sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

René Guénon

René Guénon (1886-1951) nasceu na cidade de Blois em França. É considerado como o homem que deu origem à escola de pensamento que viria a ser denominada de Tradicionalista, sendo os seus livros verdadeiros clássicos na sua área, continuando ainda hoje a ter um forte impacto nos meios intelectuais do Ocidente e Oriente.

O conteúdo do seu trabalho pode ser dividido em quatro temas principais: a doutrina metafísica, os princípios tradicionais, o simbolismo tradicional e a crítica do mundo moderno.

Para muitos, as suas análises foram o caminho mais efectivo a seguir para ver através das muitas pseudo-religiões que proliferaram no início do século xx. Os seus textos contribuíram para que muitas pessoas descobrissem que deveriam procurar caminhos iniciáticos verdadeiramente tradicionais, ajudando-as a discernir entre o Real e o ilusório.

René Guénon reintroduziu numa Europa cada vez mais secularizada e afastada das suas fundações espirituais tradicionais as certezas intelectuais da metafísica. Este feito foi conseguido na sua maior parte na sua grande obra “L'Homme et son devenir selon le Vêdânta”. A sua grande crítica ao mundo moderno foi desenvolvida ao longo de duas obras, “La crise du monde moderne” e “Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps”.

Guénon manteve correspondência ao longo de muitos anos com outros importantíssimos Tradicionalistas/Perenialistas, Ananda Coomaraswamy e Frithjuf Schuon.

René Guénon faleceu no Cairo, pátria adoptada dos seus últimos anos, em 1951.


Bibliografia:

Em Françês

Introduction générale à l'Étude des doctrines hindoues, Éditions Trédaniel, Paris, 1921
Le Théosophisme, histoire d'une pseudo-religion, Éditions Traditionnelles, Paris, 1921
L'Erreur spirite, Éditions Traditionnelles, Paris, 1923
Orient et Occident, Éditions Trédaniel, Paris, 1924
L'Ésotérisme de Dante, Éditions GALLIMARD, Paris, 1925
L'Homme et son devenir selon le Vêdânta, Éditions Traditionnelles, Paris, 1925
La crise du monde moderne, Éditions GALLIMARD, Paris, 1927
Le Roi du Monde, Éditions GALLIMARD, 1927, Paris
Autorité spirituelle et pouvoir temporel, Éditions Trédaniel, Paris, 1929
Saint Bernard, Éditions Traditionnelles, Paris, 1929
Le Symbolisme de la Croix, Éditions Trédaniel, Paris, 1931
Les États multiples de l'Etre, Éditions Trédaniel, Paris, 1932
La Métaphysique orientale, Éditions Traditionnelles, Paris, 1939,
Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, Éditions GALLIMARD, Paris, 1945
La Grande Triade, Éditions GALLIMARD, Paris, 1946
Les Principes du Calcul infinitésimal, Éditions GALLIMARD, Paris, 1946
Aperçus sur l'Initiation, Éditions Traditionnelles, Paris, 1946
Initiation et Réalisation spirituelle, Éditions Traditionnelles, Paris, 1952
Aperçus sur l'ésotérisme chrétien, Éditions Traditionnelles, Paris, 1954
Symboles de la Science sacrée, Éditions GALLIMARD, Paris, 1962
Études sur la franc-maçonnerie et le compagnonnage, vol.1, Éditions Traditionnelles, Paris, 1964,
Études sur la franc-maçonnerie et le compagnonnage, vol.2, Éditions Traditionnelles, Paris, 1965,
Études sur l'Hindouisme, Éditions Traditionnelles, Paris, 1967
Formes traditionnelles et cycles cosmiques, Éditions Gallimard, Paris, 1970
Aperçus sur l'ésotérisme islamique et le taoïsme, Éditions Gallimard, Paris, 1973
Mélanges, Éditions GALLIMARD, Paris, 1976
Comptes rendus, Éditions Traditionnelles, Paris, 1986
Articles et Comptes-Rendus (tome 1), Éditions Traditionnelles, Paris, 2002
Écrits pour REGNABIT, ARCHÉ, Paris, 1999
PSYCHOLOGIE Notes de cours de philosophie (1917-1918) attribuées à René Guénon, ARCHÉ, Paris, 2001

