Vamos continuar a apresentação do próximo número da Revista Sabedoria Perene. Os excertos apresentados de seguida são extraídos da tradução do texto de Harry Oldmeadow que servirá como introdução ao tema deste terceiro número, a Natureza. Este texto foi originalmente publicado no 6º número da Revista Sacred Web em 2001.
Seyyed Hossein Nasr inicia o seu livro Religion and the Order of Nature (1996) com as seguintes palavras:
A Terra sangra de feridas infligidas por uma humanidade que perdeu a harmonia com o Céu e que, por essa razão, vive em constante conflito com o ambiente terrestre.
Apesar de amplamente reconhecido o facto de nos encontrarmos, presentemente, num estado de “constante conflito”, as causas mais profundas para esta condição são raramente compreendidas. Testemunha-se o surgimento de uma pletora de obras dedicadas à “crise ecológica” que, apesar de muitas vezes bem intencionadas e esporadicamente denotando alguma acuidade, são fundamentalmente confusas em resultado da ignorância de princípios metafísicos e cosmológicos intemporais. Foi precisamente a tarefa de figuras como René Guénon, Ananda Coomaraswamy e Frithjof Schuon, autoridades na exposição da sophia perennis, a de relembrar o mundo moderno desses princípios que podem ser ignorados mas não refutados. O meu propósito com este trabalho é providenciar um esboço, maioritariamente a partir de citações, de alguns dos princípios e doutrinas que governam o entendimento de Schuon sobre a ordem natural. Não vou apresentar uma explicação detalhada mas sim um conjunto elíptico de apontamentos, recorrendo sobretudo a alguns dos seus primeiros trabalhos, Light on the Ancient Worlds (1965) e Spiritual Perspectives and Human Facts (1967), bem como aos seus escritos dedicados aos índios americanos das planícies, reunidos na obra The Feathered Sun: Plains Indians and Philosophy (1990).
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(…) Avancemos agora para a nossa série de apontamentos: em primeiro lugar, para a questão do porquê da existência do mundo, do universo e do reino de maya, e de quais as relações entre o Absoluto inqualificável (identificado de modos diferentes, tais como Divindade, Supra-Ser, nirguna Brahman e outros), Deus como Criador e o mundo manifestado. Iniciemos com uma passagem, caracteristicamente densa, de Schuon sobre esta questão:
Em relação à questão da “origem” da ilusão [maya], esta é daquelas que podem ser resolvidas (…) apesar de ser impossível ajustar a sua resolução a todas as necessidades de causalidade (…) a infinitude da Realidade implica a possibilidade da sua própria negação (…) e, sendo esta negação impossível no Absoluto em si mesmo, é necessário que esta “possibilidade do impossível” se realize numa “dimensão interna” que não é “nem real nem irreal”, isto é, que é real no seu próprio nível ao mesmo tempo que é irreal em relação à Essência; daqui resulta que em toda a parte estamos em contacto com o Absoluto – não podemos sair dele –, o qual é, no entanto e ao mesmo tempo, infinitamente distante, de tal modo que nenhum pensamento o pode circunscrever.
Não existe nada de anormal ou idiossincrático na formulação de Schuon de uma dimensão que “não é real nem irreal”; compare-se a mesma com esta, por exemplo, de Santo Agostinho:
Eu contemplei todas estas outras coisas sob Vós, e vi que nem existem absolutamente, nem absolutamente deixam de existir. Por certo têm existência pois procedem de Vós; e, no entanto, não existem pois não são o que Vós sois. Pois apenas existe verdadeiramente aquilo que permanece imutável…
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(…) O entendimento tradicionalista da natureza e da arte sagrada é baseado numa compreensão muito precisa da natureza do simbolismo. Um símbolo pode ser definido como uma realidade de uma ordem inferior que participa de modo analógico numa realidade de uma ordem superior do ser. Deste modo, um símbolo devidamente constituído depende das qualidades inerentes e objectivas dos fenómenos, bem como da sua relação com realidades espirituais. Assim, a ciência do simbolismo resulta numa disciplina rigorosa que deve ter por base um discernimento das significações qualitativas das substâncias, cores, formas, relações espaciais, etc. Isto é crucial. Schuon afirma:
(…) não estamos aqui a lidar com apreciações subjectivas, pois as qualidades cósmicas estão ordenadas em relação ao ser e de acordo com uma hierarquia mais real que o individual; elas são, assim, independentes dos nossos gostos pessoais (…)
Este princípio é tão importante que merece ser reafirmado, recorrendo agora às palavras de Seyyed Hossein Nasr:
O símbolo não se baseia em convenções criadas pelo homem. Ele é um aspecto da realidade ontológica das coisas e, como tal, independente da percepção que o homem tem dele. O símbolo é a revelação de uma ordem de realidade superior numa ordem inferior, através da qual o homem pode ser reencaminhado para o reino superior. Aceitar os símbolos implica aceitar a estrutura hierárquica do universo e dos estados múltiplos do ser.
As significações simbólicas não podem ser inventadas ou imputadas. O simbolismo tradicional é, na realidade, uma linguagem objectiva concebida, não de acordo com os impulsos individuais ou “gostos” colectivos, mas sim em conformidade com a natureza das coisas. Este simbolismo deverá ter em consideração não apenas a “beleza sensível” mas também “as fundações espirituais dessa beleza”. Em resultado da sua precisão e objectividade, um símbolo tradicional pode ser considerado com um “calculus” ou uma “álgebra” para expressar ideias universais: “a função de qualquer símbolo é quebrar a casca de esquecimento que resguarda o conhecimento imanente no Intelecto”. A concepção do simbolismo como uma linguagem objectiva é axial no trabalho mais amadurecido de Coomaraswamy, grande parte do qual foi direccionado para o despertar de uma adequada compreensão do vocabulário simbólico das artes tradicionais. Numa das suas formulações características, afirma:
O simbolismo é uma linguagem e uma forma precisa de pensamento; uma linguagem hierática e metafísica, não uma linguagem determinada por categorias somáticas ou psicológicas. A sua fundação assenta sobre correspondências analógicas (…) o simbolismo é um calculus, no mesmo sentido em que uma analogia adequada é uma prova.