Este texto é uma tradução de um trecho de um artigo de Wolfgang Smith, cientista e escritor, intitulado "Celestial Corporeality" e publicado no
Sophia - The Journal of Traditional Studies, Vol. 5, Nº. 1 em 1999. Este trecho foca a utilização das propriedades da luz para justificar a transcendência do tempo e do espaço. Seguindo a linha dos principais trabalhos do autor, no âmbito do estudo da teologia e metafísica, Smith utiliza recentes e enigmáticas descobertas da física para abordar temas eminentemente metafísicos.
Wolfgang Smith formou-se com a idade de 18 anos na Universidade de Cornell com um B.A. em matemática, física e filosofia. Dois anos mais tarde tirou um M.Sc. em física teórica na Universidade de Purdue. Depois de concluir o ser Ph.D. em matemática na Universidade de Columbia, o Dr. Smith exerceu funções profissionais no M.I.T., U.C.L.A., e na Universidade Estatal de Oregon até se reformar em 1992. Publicou proliferamente sobre matemática em tópicos relacionados com álgebra e topologia diferencial. No entanto, desde o início, Smith evidenciou um grande interesse em teologia e metafísica. No início da sua vida adquiriu um especial interesse por Platão e o neoplatonismo, tendo viajado para a Índia por forma a adquirir conhecimentos relacionados com a tradição Vedântica. Mais tarde, dedicou-se ao estudo de teologia, iniciando a sua carreira como autor Católico metafísico. Para além de contribuir com numerosos artigos em revistas académicas, o Dr. Smith é autor de quatro livros: Cosmos and Transcendence (1984), Teilhardism and the New Religion (1988), The Quantum Enigma (1995) and The Wisdom of Ancient Cosmology (2004).
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Depois de ter reflectido extensivamente sobre a natureza do espaço celestial, será agora adequado referirmo-nos ao assunto do “tempo celestial” – o qual, na realidade, não é mais do que a eternidade. Em primeiro lugar, é necessário referir que, apesar da eternidade ser, em certa medida, a temporalidade da vida divina, é radicalmente diferente do tempo, de tal forma que a noção de duração não é aplicável. Por esta razão, a eternidade tem sido muitas vezes relacionada com um momento, igualmente sem duração; no entanto, enquanto um momento de tempo passa “num instante”, a eternidade simplesmente não passa. É por essa razão designada por um nunc stans, “um agora que perdura”. No entanto, demasiadas vezes têm sido concebida como um presente estático, um presente no qual não pode existir qualquer movimento, e na verdade, qualquer vida. Mas um tal estado, se realizável, seria exactamente a antítese de eternidade, a qual constitui a totalidade e perfeição da vida: “a perfeita possessão de uma interminável vida toda de uma vez”, tal como Boethius disse desta bela forma. O que os partidários de um presente estático não entenderam é que, tanto o passado como o futuro, estão misteriosamente compreendidos dentro do “agora” da eternidade; os outros dois “tempos” não são simplesmente aniquilados, mas sim, de certa forma, feitos coincidir. Na eternidade “toda a sucessão temporal”, diz Nicolau de Cusa, “coincide com um eterno agora.” Por difícil que seja compreender a essência destas frases, ainda assim, algo é claro: só assim – só na base desta “coincidência” – pode uma “perfeita possessão de uma interminável vida toda de uma vez” ser concebida. Este facto resulta de que apenas a vida pode ser eterna – porque eternidade é vida! A vida que conhecemos – uma vida que rompe numa sucessão de momentos e que termina na morte – é uma vida reduzida, uma vida não completa. A verdadeira vida é por natureza eterna, “sempre repousando no seu movimento e sempre movendo-se no seu repouso, sempre nova e ainda assim sempre a mesma,” como diz Baader.
