terça-feira, 30 de agosto de 2011

Sabedoria Ameríndia


Nós vimos o Grande Espírito (Wakan Tanka) em quase tudo: no sol, na lua, nas árvores, no vento e nas montanhas. Às vezes aproximamo-nos d’Ele através destas coisas.

Búfalo Andante (Walking Buffalo)

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Editorial SP3: Natureza e Crise Ambiental

Olhar a infinidade no finito é ver que dada flor à nossa frente é eterna,
porque uma eterna primavera se afirma através do seu frágil sorriso.
Frithjof Schuon


Continuamos, nesta terceira publicação dedicada ao estudo da tradição e da sophia perennis, a divulgar a corrente de pensamento tradicionalista ou perenialista. O tema em foco no número anterior da Revista Sabedoria Perene foi a arte. Neste terceiro número, a temática é outra – a natureza e a crise ambiental –, mas a mensagem subjacente aos textos apresentados é a mesma, a da sabedoria perene, aquela sabedoria incriada e imutável que dissolve disparidades aparentes e que perfura a superfície de quaisquer objectos de estudo, para deixar transparecer o que neles há de mais profundo e de essencialmente idêntico.

É assim, à luz desta sabedoria perene, que o leitor que nos acompanhou no número anterior poderá reconhecer diversas correspondências entre a arte sagrada e a natureza virgem. De facto, não deixa de ser significativo que sejam os povos que ainda imprimem uma dimensão sagrada nas suas realizações artísticas os que melhor protegem e acarinham o meio natural em que se inserem; é igualmente significativo que, pelo contrário, sejam os povos fundadores da moderna indústria de produções artísticas mundanas, invariavelmente concentrados em grandes centros urbanos, os que mais delapidam a natureza e os que com ela se relacionam como se de uma mera fonte de recursos a explorar se tratasse. Segundo o padrão de pensamento tradicional que caracteriza a mentalidade dos povos do primeiro tipo, quase totalmente extintos, tanto a arte sagrada como a natureza virgem são dádivas “sobrenaturalmente” naturais, pelo que a atitude sã e normal do homem para com essas dádivas deverá ser a da sua preservação. Ao contrário, o padrão de pensamento moderno que caracteriza a mentalidade dos povos do segundo tipo, esmagadoramente predominantes nos dias de hoje, parece conduzir-nos precisamente à violação destas dádivas, ora pela promoção de correntes artísticas “desnaturadas”, como é o caso do surrealismo e de toda a forma de arte abstracta, ora pela adopção de atitudes de vida que nos conduziram a uma crise ambiental sem precedentes, a qual se tornou já demasiado evidente para poder ser ignorada.

O texto de Harry Oldmeadow, seleccionado para Introdução deste terceiro número da Revista Sabedoria Perene, oferece uma primeira indicação sobre aquela que é, segundo a perspectiva tradicionalista ou perenialista, a principal causa da actual crise ambiental (e que é, não o podemos deixar de salientar, a mesma que explica a crise que assola o mundo da arte). Neste texto, o autor destaca que esta causa é raramente percebida e que a sua compreensão em profundidade implica o relembrar de princípios metafísicos e cosmológicos intemporais, os quais podem ser ignorados mas não refutados. Estes princípios, tidos em consideração em todos os contextos civilizacionais, épocas e lugares, estão espelhados nos escritos de inúmeros autores tradicionalistas ou perenialistas da actualidade, oriundos das mais variadas proveniências culturais e denominações espirituais ou religiosas. Estes autores, que incluem figuras contemporâneas tais como René Guénon, Frithjof Schuon, Ananda Coomaraswamy e Titus Burckhardt, reflectem, de forma renovada, a mesma perspectiva que um Platão semeou no seio do mundo greco-romano, que um Rumi ou um Ibn Arabi traduziram para o mundo islâmico, que um Mestre Eckhart emprestou à cristandade ou que um Shânkara ofereceu à tradição hindu, para mencionar apenas alguns dos inspirados precursores tradicionalistas ou perenialistas de todos os tempos.

São precisamente estes princípios intemporais que permeiam o conteúdo do primeiro bloco de textos deste terceiro número da revista, agrupados sob o título Metafísica e simbolismo: Sacralização da Natureza. Este primeiro bloco contém dois ensaios de Frithjof Schuon que guiam o leitor para uma compreensão mais profunda da dimensão sagrada da Natureza. Os outros dois textos que compõe este bloco, um de Titus Burckhard e outro de Alberto Vasconcellos Queiroz, salientam a necessidade de todos os que se preocupam com a actual crise ambiental ponderarem seriamente sobre esta dimensão sagrada da Natureza, sem a qual a sua preservação, bem como a da vida de um modo geral, se torna insustentável.

Para compreender a causa mais profunda da crise ambiental é necessário, repetimos, relembrar princípios metafísicos e cosmológicos e ponderar sobre a dimensão sagrada da natureza. As consequências que derivam do esquecimento destes princípios e da rejeição desta dimensão da natureza estão bem patentes no segundo bloco de textos da revista, reunidos sob o título Crise ambiental: Profanação da Natureza. Os autores destes textos, Seyyed Hossein Nasr, Lord Northborne, Gai Eaton, Oren Lyons, Mateus Soares de Azevedo e William Stoddart, são unânimes em reconhecer neste esquecimento e nesta rejeição uma profunda enfermidade intelectual ou espiritual, enfermidade esta que René Guénon diagnosticou com precisão há praticamente um século. Em resumo, segundo a perspectiva tradicionalista ou perenialista, a crise ambiental é apenas um sintoma de uma ainda mais profunda crise intelectual ou espiritual. Segundo esta mesma perspectiva, a esperança para a resolução da crise ambiental (e para as demais crises) reside na intelectualidade pura, aliada a um conhecimento sólido de princípios intemporais e a uma noção clara das implicações práticas que a perda deste tipo de conhecimento acarreta – uma perda que nenhum avanço na ciência moderna nem nenhuma solução de engenharia poderá compensar!

Mormente, para além destes textos que nos alertam para a necessidade de reconhecer que não se perturba impunemente o equilíbrio da natureza, algo que os povos de outrora sabiam bem melhor do que nós, e que a superioridade do conhecimento científico moderno é totalmente insuficiente para nos proteger de todos os efeitos provindos de uma natureza desequilibrada, o Epílogo que encerra este terceiro número da revista e que foi a fonte de inspiração para a sua capa, um texto penetrante de Frithjof Schuon, recorda-nos que o homem é portador de uma missão espiritual e que a deve cumprir, que o homem é pontifex ou khalîfah, um mediador imediato entre o mundo sobrenatural e o mundo natural, entre o Céu e a Terra, entre Deus e a Natureza.

Não se poderá certamente exigir que uma mente desconhecedora do conceito da intelectualidade pura e destreinada na compreensão e aceitação de princípios irrefutáveis, como é o caso de uma mente formatada ao padrão de pensamento moderno, aceite sem resistência que existe uma relação directa entre o incumprimento da missão espiritual do homem e a crise ambiental dos nossos dias. É por essa razão que os autores perenialistas ou tradicionalistas lidam mais directamente com a enfermidade intelectual ou espiritual que contagiou o mundo moderno, e não apenas com os sintomas da mesma – um desses sintomas, entre outros, a crise ambiental. É também por essa razão que os autores perenialistas ou tradicionalistas não advogam um sentimentalismo ecológico estéril, nem defendem que se abdique de todos os benefícios que a ciência moderna oferece ou que se retorne a modos de vida “primitivos”, mas sim que se restaure uma intelectualidade viva, iluminada pela metafísica e pelo simbolismo, uma intelectualidade que imprima no homem a vontade de conhecer, adorar e agradar ao “Pai Céu”, de compreender, acarinhar e cuidar da “Mãe Terra”, e de manter acesa a ligação equilibrada entre estas duas dimensões da vida.

