Karol Jozef Woityla foi escolhido como o 263º sucessor de São Pedro em 16 de outubro de 1978. Em quase três décadas de pontificado, ele não deixou de surpreender muitos fiéis e de deixar os não-católicos perplexos. Eles ainda se perguntam: foi um verdadeiro místico ou um apenas um pragmático? Um conservador ou um progressista? Gênio político ou mero oportunista? Tomista ou existencialista? Um espiritual ou um mundano? Ainda hoje, muitos se interrogam se decifraram de fato a protéica figura de Woityla. Questionam-se, também, acerca das perspectivas que se abrem na nova fase que se inicia após seu pontificado e sob o comando de seu braço direito no Vaticano, o alemão Bento XVI.
Woityla nasceu em 18 de maio de 1920 na pequena cidade medieval de Wadovice, distante 50 quilômetros de Cracóvia, na Polônia. Em 1946, com 26 anos, foi ordenado sacerdote. Em 1958, foi feito bispo; em 1964, arcebispo; em 1967, cardeal. Em 1978, sumo pontífice. Uma carreira fulminante. O primeiro não-italiano a ocupar o papado em quase 500 anos.
Ator semi-profissional, admirador da filosofia existencialista, amante das caminhadas, do esqui e da canoagem, operário na Polônia por curta temporada (para escapar à deportação, promovida pelos nazistas, dos estudantes desocupados). Os elementos inusitados em sua biografia são muitos.
Durante a II Grande Guerra, ele e seu grupo teatral sofreram influência da “antroposofia” do austríaco Rudolf Steiner (1861-1925). Este movimento constitui uma cisão da “Sociedade Teosófica”, a qual sustenta ser uma “síntese superior” de todas as religiões. Em
O Tesosofismo, História de uma Pseudo-Religião, René Guénon diz que o “antroposofismo” constitui um confuso e sincrético amálgama de idéias reencarnacionistas, pseudo-científicas e pseudo-cristãs. Outro admirador de Steiner foi o jovem Ângelo Roncalli, o qual, a partir de 1959, governaria a Igreja sob o nome de João XXIII (quando professor do
Angelicum de Roma, Roncalli perdeu seu posto por ensinar as exóticas teorias de Steiner).
Neste período, a grande paixão de Woityla foi indubitavelmente o teatro. Ele foi autor de um livro dedicado ao assunto,
The Acting Person. Sua tradutora resumiu seu "complexo pensamento": "Enfatiza o valor irredutível da pessoa humana, vê uma dimensão espiritual na interação humana, o que leva a uma concepção profundamente humanista ." Os críticos teatrais, contudo, consideraram
The Acting Person "entediante".
Quanto à filosofia de João Paulo II, ela é composta de idéias personalistas e existencialistas, com conceitos derivados de Heidegger, Husserl e Scheler. Outras importantes influências são os franceses Jacques Maritain -- cujo sonho era unificar as comemorações da Queda da Bastilha com as de Santa Joana D'Arc -- e Teilhard de Chardin, sempre ele!, que tentou combinar numa mesma visão Cristianismo, evolucionismo darwinista e marxismo. No seu livro
O Signo da Contradição, João Paulo II compara as intuições de Teilhard às do livro do Gênesis!
Alguns o consideraram um dos grandes políticos do século; outros, um mestre da ambigüidade. Fluente em várias línguas, viajou o planeta de Norte a Sul, de Leste a Oeste, encontrando-se com reis, presidentes, intelectuais, artistas etc. Paradoxalmente, a instituição que liderou reduziu sensivelmente sua influência sobre a vida dos homens.
Participante ativo do Concílio Vaticano II, a contribuição de Woytila foi "decisiva" – pelo menos segundo a biografia distribuída pelo serviço de imprensa da Santa Sé no dia da eleição -- para a redação da Constituição pastoral
Gaudium et Spes (sobre a Igreja no mundo contemporâneo). Este documento, no entanto, foi considerado pelo cardeal Heenan, antigo primaz da Inglaterra, como "uma duvidosa acomodação com tudo que está na base dos males que afetam a humanidade.” Contrariamente a todos os concílios anteriores, sua convocação foi feita essencialmente em resposta a motivações ideológicas e políticas, e não para encaminhar questões teológicas, como mostra Rama Coomaraswamy no bem documentado “
Ensaios sobre a destruição da tradição cristã” [4].
