 387D, 439A), o corpo é um
eidôlon da alma (
Leis 959B), e estas imagens são simultaneamente similares e dissimilares a seus referentes. Por outras palavras, o que Platão entende por “imitação” e por “arte” é um “simbolismo adequado”; cf. distinção da imagem e do duplicado,
Crátilo 432.
[iii] “Os padrões do matemático, como os do pintor ou do poeta, têm que ser belos” (G. H.
Hardy, A Mathmatician’s Apology, Cambridge, 1940, p. 85); cf. Coomaraswamy, Why Exhibit Works of Art?, 1943, cap. 9.
[iv] Filebo 51C. Sobre a beleza por participação, ver
Fedro 100D; cf.
Républica 476; Santo Agustinho,
Confissões X.34; Dionísio, De divinis nominibus IV.5.
[v] Leis 657AB, 665C, 700C.
[vi] Leis 670E;
Sum. Theol. I.91.3, I-II.57.3 a. 2.
[vii] Cícero,
Pro quiction XXV.78.
[viii] Républica 395C; cf. 395-401, esp. 401BC, 605-607, e Leis 656C.
[xi] Plotino,
Enéadas V.9.11, como Platão,
Timeu 28AB.
[xv] SB VII.2.1.4; cf. III.3.3.16, XIV.1.2.26, e TS V.5.4.4. Sempre que os Sacrificadores estão em perda, pede-se-lhes que contemplem (
cetayadhvam), e a forma requerida vista deste modo torna-se seu modelo. Cf. Filão,
Moisés II.74-76.
[xvi] Républica 377, 402,
Leis 667-668,
Timeu 28AB,
Fedro 243AB (sobre
hamartia peri muthologian), ver
Républica 382BC (o mau uso das palavras é um sintoma de doença na alma).
[xvii] Ver
Républica 601, por exemplo. Porfírio conta-nos que Plotino se recusava a ter o seu retrato
pintado, objectando “Devo consentir que se deixe, como um espectáculo desejável para a posteridade, a imagem de uma imagem?” Cf. Asterius, bispo de Amasea, ca. 340 d.C.: Não pintes Cristo: pois a humildade da sua encarnação basta-lhe” (Migne, Patrologia graeca XI.167). A base real da objecção semítica às imagens esculpidas, e de todo outro tipo de iconoclasmo, não é uma objecção à arte (simbolismo adequado), mas uma objecção ao realismo que implica um culto essencialmente idólatra da natureza. A figuração da Arca segundo o modelo que foi mostrado no monte (Êxodo 25:40) não é “esse tipo de imaginaria à qual se referia a dita proibição” (Tertuliano, Contra Marcionem II.22).
[xviii] Timeu 28AB; cf. nota 34, acima. Os símbolos que são justamente sancionados por uma arte hierática não são correctos convencionalmente mas sim
naturalmente (
orthotêta phusei parechomena,
Leis 657A).
Da mesma forma, há que distinguir entre le symbolisme qui sait e le symbolisme qui cherche. É o primeiro que o iconógrafo pode e deve compreender, mas ele dificilmente conseguirá fazê-lo a menos que esteja habituado a pensar nestes termos precisos.
[xix] As realidades são vistas “através do olho da alma” (
Républica 533D), “da alma sozinha e consigo mesma” (
Theaetetus 186A, 187A), “fitando sempre o que é autêntico” (
prós to kata tauta echon blepôn aei,
Timeu 28A; cf.
prós ton theon blepein, Fedro 253A), e por conseguinte “por interiorização (intuição) do que realmente é” (
peri to on ontôs ennoiais,
Filebo 59D). Assim mesmo na Índia, é apenas quando os sentidos foram retirados dos seus objectos, somente quando o olho se virou (
aâvrtta caksus), e é com o olho da Gnose (
jñâna caksus), que a realidade pode ser apreendida.
[xx] O
actus primus contemplativo (
theôria, sânscrito
dhî,
dhyâna) e o
actus segundus operativo (
apergasia, sânscrito
karma) dos filósofos escolásticos.
[xxi] “Um homem é capaz de engendrar produções de arte, mas a capacidade para julgar a sua utilidade (
ôphelia) ou perniciosidade para os seus utilizadores pertence a outro” (Fedro 274E). Os dois homens estão unidos no homem integral e conhecedor completo, tal como estão no Arquitecto Divino cujos “julgamentos” estão registados no Génesis 1:25 e 31.
[xxii] Leis 667; para a necessidade de primeira e última causa, ver
Républica 369BC. Quanto à “integralidade”, cf. Richard Bernheimer,
Art: A Bryn Mawr Symposium (Bryn Mawr, 1940), pp. 28-29: “Debe existir um profundo propósito ético em toda a arte, do qual a estética clássica estava perfeitamente ciente … Ter-se esquecido este propósito antes da miragem de modelos e concepções absolutos é talvez a falácia fundamental do movimento abstracto na arte.” O abstraccionista moderno esquece que o formalista Neolítico não era um decorador de interiores, mas antes um homem metafísico que tinha de viver pela sua sagacidade.