Já vimos que a substância de natureza celestial, a sua “carne”, é indicada como sendo luz. Pode-se então perguntar de que forma é que a luz está relacionada com a eternidade. Como é óbvio, existem vários tipos de luz, desde a luz fotónica dos físicos à “luz incriada” da teologia Ortodoxa, a qual presumivelmente coincide com a luz celestial no sentido da teosofia de Bhoeme. Ainda assim, terá de existir qualquer coisa em comum entre todas estas modalidades, na medida em que cada uma delas pode ser reconhecida como um exemplo de luz. Consideremos a luz tal como a conhecemos, quer seja a sentida através da percepção sensorial, quer seja através do modus operandi dos físicos. Essa luz, apesar de pertencer a uma ordem material, é sem dúvida a menos material de todas as entidades. Tal como referido por Hamberger: “A luz encontra-se na fronteira da materialidade e pode dessa forma servir como imagem do supra-material, apesar de não o ser.”.
É surpreendente o quanto esta observação se revela precisa quando analisada do ponto de vista da física moderna. A afirmação de que a luz se situa “na fronteira da materialidade” é rigorosamente confirmada pela dinâmica e por considerações geométricas. Em primeiro lugar, pelo facto dos fotões apresentarem massa em repouso nula, o que significa que toda a sua energia é cinética. Pode afirmar-se que a luz é um movimento, no qual nada existe de material – nenhuma massa no sentido genérico – que se desloque. A luz constitui assim um limite; situa-se de facto “na fronteira da materialidade.” A mesma conclusão resulta do facto da velocidade da luz ser um absoluto máximo, inatingível por qualquer outro tipo de entidade material. Em benefício dos informados nesta área, note-se que, a variedade octo-dimensional das tangentes fisicamente atingíveis, tem um fronteira constituída por oito cones de luz. A afirmação de Hamberger prova-se assim correcta de um ponto de vista estritamente matemático.
É conhecido que a luz se distingue dos restantes estados da matéria pela misteriosa propriedade da sua velocidade no vácuo ser independente do ponto de referência a partir do qual é medida. A designada velocidade da luz constitui assim uma constante universal, a qual, adicionalmente, desempenha um papel fundamental na física. O que é que isto indica? Não será este um facto que suporta a posição de Boehme quando identifica um modo transcendente de luz como o elemento primordial que suporta a materialidade do nosso mundo. Uma vez que a luz fotónica, de todas as formas de materialidade, é a que mais se aproxima deste elemento primordial, não poderá a invariância e “maximidade” da sua velocidade reflectir a primazia do seu arquétipo? Uma coisa é clara: se a luz fotónica representa, de facto, o elemento primordial, este facto revela-se no plano físico com um estatuto preeminente e normativo. Não é, no entanto, possível prever, em termos metafísicos, qual a forma específica que este estatuto assume; mas é possível reconhecer, a posteriori, a invariância e maximidade da velocidade da luz como características desse tipo.
Será importante considerar que aquilo que é possível assumir do ponto de vista da física em relação a um corpo “constituído por luz”. Concretamente, pensemos neste corpo como um relógio, o qual terá que ser concebido como movendo-se à velocidade da luz. É verdade que tal relógio não poderá ser efectivamente construído; ainda assim, pode ser concebido como uma sequência de relógios comuns, cujas velocidades se aproximam da velocidade da luz. Se pensarmos agora num relógio que marca o tempo através de sucessivos “tiques”, pode-se dizer que, com base na invariância de Lorentz, estes “tiques” irão abrandar à medida que a velocidade do relógio se aproxima da velocidade da luz. Adicionalmente, no limite, quando o relógio se “transforma em luz”, somos obrigados a concluir que os “tiques” param totalmente; o “relógio fotónico” fica imóvel. O que significa isto? Poderá ser dito que para um corpo “feito de luz” – um fotão, em particular – o tempo pára? Poderá ser dito que, desde o momento da sua criação até ao momento em que volta a ser destruído, o fotão, como tal, não experimenta o efeito do tempo? O físico, é claro, não pode dizer tal coisa. Ele está preocupado sobretudo com os resultados das suas observações: observações reais, envolvendo instrumentos corpóreos reais. Para ele, o facto do “relógio fotónico parar” não pode ser mais do que uma consequência formal da invariância de Lorentz. Ainda assim, de um ponto de vista metafísico, o facto formal resulta extremamente sugestivo. O abrandamento dos relógios à medida que a velocidade da luz é aproximada, o facto de que à velocidade da luz os “tiques” param – não consigo conceber qualquer fenómeno físico que melhor espelhe o conceito metafísico de eternidade. Não representam os “tiques” do relógio o tempo? E não marca cada “tique” uma separação entre o futuro e o passado, representando o presente comprimido num ponto? O que pode, então, significar que um “relógio fotónico” fique imóvel. Só pode significar uma coisa: Que para um “corpo de luz” não existe uma separação entre o futuro e o passado, nem existe um “agora” separativo. Claramente, esta correspondência entre o facto formal e a metafísica da eternidade é demasiado importante para ser ignorada. Aparentemente, a física relativista atesta uma conexão entre a luz e a transcendência do tempo.