Em Inglês

East and West, Sophia Perennis, Hillsdale NY
The Crisis of the Modern World, Sophia Perennis, Hillsdale NY
The Esoterism of Dante, Sophia Perennis, Hillsdale NY
The Great Triad, Sophia Perennis, Hillsdale NY
Initiation and Spiritual Realization, Sophia Perennis, Hillsdale NY
Insights into Christian Esoterism, Sophia Perennis, Hillsdale NY
Insights into Islamic Esoterism and Taoism, Sophia Perennis, Hillsdale NY
Introduction to the Study of the Hindu Doctrines, Sophia Perennis, Hillsdale NY
King of the World, Sophia Perennis, Hillsdale NY
Man and His Becoming According to the Vedanta, Sophia Perennis, Hillsdale NY
Metaphysical Principles of the Infinitesimal Calculus, Sophia Perennis, Hillsdale NY
Miscellanea, Sophia Perennis, Hillsdale NY
The Multiple States of the Being, Sophia Perennis, Hillsdale NY
Perspectives on Initiation, Sophia Perennis, Hillsdale NY
The Reign of Quantity and the Signs of the Times, Sophia Perennis, Hillsdale NY
The Spiritist Fallacy, Sophia Perennis, Hillsdale NY
Spiritual Authority and Temporal Power,Sophia Perennis, Hillsdale NY
Studies in Freemasonry and Compagnonnage, Sophia Perennis, Hillsdale NY
Studies in Hinduism, Sophia Perennis, Hillsdale NY
The Symbolism of the Cross, Sophia Perennis, Hillsdale NY
Symbols of Sacred Science, Sophia Perennis, Hillsdale NY
Theosophy, the History of a Pseudo-Religion, Sophia Perennis, Hillsdale NY
Traditional Forms and Cosmic Cycles, Sophia Perennis, Hillsdale NY

Em Português

Crise do Mundo Moderno, tradução de F. Guedes Galvão. São Paulo, 1948. Martins Editor
Crise do Mundo Moderno, tradução de António Carlos Carvalho, 1977. Vega. Colecção Janus
Problemas sobre Iniciação, 1990. Adrião – Victor Manuel
Rei do Mundo, 1982. Edições 70. Colecção Esfinge. Minerva
Reino da Quantidade e os Sinais do Tempo, 1989. Dom Quixote. Colecção Tradição
A Grande Tríade, 1989. Editora Pensamento. São Paulo
A Metafísica Oriental, 1983. Speculum. São Paulo
Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus, 1989. Michel Veber. São Paulo
Símbolos da Ciência Sagrada, 1984. Editora Pensamento. São Paulo
Esoterismo de Dante e São Bernardo, tradução de António Carlos Carvalho, 1978. Editorial Vega
Oriente e Ocidente, 1992. Edição Particular. Tradução de Maria Helena L.S. Rieper. São Paulo Simbolismo da Cruz, 1996. Edição Particular. Tradução de Luís Augusto Bicalho Kehl. São Paulo
O Homem e seu Devir Segundo o Vedanta, 1996 Edição Particular. Tradução de Luís Augusto Bicalho Kehl. São Paulo


Biografias:

Paul Chacornac, The Simple Life of René Guénon
Robin Waterfield, René Guénon and the Future of the West


Mais informação:

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Sobre a simplicidade sagrada

Verdadeira simplicidade consiste em ter, como Deus, um pensamento único, e esse pensamento tem que ser agradar a Deus em todas as coisas. Os vícios opostos à simplicidade lançam-nos para um estado de multiplicidade. Estes vícios operam de três maneiras particulares.

1) No que se refere às nossas paixões; para as gratificar multiplicamos os nossos pensamentos e desejos, agindo não com o fito simples de honrar Deus, mas por outros motivos tantos. Logo saltam as nossas desconfianças, as nossas suspeições, dissimulações, encobrimentos, invenções subtis, precauções, refinamentos, distinções, etc.

2) No que se refere aos outros, sobre os quais temos os nossos julgamentos, interpretações, conjecturas, inquirições, questionamentos, etc.

3) No que se refere às reflexões sobre nós próprios, para a nossa própria satisfação: reflexões sobre o passado, sobre o presente, sobre o futuro; sobre as nossas boas obras, para tomarmos prazer nelas; sobre as nossas más obras, para escusá-las ou desperdiçar inúteis arrependimentos sobre elas; para formular resoluções vãs respeitantes ao futuro.

Tudo isto é contrário à verdadeira simplicidade; mas fechamos o portão a todas estas faltas, quando a mente está somente ocupada com o simples pensamento de agradar a Deus.