Dito isto, entregamos ao leitor as páginas de mais este número da Revista Sabedoria Perene e, desde já, estas duas breves passagens que relevam a importância da função espiritual do homem para a resolução da crise ambiental.

O homem não pode exercer a sua função mediadora se permitir que o seu olhar se afaste do Deus que o nomeou para a exercer e que está sempre presente para guiá-lo se este procurar orientação. Se usar a dádiva divina que é o seu domínio da Natureza sem ser à luz de Deus, mas antes para seu engrandecimento, cedo se descobre isolado e insignificante, lutando em vão contra as forças da Natureza. No final, até os seus próprios poderes se terão virado contra si. A Natureza manifesta na mudança as imutáveis disposições do Todo-Poderoso Deus. A Natureza não tem escolha. Nós temos escolha, e temo-la exercido de uma forma e até a um ponto do qual parece não existir fuga aos envolvimentos que recaíram sobre nós.
Lord Northborne (p. 79)

A perda de harmonia entre o homem e o seu meio ambiente natural é apenas um aspecto da perda de harmonia entre o homem e o seu Criador. Aqueles que viram as costas ao Criador e O esquecem não mais podem sentir-se em casa na criação. Eles assumem o papel de bactérias que acabam sempre por destruir o corpo que invadiram. Desta forma, o “Vice regente de Deus na terra” deixa de ser o curador da natureza e, ao perder a sua função, passa a ser um estranho que não reconhece os marcos na terra nem se ajusta aos costumes deste lugar; alienado, apenas o consegue ver como matéria-prima a explorar. Ele pode encontrar riquezas e conforto na exploração, mas não a felicidade.
Gai Eaton (p. 86)

Nuno M. Almeida
Vale da Lama, 2 de Agosto de 2011

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Revista Sabedoria Perene - Número 3

(clique sobre a imagem para descarregar "pdf") 


Editorial

Introdução

“Direcções para o suprasensível” – Harry Oldmeadow

Metafísica e simbolismo: Sacralização da Natureza

Ver Deus em toda a parte – Frithjof Schuon
Uma metafísica da natureza virgem – Frithjof Schuon
O simbolismo da água – Titus Burckhardt
Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de Assis e Swâmi Râmdâs – Alberto Vasconcellos Queiroz

Crise ambiental: Profanação da Natureza

As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental – Seyyed Hossein Nasr
A agricultura e o destino humano – Lord Northborne
O protesto da terra – Gai Eaton
A nossa mãe terra – Oren Lyons
Primitivos e ultra-sofisticados – Mateus Soares de Azevedo
Sobre a ecologia: os quatro poluentes – William Stoddart

Epílogo

Pontifex e Khalîfah – Frithjof Schuon

Citações espirituais

Fontes dos textos

Breves notas sobre os autores

______________________

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Carta de René Guénon a Frithjof Schuon sobre o livro "A Unidade Transcendente das Religiões"


(...) Apesar de, como certamente estará informado, eu ter tido notícias suas recentemente, fiquei extremamente feliz por ter novas suas diretamente, e também por ouvir que eu posso receber a visita de um de nossos amigos; talvez v. mesmo possa nos fazer uma nova visita proximamente...

Obrigado por enviar os sucessivos capítulos de seu livro [A Unidade Transcendente das Religiões], que agora foi completado; considero-o do maior interesse, e teria sido uma grande pena se v. tivesse decidido não escrevê-lo. Não há modificações que eu gostaria de sugerir, nem há nada a acrescentar ou a remover; penso que o que concerne ao Cristianismo, em particular, nunca foi apresentado antes deste ponto de vista, e isto pode ajudar algumas pessoas a entenderem muitas coisas. É importante que este livro seja publicado o mais cedo possível; Luc Benoist me disse que isto pode acontecer para o fim do ano, mas como a nova edição de La crise du monde moderne sairá aparentemente mais cedo que ele disse, espero que este fato possa antecipar a publicação dos próximos volumes da coleção, isto é, o seu livro primeiramente e então o de Coomaraswamy [Hindouisme et Bouddhisme]. Acerca do novo título para seu livro [De l’unité transcendante des religions], ele me parece preferível à versão anterior [De l’unité ésotérique des formes traditionnelles], porque é mais curto e porque será talvez mais claro para os leitores ainda não acostumados à nossa terminologia.

(...) Quanto ao que v. diz em sua resposta sobre S. João, haveria apenas isto a acrescentar: muitos muçulmanos também consideram S. João como um Profeta, pertencente à família de Al-Khidr, Sayyid-na Idris e Sayyid-na Ilyas; seja como for, compreende-se que ele seria apenas Nabi, e não Rasûl. A este respeito, não me recordo se já tive a ocasião de lhe contar que o que me deu a ideia de escrever os artigos sobre a “realização descendente”, publicados no começo de 1939, foi o fato de alguns xiitas reivindicarem que o Wali fosse um maqâm mais elevado (do ponto de vista de al-qurb, ‘proximidade’) do que o Nabi, e mesmo que o Rasûl. O que eu escrevi recentemente sobre os Malamatiya, como v. verá ( ou talvez já tenha visto, pois o número 4 de Études Traditionnelles já deve ter sido publicado) também lida com a mesma questão; este artigo concorda com o que v. mesmo escreveu acerca da relação dos iniciados com o povo (...)

Sim, recebi de Buenos Aires os dois estudos que v. menciona, sobre o Budismo e os “Nomes Divinos”; tive a mesma impressão sua, especialmente do segundo. É bem difícil de ler e contém muitas complicações desnecessárias, e mesmo muitas correspondências que parecem injustificadas; pergunto-me sobre que autoridades o autor poderia fundamentar suas asserções... Certamente que o livro de S. Abu Bakr [The Book of Certainty] é bem diferente; v. não acha que, se fosse traduzido para o francês, seria válido incluí-lo na coleção Tradition? Não creio que Luc Benoist poderia ter objeção à ideia.

De fato, conheci madame Breton (então mademoiselle Dano) em meus últimos tempos em Paris e, desde então, ela me escreve de tempos em tempos. Penso que v. fez bem em responder a ela, ela é certamente bastante agradável e parece ter um bom entendimento, e não há razão para não ter confiança nela; ademais, é um fato gratificante que não pertença àquela categoria de correspondentes – demasiado numerosa – que são criadores de casos e indiscretos. Devo também mencionar que ela e seu cunhado, Paul Barbotin, foram de considerável ajuda para mim em elucidar algumas maquinações de membros do R.I.S.S. e outros do gênero. Acrescentarei, para que saiba exatamente com quem está lidando, que ela é claramente católica e está em contato com Charbonneau-Lassay.

Seu capítulo sobre as formas de arte será certamente bastante apropriado para o volume de Bharata Iyer [Art and Thought, em homenagem ao 70º aniversário de Ananda Coomaraswamy]; Marco Pallis escreveu para dizer que preparará algo sobre a vestimenta tradicional. Quanto a mim, infelizmente não fiz nada até agora; já que parece que os artigos serão solicitados logo, pergunto-me se uma tradução de meu estudo sobre a teoria dos elementos, que apareceu no número especial de Études Traditionnelles dedicado à tradição hindu, não seria apropriado. Dificilmente eu poderia escrever agora algo de alguma extensão, nem isto será possível até que eu conclua com todas as questões de publicações e republicações que estão em pauta presentemente, pois tudo isso me toma muito tempo e é ainda mais complicado pela lentidão e irregularidade do correio. É verdade que o período de silêncio destes últimos anos foi vantajoso para mim, no sentido de que de outra maneira teria sido provavelmente difícil completar quatro novos livros durante este tempo; mas, de outro ponto de vista, a ausência prolongada de notícias tornou-se algo bastante duro...