E em relação à transcendência do espaço? Não terá a invariância de Lorentz algo a dizer em relação a esta questão? Na realidade tem. Relembre-se o fenómeno da contracção de Lorentz: uma barra, por exemplo, irá contrair-se à medida que a sua velocidade longitudinal aumenta. Esta contracção não deverá ser entendida como uma compressão provocada por uma força exterior, mas sim relacionada com a relatividade do comprimento, com a extensão espacial. Adicionalmente, no limite, à medida que a velocidade longitudinal se aproxima da velocidade da luz, o comprimento da barra aproxima-se de zero. Assim, uma “barra fotónica” não tem qualquer comprimento ou extensão. Mas a extensão em questão é obviamente uma do tipo “separativo”. E assim, concluímos que um “corpo de luz” exibe formalmente uma não separação espacial, característica do reino celestial.
Existe ainda mais um ponto a ser referido: em alternativa à afirmação de que a luz está em movimento em relação a corpos não fotónicos, poderá ser mais iluminado dizer que os corpos não fotónicos estão em movimento em relação à luz. Como imagem do supra‑material é, afinal, a luz que comporta um estatuto normativo. O que poderá então significar que os comuns corpos terrenos – seja qual for o estado de movimento entre eles – estão a deslocar-se a uma velocidade universal de quase 300,000 quilómetros por segundo em relação à luz. Parece-me que este facto curioso e absolutamente enigmático só pode significar uma coisa: O movimento universal da matéria terrena em relação à luz, indica precisamente a distância ontológica que separa a corporalidade terrena da celestial. Pode se dizer que este movimento universal constitui assim uma marca ou uma imagem daquilo que a teologia designa como a Queda, a Expulsão do Paraíso. Esta Queda, esta Expulsão, reflecte-se na própria estrutura do universo. Não só a luz fotónica exemplifica o eterno, como aparentemente, a velocidade universal de 300,000 quilómetros por segundo constitui o testemunho da nossa expulsão do estado celestial.
A “Luz”, escreveu Hamberger em 1863, “situa-se na fronteira da materialidade, e pode desta forma servir como imagem do supra-material, apesar de não o ser ela própria”. Até a física da luz, um século depois, fala das “coisas invisíveis de Deus.” (Rom. 1:20) Não abertamente, é claro – não como fala das coisas físicas – mas, na verdade en ainigmati, “como um enigma.” (I Cor. 13:12) E, ainda assim, a física refere-se a entidades celestiais, não vagamente, mas da forma mais precisa concebível. Como tentei demonstrar – usando nada mais do que a invariância de Lorentz – a luz fotónica espelha, de uma forma absolutamente precisa, quer a eternidade, quer a intensa extensão da corporalidade celestial. Para ser preciso, não se trata, de facto, de uma precisão matemática – uma vez que a qualidade não se aplica ao reino celeste – mas sim, de uma precisão apropriada ao discurso metafísico: uma precisão baseada em analogia. Com este entendimento, poder-se-á concluir que a física da luz, acaba por pender para o lado de Jacob Boehme e a sua escola, no que diz respeito à corporalidade celestial.