Trecho de “The Spiritual Teaching of Father Loius Lallement”, compilado pelos discípulos daquele padre jesuíta (1587-1635) em 1694 e recentemente republicados em mais uma edição da World Wisdom: For God’s Greater Glory – Gems of Jesuit Spirituality from Louis Lallement, Jean-Pierre de Caussade, and Claude de la Colombière (2006).

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Sobre a tradução

Volta a este espaço uma tradução de um editorial da revista Sacred Web escrito por Ali Lakhani. Não posso deixar de ficar surpreendido com a forma como este autor aborda os temas, fundindo o simples e o complexo, levantando o véu sobre conceitos de difícil compreensão, recorrendo à análise profunda de temas comuns. Este editorial foi publicado no nº 13 da Sacred Web e versa sobre um tema muito caro a este espaço, a tradução. Espero que apreciem este texto tanto como eu o apreciei.

Uma tradução pressupõe a existência de um “original” ou de um protótipo, consistindo a arte do tradutor na capacidade de se manter fiel a esse mesmo protótipo. No pensamento tradicional, o conceito de “original” refere-se sempre à Origem, ou seja, à realidade Absoluta, a qual é simultaneamente a fonte da realidade fenomenológica (e, desta forma, superior a ela) e a sua impressão (e, desta forma, ao seu nível). Assim, toda a existência teve a sua origem no Absoluto, sendo dele uma expressão.

O termo “existência” (etimologicamente derivado de ex-stare, fora da unidade) implica uma projecção a partir de uma norma, o Absoluto. O Absoluto expressa a existência de duas formas: através da singularidade e da universalidade. A singularidade é a relativização do Absoluto através da sua diferenciação extrínseca, em virtude do Absoluto ser livre para expressar a sua infinidade, enquanto que a universalidade é a igualdade intrínseca desta diferenciação, em virtude do Absoluto ser necessariamente Uno. A singularidade da existência não é, no entanto, contraditória com a unicidade do Absoluto, tal como a universalidade da existência não é contraditória com a unidade do Absoluto – esta não contradição é explicada pelo facto do Absoluto exibir diferentes atributos em diferentes planos.

O Absoluto, apesar de transcendente, desenvolve-se nos múltiplos planos em que participa como imanência. Estes planos inferiores desdobram-se sequencialmente a partir do plano mais elevado, do subtil para o grosseiro, da essência para a forma. Neste processo de desenvolvimento, o superior traduz-se no inferior através do símbolo, a partir do qual o inferior participa no superior.

A existência é um palimpsesto. Cada vida e cada geração representam um texto diferente, escrito na mesma Página e com a tinta da mesma Pena. Apesar da história de cada indivíduo ser única, a história em si é a mesma: é a expressão da mesma passagem, de prefiguração, projecção e retorno. Apesar do tempo exprimir esta passagem de forma unívoca para cada um de nós, a geografia desta passagem é intrinsecamente a mesma: ela ocorre no interior do espaço da Única-subsistência, o ser divino do Absoluto. Cada história individual é, assim, uma tradução da própria história.

“A vida procura padrões” (Plotino) porque a Unicidade do Absoluto forja a vida através de padrões. O Infinito traduz o Absoluto e a existência traduz o Infinito. Todos nós somos traduções das vidas de outros. Cada um de nós abriga no seu interior a marca do Absoluto, o potencial para alcançar a perfeição. É um único Centro aquele que nos liga a todos. Perder o trilho desta ligação intrínseca e desta capacidade para atingir a perfeição, é perder o padrão da ordem e, assim, sucumbir perante o caos. Apenas a partir do Centro a ordem pode ser entendida.

Traduzir é atribuir significado, o qual é uma epifania, a manifestação do sublime. O homem está, na sua essência, numa constante busca pelo sublime. As próprias palavras são inadequadas para transmitir o objecto desta busca, a qual está para além do horizonte dos meros conceitos. Este reside nas regiões mais profundas de nós próprios e nos cantos mais recônditos da natureza. Por muito que nos esforcemos para o pronunciar, estaremos sempre destinados ao insucesso, porque aquilo que se procura pronunciar é verdadeiramente inefável, atraindo apenas o silêncio, o silêncio do êxtase. Nesse silêncio, ele é mais do que mero conhecimento, mais ainda do que a própria existência: nesse silêncio, o nosso eu pode sentir a sua alma incendiar-se com a beleza, inflamar-se com a maravilhosa intimidade com tudo o que vive e com o qual partilha a mais profunda ligação. Este é o sublime estado de graça associado à compreensão da Verdade como Presença (o satchitananda do Vedanta), o estado de unicidade e comunhão a que todas as tradições religiosas se referem como o reino do espírito.