Meu obrigado a v. e a todos os nossos amigos pelos bons votos; continuo com boa saúde, graças a Deus, e minha família se junta a mim para enviar-lhe nossas saudações e boas lembranças.

Min al-faqir ilâ Rabbi-hi
‘Abd al-Wahid Yahya.

domingo, 31 de julho de 2011

A Unidade Transcendente das Religiões




Tal como anunciado anteirormente, a nova edição brasileira de A Unidade Transcendente das Religiões está já disponível. O preço deste clássico de Frithjof Schuon é R$ 42,00 (18 euros) e pode ser encomendado através do endereço eletrónico do Instituto René Guénon em S. Paulo (irget@terra.com.br).

Este é um dos raros livros que oferecem um novo e genuíno panorama da realidade e do mundo em que vivemos. A Unidade Transcendente das Religiões é sem nenhum favor uma das obras mais importantes publicadas no Século XX.

Em língua portuguesa, foi publicado pela primeira vez em S. Paulo, em 1953, pela editora Martins; depois em Lisboa, nos anos 1980, por Edições Dom Quixote, de Lisboa. A presente edição é uma nova tradução, revista e ampliada, feita de acordo com a mais recente edição francesa de Éditions du Seuil, de Paris.

T. S. Eliot, responsável pela primeira de mais de uma dezena de edições do livro em inglês, escreveu: “Não conheço obra mais impressionante no campo do estudo comparado das religiões do Oriente e do Ocidente.”

Huston Smith, o mais influente autor e professor de história das religiões nos EUA, autor do best-seller As Religiões do Homem, disse de Frithjof Schuon: “Não conheço nenhum pensador que possa rivalizar com ele.”

Esta que pode ser considerada a primeira obra do grande metafísico e pensador religioso Frithjof Schuon, expõe as ideias semente que o autor viria posteriormente, ao longo 47 anos e em 22 obras doutrinais, a analisar, ou melhor, a sintetizar, através de todos os pontos de vista concebíveis e muitas vezes no limite do exprimível; aquelas mesmas ideias semente que constituem a substância de toda a sabedoria e de toda a religião, a sophia perennis e a religio perennis.

Anúncio - Revista Sabedoria Perene 3

Tal como prometido, estamos a ultimar a publicação do terceiro número da Revista Sabedoria Perene, dedicado à Natureza e à Crise Ambiental. Deste modo, podemos começar por revelar o conteúdo completo deste número.

Aqui o deixamos com a esperança que os nossos leitores venham a dar por merecida esta já longa espera. Fica também a promessa que este é um trabalho que pretendemos dar continuidade.


Editorial

Introdução
“Direcções para o suprasensível” – Harry Oldmeadow

Metafísica e simbolismo: Sacralização da Natureza
Ver Deus em toda a parte – Frithjof Schuon
Uma metafísica da natureza virgem – Frithjof Schuon
O simbolismo da água – Titus Burckhardt
Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de Assis e Swâmi Râmdâs – Alberto Vasconcellos Queiroz

Crise ambiental: Profanação da Natureza
As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental – Seyyed Hossein Nasr
A agricultura e o destino humano – Lord Northborne
O protesto da terra – Gai Eaton
A nossa mãe terra – Oren Lyon
Primitivos e ultra-sofisticados – Mateus Soares de Azevedo
Sobre a ecologia: os quatro poluentes – William Stoddart

Epílogo
Pontifex e Khalîfah – Frithjof Schuon

Palavras Trovão

É do conhecimento geral que a capacidade de conhecimento ou de compreensão é função do carácter: que esta se detém brusca e “misteriosamente” num homem inteligente que carece de determinada qualidade moral e que, desta forma, cai em aberrações logicamente inexplicáveis porque incompatíveis com a sua envergadura intelectual. As virtudes essenciais – não apenas vocacionais – são simultaneamente qualidades morais e atitudes contemplativas, logo belezas da alma e do espírito e, por esta razão, chaves para a gnose (…)

Frithjof Schuon - Approches du phénomène religieux (Le courrier du livre, Paris, 1984)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Esoterismo & Exoterismo no Cristianismo, Islão e Judaísmo

Durante o próximo mês será publicada pela editora do Instituto René Guénon de Estudos Tradicionais uma nova edição da obra "A Unidade Transcendente das Religiões", de Frithjof Schuon (pedidos pelo email irget@terra.com.br).

Deixamos os leitores com esta genial e profunda síntese, extraída do capítulo “O aspecto ternário do monoteísmo”:

(...) O monoteísmo, revelado a Abraão, possuía o esoterismo e o exoterismo em perfeito equilíbrio e, em certa medida, em sua indistinção primordial, ainda que se tratasse somente de uma primordialidade relativa às tradições de estirpe semítica; com Moisés, é o exoterismo que, por assim dizer, tornou-se religião, no sentido de que ele determina a forma desta última, sem prejudicar, contudo, a sua essência; com o Cristo é o inverso que acontece, com o esoterismo, de certa maneira, tornando-se por sua vez religião; com Maomé, enfim, o equilíbrio inicial é restabelecido e o ciclo da religião monoteísta é fechado. Estas alternâncias na Revelação integral do monoteísmo procedem da própria natureza deste e, por conseguinte, não são imputáveis somente a vicissitudes contingentes; a “letra” e o “espírito”, estando compreendidos sinteticamente no monoteísmo primordial ou abraâmico, deviam cristalizar-se de alguma maneira, por diferenciação e sucessivamente, no decurso do ciclo da Revelação monoteísta. Assim, o Abraamismo manifestou o equilíbrio indiferenciado do “espírito” e da “letra”; o Mosaísmo, a “letra”; o Cristianismo, o “espírito”; e o Islã, o equilíbrio diferenciado desses dois aspectos da Revelação. (...)

Um peregrino cristão na Índia



O Padre Henri Le Saux (1910-1973) foi um monge beneditino francês que viveu os últimos 24 anos da sua vida na Índia, onde ficou conhecido como Swami Abhishiktananda.

"Um Peregrino Cristão na Índia" é uma muito interessante obra de Harry Oldmeadow, que nos oferece um relato da exemplar e inspiradora viagem espiritual deste monge, do seu marcante encontro com Ramana Maharshi, das suas experiências místicas no Monte Arunachala, e do seu profundo interesse pela metafísica e pela espiritualidade da Índia, bem como pela conciliação destas realidades com a sua herança e função sacerdotal cristã.

Esta muito recomendada obra introduz alguns dos aspectos-chave da sophia perennis, tais como a primazia da metafísica e as inter-relações dos universos esotérico e exotérico das diferentes tradições religiosas da humanidade, entre outros. Esta obra discute ainda, de forma sóbria e clara, a importância destes aspectos-chave para a abordagem a temas tais como, por um lado, a ambivalência do exclusivismo e do sincretismo religioso e, por outro lado, a pseudo-espiritualidade que se instalou nos movimentos “Nova Era” da actualidade.

Esta excelente e muito recomendada obra está organizada da seguinte forma:


I: “Consecration to God”: Life and Work
1. A biographical Sketch
2. Friends and Influences
3. Writings

II: “In the Mystery of God”: Spiritual Themes in Abhishiktananda’s Writings
4. The Monk’s Vocation and Sannyasa
5. Advaita
6. The Cosmic Teophany
7. Way Staions in the Spiritual Path
8. Signs: The limits of Religious Forms
9. Dialogue: Meeting in the Cave of the Heart

III: “Unity and Diversity”: Abhishiktananda in Prespective
10. Abhishiktananda and the Perennial Philosophy
11. Abhishiktananda’s Gift




sábado, 21 de maio de 2011

Uma metafísica da natureza virgem

Devemos um pedido de desculpas aos leitores do Sabedoria Perene. Criámos expectativas para a publicação do terceiro número da revista Sabedoria Perene, o que ainda não aconteceu. Na verdade temos esse número integralmente preparado, mas infelizmente fomos obrigados a interromper a sua revisão final por estarmos num momento de quase total indisponibilidade. Espero que nos possam desculpar e deixamos a promessa de concluir este trabalho assim que nos for possível.