Sua excepcionalidade resulta, assim, do fato de que foi determinado não por situações concretas avaliadas a partir da teologia, mas por abstrações ideológicas opostas a esta última. O açambarcamento da religião por ideologias pseudo-religiosas não é um fenômeno constatado somente no catolicismo, sendo de fato universal: no Islã, mediante o extremismo militante; no judaísmo, pela ação do sionismo político, que assumiu na prática o lugar da religião para muitos judeus; no hinduísmo, pelo nacionalismo xenófobo.
Laborem Exercens, sua terceira encíclica, de 1981, abordou a questão do trabalho. Nela, vale-se da linguagem ambígua tão bem explorada pelos textos do Vaticano II que se torna difícil de entender. A escritora Ursula Oxford conta a história de um jornalista americano que perguntou aos responsáveis do Vaticano como poderia analisar determinada greve à luz do texto. A declaração oficial foi de que "não há uma resposta específica, ou, para colocá-lo mais precisamente, pode-se analisá-la da maneira que a pessoa quiser".
Em
Laborem Exercens, apesar do estilo vago e ambíguo de sempre, João Paulo II esposa uma tendência mais ou menos socialista e condena o capitalismo. Para ele, a "tradição cristã nunca sustentou que o direito à propriedade privada é absoluto e intocável". Na verdade, a Igreja sempre ensinou que o homem tem direito à propriedade privada, como observa Leão XIII na
Rerum Novarum. Apesar de todo seu alardeado conhecimento do comunismo, João Paulo pareceu esquecer-se do fato que, sem propriedade privada, o homem não passa de escravo nas mãos do Estado Todo-Poderoso.
Quando um jornal checo, antes da queda do comunismo, criticou-o por ser “anticomunista”, o jornal oficial da igreja,
L'Osservatorio Romano, deu-se ao trabalho de desmentir a informação, considerando-a "altamente ofensiva" e "absurda". Em 1978, o então vice-ministro das relações externas da Polônia, Josef Winiewicz, manifestou num jornal governamental sua "alegria" pela eleição do conterrâneo, fazendo questão de ressaltar que "a formação de sua mente e de sua personalidade aconteceu num país socialista".
Laborem Exercens fala de "socialização satisfatória", sem nunca definir com clareza o que entende por isso. Com seus antecessores imediatos, ele nunca condenou claramente o comunismo, isto é, até a
Centésimo Ano, em que apresenta uma visão mais otimista do sistema de mercado, o que assinala aliás uma mudança em relação às encíclicas sociais anteriores. Os homens do Vaticano II nunca esclareceram que há uma doutrina econômica especificamente cristã, que defende a mais ampla distribuição da propriedade e critica os excessos do liberalismo e a concentração da riqueza. De outro lado, o comunismo foi condenado em mais de duas centenas de documentos da igreja tradicional. Pio XI, por exemplo, considerou-o "intrinsecamente perverso" e "contrário à própria lei natural", "um pseudo-ideal de justiça, igualdade e fraternidade".
Outro exemplo de ambigüidade é a segunda encíclica de João Paulo II,
Dives in Misericórdia, de 1979. Escreve ele: "A igreja afirma-se e realiza-se de uma maneira teocêntrica, mas em si mesma a igreja está centrada no homem... ela é antropocêntrica". Ou, na audiência geral de 29 de novembro de 1980, onde se percebe um eco das teorias de Rudolf Steiner: "O Cristianismo é antropocêntrico precisamente porque é plenamente teocêntrico, e ele é teocêntrico graças ao seu especial antropocentrismo". O leitor inteligente saberá decifrar o significado das frases.