A indivisibilidade da beleza e do uso é afirmada por Xenofonte, Memorabilia III.8.8, ”que a mesma casa seja tanto bonita como útil era uma lição na arte de como construir casas correctamente” (cf. IV.6.9). “Omnis enim artifex intendit producere opus pulcrum et utile et stabile… Scientia reddit opus
pulcrum, voluntas reddit utile, perseverantia reddit stabile” (St. Boaventura,
De reductione artium ad theologiam 13; tr. de Vinck: “Todo o fazedor pretende produzir um objecto belo, útil e resistente … o conhecimento faz um trabalho belo, a vontade fá-lo útil e a perseverança fá-lo resistente.” Também para St. Agostinho, o estilo está “et in suo genere pulcher, et ad usum nostrum accommodatus” (
De vera religione 39). Filão define a arte como “um sistema de conceitos coordenados no sentido de um fim útil” (
Congr. 141). Apenas aqueles para quem a noção de utilidade se restringe às necessidades corporais, ou por outro lado, os pseudomísticos que desprezam o corpo em vez de o usar, propugnam a “inutilidade” da arte: também Gautier, “Não há nada verdadeiramente belo excepto o que não pode servir para nada;
tudo o que é util é feio” (citado por Dorothy Richardson,
Saintsbury and
Art for Art’s Sake in England, PMLA, XLIX, 1944, 245), e Paul Valéry (ver Coomaraswamy, Why Exhibit Works of Art? 1943, p. 95). O cinismo de Gautier em “tudo o que é util é feio” ilustra adequadamente as palavras de Ruskin “a indústria sem arte é brutalidade”; dificilmente se poderia imaginar um julgamento mais severo sobre o mundo moderno em que as utilidades são realmente feias. Tal como disso H. J. Massingham, “a combinação do uso e da beleza é uma parte do que de costumava chamar ‘a lei natural’ e é indispensável para a auto-preservação”, e é devido ao negligenciar deste princípio que a civilização “está a perecer” (This Plot of Earth, Londres, 1944, p. 176). O mundo moderno está a morrer da sua próprio incúria exactamente devido ao seu conceito de utilidade prática estar limitado àquele que “pode ser usado directamente para a destruição da humanidade ou para acentuar as desigualdades actuais na distribuição de riqueza (Hardy, A Mathematician’s Apology, p. 120, nota), e é apenas sob estas condições sem precedentes que os escapistas poderiam propor que o útil e o belo são opostos.
[xxvii] Républica 519-520, 539E,
Leis 644, e 803 conjuntamente com 807. Cf. BG III.1-25; também Coomaraswamy, “Lîla”, 1941, e “
Play and Sriousness”, 1942.
[xxviii] Deuterónimo 8:3, Lucas 4:4, João 6:58.
[xxix] R. R. Schmidt, Dawn of the human mind (Der Geist der Forzeit), tr. R. A. S. Macalister
(Londres, 1936), p. 167.
[xxx] Républica 495E; cf. 522B, 611D,
Theaetetus 173AB. Que “a indústria sem arte é brutalidade” é dificilmente lisonjeadora para aqueles cuja admiração no sistema industrial é igual ao seu interesse nele. Aristóteles definiu como “escravos” aqueles que não têm nada mais para oferecer que o seu corpo (
Política I.5.1254b 18). É no trabalho destes “escravos”, ou literalmente “prostitutas”, que o sistema de produção industrial lucrativo se apoia no final. A liberdade política não faz dos trabalhadores em linhas de montagem ou de outros “mecânicos ordinários” aquilo a que Platão chama de “homens livres”
[xxxiii] Républica 370C; cf. 347E, 374BC, 406C. Paul Shorey teve a ingenuidade de ver na concepção da sociedade vocacional de Platão uma antecipação da divisão do trabalho de Adam Smith; ver
The Republic, tr. e ed. P. Shorey (LCL, 1935), I, 150-151, nota b. Na realidade, as duas concepções poderiam ser mais contrárias. A divisão do trabalho de Platão toma como garantido que não é o artista que é um tipo especial de homem mas sim que cada homem é um tipo especial de artista; a sua especialização é para o bem de todos os interessados, tanto produtor como consumidor. A divisão de Adam Smith não beneficia ninguém para além do manufactor e do vendedor. Platão, que detestava qualquer “fraccionamento da faculdade humana” (
Républica 395B), dificilmente poderia ter visto na
nossa divisão do trabalha um tipo de justiça. A investigação moderna descobriu que “os trabalhadores
não são primariamente governados por motivos económicos” (ver Stuart Chase, “
What makes the Worker Like to Work?”
Reader’s Digest, Fevereiro de 1941, p. 19).
[xxxiv] Chuang-tzu, tal como citado por Arthur Waley, Three Ways of Thought in Ancient China (Londres,
1939), p. 62. Não é verdadeiro dizer-se que “o artista é um mercenário que vive pela venda dos seus próprios trabalhos” (F. J. Mather,
Concerning Beauty, Princeton, 1935, p. 240). Ele não trabalha para fazer dinheiro mas aceita dinheiro (ou seu equivalente) de modo o poder continuar a
trabalhar na sua vida – e digo “trabalhar na sua
vida porque o homem
é o que faz.
[xxxv] “Um homem atinge a perfeição pela devoção ao seu próprio trabalho… pelo seu próprio trabalho glorifica Quem teceu isto tudo… Quem quer que faça o seu trabalho nomeado pela sua própria natureza não incorre em pecado algum”. (BG
XVIII.45-46).
[xxxvi] Républica 395C. Ver Aristóteles sobre o “ócio”,
Nicomachean Ethics X.7.5.-7.1177b.