Entretanto, e como ainda temos vários artigos da revista para apresentar, deixo-vos para já o trecho inicial do curto mas extraordinário texto de Frithjof Schuon sobre a tradição dos índios da América do Norte e a sua relação com a natureza, traduzido por Noémia Silva. Este texto foi traduzido a partir do livro publicado pela Word Wisdom, “The Feathered Sun – Plain Indians in Art and Philosophy”.



Toda a tradição dos índios da América do Norte, excepto os do Noroeste, Califórnia e alguns do Sudoeste, está contida, do ponto de vista do simbolismo geométrico, na cruz inscrita no círculo: o círculo corresponde ao Céu, enquanto que a cruz indica as quatro direcções do espaço e todos os demais quaternários do Universo; indica igualmente o ternário vertical Terra – Homem – Céu, o que coloca o quaternário horizontal em três níveis. Pode ainda dizer-se que a sabedoria dos índios peles-vermelhas baseia-se, simbolicamente falando, nos números “pitagóricos” quatro e três – o primeiro “horizontal” e o segundo “vertical” – e na sua combinação, o número doze. Esta “duodecimidade” deve ser visualizada como composta de três quaternários horizontais, dispostos uns sobre os outros ao longo de um eixo central ou, mais precisamente, de três discos, em cada um dos quais se encontra a cruz horizontal das quatro direcções. Estes três níveis são por vezes representados sob a forma de três anéis pintados na árvore da Dança do Sol.

No simbolismo da cruz e do círculo, o círculo estático e espacial da terra combina com o círculo dinâmico e temporal do dia ou do céu: o círculo pode ser o horizonte com os quatro pontos cardinais se inclui a cruz, ou pode ser o curso do sol com o amanhecer, o dia, o entardecer e a noite, ou o ano com a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno.

E isto é muito importante: o homem é o centro, tanto das quatro direcções horizontais do espaço, como do ternário vertical da hierarquia cósmica; em relação a este último aspecto, ele é identificado com a Vida e é o mediador entre a Terra “sob os seus pés” e o Céu “por cima da sua cabeça”, ou entre a inércia e a luz. Em relação ao primeiro aspecto, ele é a Inteligência na qual os quatro cantos são reflectidos e unidos, e ele é, assim, identificado com o eixo cósmico, a árvore do mundo. Ele é o Calumet que une todos os seres vivos numa única oração e, ao mesmo tempo, o Fogo central que marca o centro do mundo e, ainda (o que significa o mesmo), a brasa que transforma o tabaco em fumo ou a Terra em Céu. O homem está duplamente “no centro”, primeiro no plano horizontal, como Inteligência e porta-voz de todas as criaturas terrestres (fragmentárias em relação a ele), e segundo no eixo vertical como mediador: nele se encontram a Terra e o Céu, e nele são sintetizadas as possibilidades essenciais no seu plano de existência.

Se a cabeça humana corresponde ao Céu e os pés representam a Terra, a região do umbigo ou do útero representa o Homem. O Homem é o espírito encarnado; se fosse só matéria, ele identificar-se-ia com os pés; se fosse só espírito, ele seria a cabeça, isto é, o Céu; ele seria o Grande Espírito. Mas o objectivo da sua existência é estar no centro: é transcender a matéria enquanto permanece nela, e compreender a luz, o Céu, a partir deste nível intermediário. É verdade que as outras criaturas também participam na vida, mas o homem sintetiza-as: ele carrega toda a vida em si mesmo e, por essa razão, torna-se o porta-voz de toda ela, o eixo vertical onde a vida se abre ao espírito e onde se converte em espírito. Em todas as criaturas terrestres a inércia fria da matéria converte-se em calor, mas somente no homem o calor é convertido em luz.

Dissemos que as criaturas inferiores são fragmentárias; mas elas não têm apenas este aspecto “acidental” que permite ao homem matá-las e usá-las para nutrição, elas têm também um aspecto “essencial”, devido ao seu simbolismo concreto por um lado, e à sua “anterioridade” por outro: criadas antes do homem, elas podem manifestar algo da Origem Divina, e é este aspecto que apela por vezes à sua veneração; é em virtude deste aspecto transcendente que o Grande Espírito prontamente se manifesta – no mundo dos índios – através de animais e plantas, e mesmo através dos grandes fenómenos da Natureza, como o sol, a rocha, o céu ou a terra. A manifestação múltipla do Grande Espírito, do ponto de vista do simbolismo e da acção celestial, equivale ao Grande Espírito; as coisas não são mistérios em si mesmas, mas sim manifestações de mistérios, e o Grande Espírito, ou o Grande Mistério, sintetiza-as na Sua Unidade transcendente.

Palavras Trovão

Muitos são de opinião que uma ideia não é nada,
E o que conta é pura concentração;
Ser, não pensar. Mas eu digo, pelo contrário,
A ideia é tudo, o mero ser é ilusão.
É da ideia que se molda o ser do coração:
O que eu penso, eu me torno. Toda criança sabe
Que as graças da realização já estão contidas 
Na ideia da Eternidade.

Frithjof Schuon - Songs without names, fourth collection - LVIII

quinta-feira, 31 de março de 2011

Natureza e "Nova Era"

O texto do Prof. Seyyed Hossein Nasr que constará no terceiro número da Revista Sabedoria Perene, já apresentado, inclui alguns comentários relavantes sobre os movimentos "Nova Era". Pela pertinência dos mesmos, aqui fica o destaque.

*


(...) Não é concedida qualquer objectividade à realidade da natureza percebida através do conhecimento religioso. É por isto que até o simbolismo se tornou subjectivizado – é reivindicado como sendo “meramente” psicológico, à la Jung. Todos os símbolos que o homem tradicional via no mundo da natureza como sendo objectivos e como sendo parte da realidade ontológica da natureza foram postos de parte por este tipo de mentalidade que já não leva a sério o conhecimento religioso da natureza.

Durante estes últimos trinta anos, quando se fez sentir a sede por uma aproximação mais holística à natureza, algo ainda pior aconteceu, pois nem a religião convencional nem a ciência moderna mostraram qualquer interesse no conhecimento religioso e simbólico da natureza e numa aproximação holística. A procura de água para esta sede infiltrou-se sob as estruturas da cultura ocidental e surgiu na forma de movimentos “Nova Era”, dos quais praticamente todos estão muito interessados na ciência do cosmos. Mas o que estes movimentos reivindicam como ciência é na realidade uma pseudo-ciência da “Nova Era” do cosmos. Não é uma ciência tradicional autêntica, porque a ciência tradicional do cosmos tem que estar relacionada com a estrutura religiosa tradicional. Neste clima da “Nova Era”, a palavra “cósmico” ganhou uma grande prevalência precisamente devido à escassez de um conhecimento religioso autêntico do cosmos no mundo actual. De algum modo a sede tinha de ser satisfeita. Assim ocorreu a escavação dos ensinamentos esotéricos ocidentais sobre a natureza – geralmente apresentados de modo distorcido – ou empréstimos das religiões orientais e dos seus ensinamentos sobre a natureza, muitas vezes distorcidos. Nem mesmo o famoso e influente livro de Fritjof Capra, O Tao da Física, fala verdadeiramente de cosmologia hindu ou de física chinesa, mas apenas menciona certas comparações entre a física moderna e ideias metafísicas hindu e taoistas.