A despeito da grave crise, Woityla recusou-se a questionar a linha traçada por seus antecessores imediatos. Acompanhado do setor dominante na hierarquia eclesiástica, ele pareceu crer que a igreja, depois de séculos de balbucios e tartamudeios, subitamente nasceu numa manhã de 1962. Em sua primeira encíclica, expressa "seu amor pela herança única deixada à Igreja por João XXIII e Paulo VI" e sua "disposição em desenvolver este legado". Inúmeras foram as vezes em que afirmou que "realizar os ensinamentos do Vaticano II" seria a chave do seu governo.
Concílio que foi analisado nas seguintes palavras pelo então principal teólogo e segundo homem da hierarquia, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger:
"O papas esperavam uma nova unidade, mas o que ocorreu foram contendas e dissensões de tais proporções que a Igreja parece estar passando da autocrítica para a autodestruição. Esperávamos um novo entusiasmo, mas acabamos, pelo contrário, no tédio e no desencorajamento. Olhávamos para um salto rumo ao futuro, mas o que encontramos, ao contrário, é um crescente processo de decadência que em grande medida desenvolveu-se a partir do --- e pode ser imputado ao -- assim chamado espírito do concílio" (
Entrevista sobre a Fé, Vittorio Messori, 1985).
Apesar das palavras lamuriosas, Ratzinger sequer cogitou em questionar o "legado do concílio", muito menos em fazer efetivamente algo para mudar a situação. Este tipo de autocrítica estéril, sem nenhuma conseqüência prática, já havia sido inaugurada por Paulo VI. Num discurso em 29 de junho de 1972, ele disse: "Acreditávamos que após o concílio veríamos um dia de sol para a igreja. Mas, em vez do sol, vimos nuvens, tempestades, trevas... Por alguma fissura, a fumaça de satã entrou no templo de Deus".
Todo o pontificado de João Paulo II continuou sentindo a fumaça, mas recusou-se a identificar a origem do fogo; não compreendeu que uma instituição espiritual não pode sobreviver com idéias vagas, frouxas, ambíguas e superficiais. De nada adiantarão os diversos e dispendiosos projetos em curso, especialmente os de marketing e comunicação; a história mostra que só uma idéia clara e poderosa, e respeito pelos ritos cuja origem é supra-humana, pode sensibilizar e mover almas.
A meu ver, seu papado representou o malogro derradeiro do projeto modernista inaugurado por João XXIII e implementado por Paulo VI. Este projeto procurou o
aggiornamento, isto é, a “adaptação” da Igreja à ideologia dominante na década de 1960, a qual viveu com particular agudeza os postulados do modernismo, como a revolta estudantil de 1968 bem demonstrou. Esses postulados podem ser sintetizados em algumas idéias-chave: obscurecimento do senso do sagrado; “Marta”, em vez de “Maria” (ou ação em detrimento da contemplação); foco na história, em detrimento da espiritualidade; relativismo; cienticismo, ou crença na ciência e na tecnologia como fontes de felicidade humana.
Simplificando e colocando as coisas de uma maneira antes esquemática, mas não obstante legítima, pode-se dizer que os homens responsáveis pela condução da igreja então apostaram no “cavalo modernista”, na “nova ordem” que então se descortinava. Mas hoje, meio século depois, constata-se que este ideário, completamente “datado”, estava preso aos limites da época e não correspondia, portanto, aos princípios universais e perenes que caracterizam toda verdadeira religião. Em suma, o “cavalo” no qual a liderança católica tem apostado desde o concílio perdeu a corrida.
Desde então, houve muita agitação, na área litúrgica e doutrinal, falou-se muito, escreveu-se muito, houve muitos eventos de massa, mas não se pode, em definitivo, dizer que seus responsáveis deixaram um legado sólido para as futuras gerações. A mentalidade do
aggiornamento, à qual os anos de João Paulo II e, agora, de Bento XVI, deram solução de continuidade, tem se caracterizado, ao contrário, pela superficialidade intelectual e a indigência espiritual.
(
parte 3/3)
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