Certamente que existem muitas e profundas correlações e concordâncias para serem encontradas entre certos aspectos da biologia, da astronomia e da física quântica, de um lado, e as doutrinas orientais da natureza, do cosmos, do outro lado. Eu seria a última pessoa a duvidar desta verdade. Mas o que quase sempre ocorreu não foi o tipo de comparação profunda que temos em mente, mas a sua paródia, um tipo de versão popularizada de um conhecimento religioso da natureza, que habitualmente envolve algum tipo de ocultismo ou mesmo algum tipo de culto existente. O grande e visível interesse pelo xamanismo na América, e pelo fenómeno integral da tradição dos índios americanos (a qual é uma das maiores e mais belas tradições primordiais que ainda sobrevive até certo ponto), com sessões xamânicas de fim-de-semana, deve-se precisamente ao facto de que tais ensinamentos apelam a um tipo de mentalidade que procura alguma forma de conhecimento da natureza com carácter espiritual e holístico, para além daquele que a ciência moderna oferece. Este fenómeno é um dos paradoxos dos nossos dias e não ajudou a crise ambiental em nenhuma maneira apreciável. Na verdade, criou uma certa confusão no domínio da religião e criou um vazio entre as organizações religiosas convencionais que ainda sobrevivem no ocidente – sejam elas católica, protestante ou ortodoxa – e estes pseudo-movimentos e o fenómeno “Nova Era”, contra os quais aquelas organizações se opõem justamente. O facto destes movimentos pseudo-religiosos serem muito pró-ambiente, ainda que de uma maneira ineficiente, provocou que muitas das pessoas comuns adoptassem uma postura contrária às posições que deveriam defender. Assim temos, na América, a situação paradoxal de que os grupos de cristãos mais conservadores são os menos interessados no ambiente. Este fenómeno não foi originalmente causado pelo surgimento das religiões “Nova Era”, mas está certamente relacionado com e é fortalecido por elas.

sábado, 26 de março de 2011

Entrevista com William Stoddart

Estamos de novo profundamente agradecidos ao nosso amigo brasileiro Alberto Vasconcellos Queiroz, da Editora Sapientia, por nos ter enviado a seguinte tradução de uma entrevista dada por William Stoddart, autor britânico hoje radicado no Canadá, a propósito da publicação na Croácia de seu livro Cristãos e Muçulmanos, já aqui apresentado. Fiquemos então com as suas sempre sábias e ponderadas palavras.


O choque entre o Islã e o Cristianismo influenciará o cenário político futuro da Europa e do mundo? Como isso se daria?

Em geral, estou otimista nesta questão. Acho que chegámos, ou logo chegaremos, a um ponto máximo de temor e de hostilidade entre as duas comunidades, e que a partir de agora podemos esperar que as coisas melhorem gradualmente. Para que isso aconteça, duas coisas são necessárias: em primeiro, cada comunidade deve chegar a um melhor e mais solidário entendimento de o que a outra religião significa, e de por que a crença nela é firme e inamovível; em segundo, sobre a base disso, cada comunidade deve ter um desejo sincero de aceitar a existência da outra, de respeitá-la e de conviver com ela de forma amigável. Eu acredito que o bom senso das pessoas comuns – junto com a orientação vinda de umas poucas figuras públicas de boa-vontade – no fim prevalecerá. Há tantas coisas, no nível prático, que as pessoas conscienciosas de ambas as comunidades têm em comum: acima de tudo, o se opor ao declínio nos valores morais e revertê-lo, e o criar uma frente comum contra a indiferença religiosa e o materialismo. Muitos há que se oporão a todo esforço de conciliação. Devemos estar preparados para eles!

Concorda com Huntington, que argumenta que a anterior divisão ideológica do mundo foi substituída pelo choque religioso, entre civilizações?

Discordo radicalmente. Hoje não há razão para um choque entre o Cristianismo tradicional e o Islã tradicional. O que vimos nos anos recentes foi um choque entre o terrorismo urbano moderno (erroneamente chamado de “islâmico”) e o humanismo ocidental moderno (erroneamente chamado de “cristão”).

Merkel e Sarkozy sustentam que a idéia de multiculturalismo fracassou na Europa. Eles estão certos?

Sim e não. Da forma como as coisas estão hoje em dia, o multiculturalismo falhou. Mas as duas religiões estarão aí para sempre, e este fato deve ser admitido e uma solução, encontrada. Não há uma alternativa à co-existência, mesmo se o nome “multiculturalismo” tenha de ser mudado! Os imigrantes muçulmanos devem aprender a respeitar a sensibilidade e as expectativas do povo do país que adotaram, e a comunidade cristã deve aceitar o fato de que a comunidade muçulmana veio para ficar, e tomar uma firme resolução de alcançar com eles um modus vivendi positivo e construtivo. Há que haver uma compreensão do fato de que a comunidade muçulmana tem frequentemente de enfrentar a intimidação de terroristas presuntivos em seu meio. O quanto mais frequentemente os terroristas e seus simpatizantes forem identificados, presos e submetidos aos rigores da lei, tanto mais fácil será para as pessoas amantes da paz prevalecer. Neste instante mesmo, um grande número de corajosos muçulmanos, tanto líderes locais quanto pessoas comuns, falaram abertamente e assumiram uma posição pública contra a hostilidade entre as comunidades e em favor da harmonia entre elas, mas tais pessoas quase não aparecem na mídia.

Em outras épocas, eram os cristãos que estavam causando destruição em nome da cruz. Hoje, terroristas muçulmanos matam em nome de Allah, embora líderes religiosos defendam publicamente a paz. Como isso é possível?

A causa está em nossa natureza “caída”! No caso dos muçulmanos, contudo, seria necessário acrescentar que eles também têm um sério ressentimento devido à total ignorância e mesmo, frequentemente, cumplicidade do Ocidente com certas injustiças fundamentais que eles, muçulmanos, vêm sofrendo no Oriente Médio desde o final da Segunda Guerra Mundial. A reação dos terroristas a essa injustiça está fundamentalmente errada sob todos os pontos de vista. É uma resposta ruim a uma ação ruim. Mas essa injustiça também causa exasperação nas mentes dos muçulmanos simples e amantes da paz, e ela não pode ser esquecida quando a questão das relações entre cristãos e muçulmanos é considerada.

O propósito de toda religião é fornecer um meio de vencer a natureza caída a que nos referimos. Toda religião ensina a verdade, a bondade e a paz. O homem caído defende tais coisas da boca para fora, ele fica muito a dever quando se trata de pô-las em prática. De passagem, diga-se que é preciso compreender que só há um Deus, quer o chamemos Jehovah, Theos ou Allah.

A Bíblia e o Alcorão são livros muito similares. A união de todas as religiões monoteístas do mundo é apenas uma utopia ou é um futuro realista?

É óbvio que as formas exteriores das várias religiões são diferentes. É esta, precisamente, sua razão de ser. Mas fica claro, na Bíblia e no Alcorão, que seu conteúdo interior, como acabei de dizer, é verdade, bondade e paz, ou melhor, verdade, beleza e salvação. Inimigos da tolerância religiosa citam repetidamente os versos do Alcorão que são exemplos de violência ordenada por Deus. Mas o Deuteronômio também fornece uma série de exemplos de violência ordenada por Deus, incluindo o massacre de tribos inteiras. Em ambas as Escrituras, esse foram comandos vindos de Deus, e não ações incitadas por homens.

A mensagem fundamental da Bíblia e do Alcorão, a mensagem do Rei Davi, do Rei Salomão, do Senhor Jesus e do Profeta Mohammed, indica claramente a base subjacente que torna possível a co-existência. Cada religião deve permanecer fiel a si mesma, e ao mesmo tempo respeitar a religião de seus vizinhos. As religiões não podem e não devem se “fundir”. As religiões podem ser comparadas às cores do espectro, que vêm da refração da luz incolor, mas, se misturamos as diversas cores, tudo o que obtemos é um marrom lamacento! Cada cor deve poder brilhar sem ser adulterada ou manchada. É essa pluralidade de cores que faz do mundo um lugar tão bonito! A pluralidade das religiões tradicionais (todas reveladas ao homem por Deus) é algo que está na natureza das coisas. A pluralidade, nestes dois casos, é algo positivo, não negativo!

A Croácia é em sua maior parte um país católico. Muitas pessoas acreditam que este país é um bom exemplo de uma bem-sucedida integração de muçulmanos. O que pensa disso?

Acho que a Croácia, precisamente em função de ser um país de maioria católica, é um belo exemplo para outros países de como as comunidades religiosas podem viver pacificamente lado a lado. Trata-se de (1) ter uma compreensão e aceitação inicial do direito da outra religião de existir, e (2) isso pelo exercício da boa-vontade, do bom senso, e pela aplicação da experiência.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Notícia

A edição em língua inglesa do livro “Homens de um livro só: o fundamentalismo no islã, no cristianismo e no pensamento moderno”, apresentado em Lisboa pelo autor Mateus Soares de Azevedo, foi nomeada para Livro do Ano na categoria de religião.

terça-feira, 8 de março de 2011

O protesto da terra

Seguimos com a apresentação do terceiro número da revista Sabedoria Perene, o qual esperamos disponibilizar muito em breve. Os trechos seleccionados e apresentados de seguida foram extraídos de um texto de Charles le Gai Eaton publicado no livro “The Essential SOPHIA – The Journal of Traditional Studies”, Word Wisdom 2006. O texto, “The Earth’s Complaint”, foi inicialmente publicado no Volume 3 - nº1 da publicação periódica SOPHIA. Trata-se de um olhar corânico para a crise ambiental que vivemos, o qual comporta em si uma mensagem urgente para todos os homens, que continuam de costas voltadas e com “ouvidos moucos” para a terra e para os sinais de um iminente “protesto”.


Quando a terra tremer com um grandioso tremor, e a terra ceder aos seus fardos, e o homem gritar “O que a aflige?” – Nesse Dia ela contará as suas histórias, pois o seu Senhor a inspirou. Nesse Dia a humanidade sairá em grupos separados para lhe serem mostradas as suas acções. Quem quer que tenha feito o peso de um átomo de bem o verá nesse momento, e quem quer que tenha feito o peso de um átomo de mal o verá nesse momento.
Alcorão 99:1-8


Como reforço às implicações desta curta sûra, o Profeta terá dito que, quando nascer o Último Dia, a própria terra testemunhará tudo o que o homem fez. Poderia, assim, dizer-se, que deixamos as nossas impressões digitais em tudo o que tocamos, e que estas se mantêm bem para lá do momento em que seguimos o nosso caminho.

(…)

Não existem lugares onde nos possamos esconder. Estamos, como nos relembra de diversas formas o Alcorão, rodeados de uma hoste de testemunhas, desde Deus e os Seus anjos até à terra que pisamos. Não lhes conseguimos esconder os nossos segredos. Por vezes me interrogo se será essa a razão pela qual os árabes tendem tanto para o secretismo. Sabendo que são observados de todo o lado, de cima e de baixo, estimam a única privacidade que lhes resta colocando um véu entre eles e o seu próximo, quer seja homem ou mulher. No outro extremo, os ocidentais actuais procuram desenfreadamente confessar tudo, não apenas aos seus amigos mas também na televisão e na imprensa. Ao se crerem sós, vedados e inobservados, eles sentem a necessidade de se auto-exporem como forma de escapar ao isolamento.

No entanto, o rasto que deixamos atrás de nós na terra é apenas um dos lados da relação recíproca que temos com tudo o que nos rodeia. Não somos estanques mas sim como que porosos. Ensopamos elementos de tudo quanto vemos, ouvimos ou tocamos, os quais absorvemos na nossa substância. Quando tratamos o mundo natural como um objecto a ser explorado e conquistado, estamos também a danificar-nos a nós mesmos. Os ambientalistas não deixam de ter razão quando predizem que o nosso abuso da terra terá consequências desastrosas para a humanidade, mas essa deveria ser a menor das nossas preocupações. As consequências ocorrem a vários níveis; quanto mais elevado o nível, mais mortais podem elas ser. O Alcorão ordena: “Não geres confusão na terra após este justo comando.” Quando diz também que a terra e tudo o que nela existe é criada para nosso uso, isto não implica uma transferência de propriedade; é uma incumbência a nós delegada, e respondemos perante o “Senhor de todas as coisas” pelo nosso ministério. O muçulmano é constantemente relembrado, quer no Alcorão, quer nos ditos preservados do Profeta, que a ganância e o desperdício estão entre os maiores pecados. Podemos usar aquilo que nos é disponibilizado para o nosso sustento, mas nada mais; e mesmo esse pouco não é mais do que um roubo se abandonámos a nossa função humana e decidimos renunciar a oração universal que transporta toda a criação de novo para a sua origem.

Ao muçulmano é garantido que toda a terra é para ele uma mesquita. As construções emparedadas para as quais é chamado para a oração são apenas uma conveniência. Os campos, as florestas e o deserto são igualmente adequados como locais de oração e, assim, exigem o mesmo respeito que é prestado a uma mesquita convencional. A ligação com o céu pode ser estabelecida em toda e qualquer parte (“Para onde quer que te vires, aí está a Face de Deus”). (…)

(…)

Mas apreender, mesmo que de uma forma vaga, os “sinais de Deus” à nossa volta – aqueles sinais que o Alcorão refere repetidamente – exige os olhos de uma criança preservados na maturidade. É dito que o Profeta rogou em oração: “Senhor, acresce-me em espanto!” É esta a forma como uma criança vê o mundo, puro como acabado de criar pela mão de Deus e repleto de maravilhas. No entanto, com a passagem dos anos e das ansiedades que o tempo impõe, essa visão esmorece; por outro lado, nas palavras do Alcorão: “Não são os olhos que cegam, mas os corações nos peitos que cegam.” Imbuído de fé, o coração ainda pode recuperar a sua visão, a sua intuição. Depois da chamada para a oração, quando os muçulmanos se alinham em filas apertadas atrás do seu Imam, o líder da oração, eles são chamados a gastar alguns instantes na renúncia de todas os cuidados do dia e de todos os assuntos urgentes que prenderam a sua atenção, a virar a sua face para o Criador e Lhe dirigir a palavra. Por vezes o Imam oferece-lhes alguns concelhos: “Rezem como se esta fosse a vossa primeira oração!” Cada vez que nos voltamos para Deus é um novo começo, um renascer, e o mesmo deveria suceder quando olhamos, com os corações despertos, para o mundo que nos rodeia.

Ao agirmos assim devemo-nos lembrar que nada é o que parece, ou melhor, que nada é apenas aquilo que parece. Tal como com os versos do Alcorão (no árabe, a mesma palavra é usada para versos e para “sinais” na natureza), existe um significado literal e, ao mesmo tempo, um significado mais profundo. Os versos são sagrados, tal como o são os “sinais”. É aqui que chegamos a um dos sintomas mais perigosos da alienação; a perda do sentido do sagrado no mundo moderno, uma perda – uma privação – que afecta tanto a Umma muçulmana como o ocidente. O Alcorão condena aqueles que separam aquilo que Deus juntou, e a fragmentação que vemos hoje é um exemplo claro desta separação de conexões. O crítico francês da nossa civilização tecnológica, Jacques Elull, referiu que, no passado, a experiência profunda do sagrado era o seu contacto imediato com o mundo natural. É praticamente impossível compreender totalmente o que é a religião – ou os grandes mitos que testemunhavam a unidade do cosmos – quando a natureza se tornou remota e inteiramente “outra”. Como diz Elull, o sentido do sagrado decai quando deixa de ser rejuvenescido pela experiência. A percepção dos habitantes das cidades seca em resultado da falta de suportes na sua nova experiência no mundo artificial da tecnologia urbana.

A perda de harmonia entre o homem e o seu meio ambiente natural não é mais do que um aspecto da perda de harmonia entre o homem e o seu Criador. Aqueles que viram as costas ao Criador e O esquecem, não mais se podem sentir em casa na criação. Eles assumem o papel das bactérias que acabam sempre por destruir o corpo que invadiram. Desta forma, o “Vice regente de Deus na terra” não mais detém a custódia da natureza e, ao perder a sua função, é um estranho que não reconhece os marcos ou que se conforma com os costumes deste lugar; alienado, vê-o apenas como matéria-prima a explorar. Ele pode encontrar riquezas e conforto na exploração, mas não a felicidade. Ele nunca poderá cantar como o poeta persa Sa’di:

Eu estou radiante com o cosmos,
pois o cosmos recebe a sua alegria através Dele;
eu amo o mundo,
pois o mundo a Ele pertence.

(…)

Charles le Gai Eaton

Charles le Gai Eaton nasceu em Lausanne, Suíça, e recebeu a sua educação no Chasterhouse e King´s College em Cambridge. Trabalhou vários anos como professor e jornalista na Jamaica e no Egipto antes de ingressar no Serviço Diplomático Inglês. Desempenhou o papel de consultor do Centro Cultural Islâmico de Londres. Foi autor de vários livros: Islam and the Destiny of Man, King of the Castle e Remembering God, e contribuía frequentemente com artigos para a publicação periódica Studies in Comparative Religion. O seu último livro e autobiografia intitulado A Bad Beginning and the Path to Islam foi publicado pela editora Archetype em Janeiro de 2010. Deixou-nos recentemente, a 26 de Fevereiro do mesmo ano.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Citações espirituais

As flores não forçam o seu caminho em conflito.
Ao sol, elas abrem-se vagarosamente para a perfeição…
Não tenhas pressa em questões espirituais.
Passo a passo, caminha sempre com certeza.

                                                                            - Águia Branca


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Direcçoes para o suprasensível

Vamos continuar a apresentação do próximo número da Revista Sabedoria Perene. Os excertos apresentados de seguida são extraídos da tradução do texto de Harry Oldmeadow que servirá como introdução ao tema deste terceiro número, a Natureza. Este texto foi originalmente publicado no 6º número da Revista Sacred Web em 2001.


Seyyed Hossein Nasr inicia o seu livro Religion and the Order of Nature (1996) com as seguintes palavras:

A Terra sangra de feridas infligidas por uma humanidade que perdeu a harmonia com o Céu e que, por essa razão, vive em constante conflito com o ambiente terrestre.

Apesar de amplamente reconhecido o facto de nos encontrarmos, presentemente, num estado de “constante conflito”, as causas mais profundas para esta condição são raramente compreendidas. Testemunha-se o surgimento de uma pletora de obras dedicadas à “crise ecológica” que, apesar de muitas vezes bem intencionadas e esporadicamente denotando alguma acuidade, são fundamentalmente confusas em resultado da ignorância de princípios metafísicos e cosmológicos intemporais. Foi precisamente a tarefa de figuras como René Guénon, Ananda Coomaraswamy e Frithjof Schuon, autoridades na exposição da sophia perennis, a de relembrar o mundo moderno desses princípios que podem ser ignorados mas não refutados. O meu propósito com este trabalho é providenciar um esboço, maioritariamente a partir de citações, de alguns dos princípios e doutrinas que governam o entendimento de Schuon sobre a ordem natural. Não vou apresentar uma explicação detalhada mas sim um conjunto elíptico de apontamentos, recorrendo sobretudo a alguns dos seus primeiros trabalhos, Light on the Ancient Worlds (1965) e Spiritual Perspectives and Human Facts (1967), bem como aos seus escritos dedicados aos índios americanos das planícies, reunidos na obra The Feathered Sun: Plains Indians and Philosophy (1990).

* * *

(…) Avancemos agora para a nossa série de apontamentos: em primeiro lugar, para a questão do porquê da existência do mundo, do universo e do reino de maya, e de quais as relações entre o Absoluto inqualificável (identificado de modos diferentes, tais como Divindade, Supra-Ser, nirguna Brahman e outros), Deus como Criador e o mundo manifestado. Iniciemos com uma passagem, caracteristicamente densa, de Schuon sobre esta questão:

Em relação à questão da “origem” da ilusão [maya], esta é daquelas que podem ser resolvidas (…) apesar de ser impossível ajustar a sua resolução a todas as necessidades de causalidade (…) a infinitude da Realidade implica a possibilidade da sua própria negação (…) e, sendo esta negação impossível no Absoluto em si mesmo, é necessário que esta “possibilidade do impossível” se realize numa “dimensão interna” que não é “nem real nem irreal”, isto é, que é real no seu próprio nível ao mesmo tempo que é irreal em relação à Essência; daqui resulta que em toda a parte estamos em contacto com o Absoluto – não podemos sair dele –, o qual é, no entanto e ao mesmo tempo, infinitamente distante, de tal modo que nenhum pensamento o pode circunscrever.

Não existe nada de anormal ou idiossincrático na formulação de Schuon de uma dimensão que “não é real nem irreal”; compare-se a mesma com esta, por exemplo, de Santo Agostinho:

Eu contemplei todas estas outras coisas sob Vós, e vi que nem existem absolutamente, nem absolutamente deixam de existir. Por certo têm existência pois procedem de Vós; e, no entanto, não existem pois não são o que Vós sois. Pois apenas existe verdadeiramente aquilo que permanece imutável…

* * *

(…) O entendimento tradicionalista da natureza e da arte sagrada é baseado numa compreensão muito precisa da natureza do simbolismo. Um símbolo pode ser definido como uma realidade de uma ordem inferior que participa de modo analógico numa realidade de uma ordem superior do ser. Deste modo, um símbolo devidamente constituído depende das qualidades inerentes e objectivas dos fenómenos, bem como da sua relação com realidades espirituais. Assim, a ciência do simbolismo resulta numa disciplina rigorosa que deve ter por base um discernimento das significações qualitativas das substâncias, cores, formas, relações espaciais, etc. Isto é crucial. Schuon afirma:

(…) não estamos aqui a lidar com apreciações subjectivas, pois as qualidades cósmicas estão ordenadas em relação ao ser e de acordo com uma hierarquia mais real que o individual; elas são, assim, independentes dos nossos gostos pessoais (…)

Este princípio é tão importante que merece ser reafirmado, recorrendo agora às palavras de Seyyed Hossein Nasr:

O símbolo não se baseia em convenções criadas pelo homem. Ele é um aspecto da realidade ontológica das coisas e, como tal, independente da percepção que o homem tem dele. O símbolo é a revelação de uma ordem de realidade superior numa ordem inferior, através da qual o homem pode ser reencaminhado para o reino superior. Aceitar os símbolos implica aceitar a estrutura hierárquica do universo e dos estados múltiplos do ser.

As significações simbólicas não podem ser inventadas ou imputadas. O simbolismo tradicional é, na realidade, uma linguagem objectiva concebida, não de acordo com os impulsos individuais ou “gostos” colectivos, mas sim em conformidade com a natureza das coisas. Este simbolismo deverá ter em consideração não apenas a “beleza sensível” mas também “as fundações espirituais dessa beleza”. Em resultado da sua precisão e objectividade, um símbolo tradicional pode ser considerado com um “calculus” ou uma “álgebra” para expressar ideias universais: “a função de qualquer símbolo é quebrar a casca de esquecimento que resguarda o conhecimento imanente no Intelecto”. A concepção do simbolismo como uma linguagem objectiva é axial no trabalho mais amadurecido de Coomaraswamy, grande parte do qual foi direccionado para o despertar de uma adequada compreensão do vocabulário simbólico das artes tradicionais. Numa das suas formulações características, afirma:

O simbolismo é uma linguagem e uma forma precisa de pensamento; uma linguagem hierática e metafísica, não uma linguagem determinada por categorias somáticas ou psicológicas. A sua fundação assenta sobre correspondências analógicas (…) o simbolismo é um calculus, no mesmo sentido em que uma analogia adequada é uma prova.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Palavras Trovão

O Infinito é o que é; podemos compreendê-lo ou não. A metafísica não pode ser ensinada a todos; mas se pudesse não existiria o ateísmo.


Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental

Prossegue a preparação do terceiro número da Revista Sabedoria Perene, dedicado ao tema da Natureza. O texto seguidamente apresentado é uma tradução da sessão de abertura de uma das muitas palestras do Prof. Seyyed Hossein Nasr sobre o tema da crise ambiental e sobre a sua profunda relação com a intelectualidade e a espiritualidade ou religiosidade. Uma selecção dos conteúdos leccionados nesta palestra, enquadrada no âmbito do Programa de Educação Religiosa e Ambiente (REEP) dos Amigos do Centro e da Academia Temenos em 1998, será incluida no próximo número da Revista Sabedoria Perene.


Não existe nada mais premente para discutir do que a questão da crise ambiental e das verdades e falsidades associadas a todo este assunto. A palavra “crise” não é utilizada neste contexto por acidente já que se trata seguramente de uma verdadeira crise, a qual segue o encalço daquela crise espiritual e intelectual que é indissociável da perspectiva predominante do mundo moderno. Aquela crise anterior, a qual René Guénon discutiu há praticamente um século atrás em várias obras, incluindo em a Crise do Mundo Moderno, a qual era conhecida por uns poucos e ignorada pela maioria. A crise ambiental é todavia demasiado manifesta para ser ignorada, mesmo pela multidão. É uma crise de extrema gravidade e urgência e qualquer um que a menospreze está simplesmente a enganar-se a si mesmo ou a sonhar acordado. Porém, está na nossa natureza tentarmos nos esquivar do confronto com o que exige de nós as mais profundas transformações interiores.

Poderá ser da nossa natureza tentarmos nos esquivar de um perigo eminente a menos que estejamos verdadeiramente perante ele, mas não o pretendemos encarar precisamente pela razão de que é um perigo. A imagem séria pintada por académicos e cientistas honestos que estão interessados no futuro da humanidade pode, frequentemente, ser inutilizada por uma empresa de filmagens que envie uma câmara para a floresta, para fotografar uns poucos pássaros a voar por ali, com a pretensão de mostrar quão “normal” é a situação ambiental da terra, mesmo em zonas urbanas. Mas a verdade é o oposto. Estamos perto de uma enorme crise, a qual tem que ser tomada de forma completamente séria. Mormente, é também necessário compreender que a crise ambiental não pode ser resolvida através de boa engenharia (ou melhor engenharia); não pode ser resolvida através de planeamento económico; nem mesmo pode ser resolvida através de modificações de cosmética na nossa concepção do desenvolvimento e da mudança. A crise ambiental requer uma transformação muito radical na nossa consciência, e isto não significa descobrir um estado de consciência completamente novo, mas sim regressar ao estado de consciência que a humanidade tradicional sempre teve. Significa redescobrir a forma tradicional de olhar para o mundo da natureza como presença sagrada.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Palavras de sabedoria

Mais uma edição no outro lado do Atlântico com interesse para os leitores do Sabedoria Perene. Referimo-nos à tradução do famoso Hikam de Ibn Atâ’Allah al-Iskandari. A tradução para a língua portuguesa, de Aluizio J.R. Monteiro Jr., foi efectuada a partir da tradução do árabe para o francês realizada por Abd-ar-Rahman Buret com a colaboração e introdução de Titus Burckhardt.


O Hikam, ou “As palavras de sabedoria”, de Ibn Ata’Allâh de Alexandria figura entre as mais célebres compilações de aforismos sufis. Difundiu-se por quase todo o mundo islâmico a partir do Magreb (norte da África), onde foi objecto de inúmeros comentários, até a Indonésia, onde foi traduzido para o malaio. Sua difusão é, de certa forma, paralela à da ordem sufi Shadiliya, que tem no Hikam o vade mecum, o guia e o companheiro de viagem daquele que percorre a Via contemplativa. Isso porque Ibn Ata’Allah, nascido em meados do séc. VII/XIII e falecido em 709/1309 no Cairo, foi não somente o discípulo e sucessor do mestre Abu-I-Abbas al-Mursi, ele próprio discípulo do fundador dessa ordem, Íman Abu-I-Hassan Shadili, mas também o primeiro mestre desta Tariqa sufi a deixar uma obra doutrinal escrita. Podemos presumir que seu Hikam resume e fixa o ensinamento oral de seus predecessores.

Titus Burckhardt


Ibn ‘Atâ-Allah al-Iskandarî al-Judâmî as-Shâdilî, nasceu em Alexandria, Egito, no século XIII/VII (da hegira). Teve uma educação tradicional islâmica recebida de grandes mestres. Seu sheikh Abû al-‘Abbâs al-Mursî predisse que Ibn ‘Atâ-Allah tornar-se-ia uma autoridade tanto na sharia/fiqh como na tariqah/Via espiritual: “Ele disse pela via da sharia, o conhecimento exotérico, e pelo da Verdade ou tariqah, o conhecimento esotérico”. O shaikh Abû al-‘Abbâs al-Mursî foi um discípulo privilegiado do sheikh as-Shâdilî, qutb (pólo espiritual) de seu tempo e um dos maiores mestres sufis da história do Islão. Com relação aos fundamentos da Via espiritual, Ibn ‘Atâ-Allah afirma que: “A base de sua Via – que Deus seja louvado – é a concentração em Deus, o combate contra a dispersão (ádam at-tafriqa), a perseverança no retiro espiritual (khalwah) e a invocação (zikr) do supremo Nome”. Sua obra portadora de grandes ensinamentos metafísicos e espirituais, também dirigida ao crente comum, regista com beleza e sabedoria os ensinamentos de seus mestres da Via sufi.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Ocultismo & Religião


Este estimulante livro expõe e debate as relações entre psicologia, ocultismo e religião que permeiam as obras de Freud, Jung e Mircea Eliade.

Ele expõe informações, só recentemente disponíveis, que mostram que havia na psicanálise freudiana aspectos que iam além do materialismo estrito pelo qual ela ficou popularmente conhecida. Harry Oldmeadow e Mateus Soares de Azevedo revelam, em primeira mão em língua portuguesa, que o método psicanalítico concebido por Freud sofreu forte influência de ramos subterrâneos da tradição judaica, sobretudo de movimentos messiânicos heterodoxos, como o Sabataísmo e o Frankismo.

De modo similar, o livro documenta como o psicólogo suíço Carl Gustav Jung se valeu de doutrinas gnósticas, ocultistas e mesmo cristãs para compor seu método terapêutico, o qual muitos atribuem perfeita convergência com doutrinas tradicionais. Em outras palavras, a presente obra discute se o Junguismo constitui uma alternativa real à perspectiva de Freud, como se acredita em círculos intelectuais e religiosos contemporâneos.

Ocultismo & Religião (São Paulo, editora Ibrasa, 2011) põe em relevo igualmente a vida e a obra do historiador de religiões romeno Mircea Eliade, outro influente intelectual que refletiu sobre os choques e intercâmbios entre religião, ocultismo e psicologia.

Os autores confrontam com discernimento e coragem o lugar do homem em um mundo no qual a ciência despojou o cosmo de significado profundo, solapou os pilares da fé e roubou do homem sua envergadura espiritual.

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SUMÁRIO

Apresentação
Capítulo 1 – A religião secreta de Freud
Capítulo 2 – Jung e os crentes sem religião
Capítulo 3 – Mircea Eliade e Jung
Bibliografia Selecionada