A tradição ensina-nos que não somos aquilo que aparentamos ser: somos espíritos dotados de um corpo, “sombras de glória perdida”, como descritos por Wordsworth. Apesar do ser humano não poder ser separado da sua estrutura divina, a sua existência é, no entanto, uma “continuidade descontínua”, um “Véu Cósmico” de esquecimento e, assim, apenas através de vigilância espiritual podemos evitar que o mundo nos corroa a alma. A tradição entende o mundano como uma tradução do espiritual, e o objectivo da religião, a qual liga o humano ao divino, é precisamente despertar-nos para a presença do espírito, num mundo que está “demasiadamente em nós”. “Pois o homem fechou-se nele próprio até que apenas conseguisse ver através de estreitas fendas na sua gruta”, como constatou William Blake, reconhecendo que a percepção humana tende para a opacidade, reduzindo o espírito à matéria, o Intelecto à mera razão, o Coração ao ego, e o transcendente e maravilhosa fonte da existência a meros trabalhos mecânicos do universo. Esta visão humana separativa é espiritualmente moribunda:


O que quer que esteja aqui está lá.
O que quer que esteja lá está aqui.
Ele obtém morte após morte
Quem é que vê aqui alguma diferença.

(Katha Upanishad, 4:10)

Ela compele a vontade para o carnal e a inteligência para o orgulho, infernizando a alma.


Por outro lado, a visão unificadora do Intelecto, estando fundada no Absoluto, é salvífica: funciona através da visão interpretativa que religa a imagem ao seu protótipo, o humano ao divino. O olho do Intelecto entende a Verdade como Presença, “a gota de água no Oceano, e o Oceano na gota de água”. A sua visão é transformativa porque “quando a Rosa floresce, o Jardim está em toda a parte”. Saber é, assim, ver; no entanto, a visão espiritual não é apenas subjectiva (limitada apenas à opinião experimental do observador), nem apenas objectiva (reduzida a um conceito ou abstracção), ela é participativa, fundindo o sujeito e o objecto numa visão unitária e comprometida: “O olho com que vejo Deus é o mesmo olho através do qual Deus me vê” (Eckhart). O conhecimento espiritual (gnose) é assim ontológico. Está inscrito e ressoa nas regiões mais profundas no nosso ser. Por esta razão se afirma que “a metafísica afirma a identidade fundamental entre ser e conhecer” (Guénon).

A tradição ensina que o Absoluto Se traduziu no Centro espiritual do homem e, por essa razão, “conhecer-se a si próprio é conhecer a Realidade”. As verdades metafísicas são ontologicamente evidentes porque o “Reino de Deus está no interior”: “o Coração dos fiéis contém Deus”. O Coração, o Centro espiritual de cada um de nós, é simultaneamente o Centro que está em toda a parte. Apreender é participar metafisicamente naquilo que apreendemos. Isto implica o envolvimento do Coração naquilo que se apreende. Assim, saber é também amar. É a integração do conhecer e do amar no Coração que identifica o Coração com o Absoluto. Desta forma, existe uma qualidade eucarística na “iluminação”: a existência é metafisicamente transparente e invoca a Presença do Si Divino, o qual não é mais do que o Si Absoluto que reside no Coração puro dos fiéis.

Em termos metafísicos, a tradução pode ser então entendida como uma passagem do conhecer para o ser, através do amor, e a transmutação do ser em Presença da Verdade através do símbolo. Nas palavras de Frithjof Schuon: “amar é aquilo que permite que a compreensão chegue ao ser, ou seja, aquilo que nos liga ontologicamente à Verdade e que, dessa forma, nos abre para a magia transformativa do Símbolo”. Existem dois pontos nesta frase que gostaria de enfatizar.

Em primeiro lugar, em metafísica, o ontológico é logicamente anterior ao cognitivo. O ser precede o saber, para o qual o saber retorna. O conhecimento é um atributo (não necessariamente, mas suficientemente) do ser, e não inversamente como no caso da fórmula Cartesiana (‘cogito ergo sum’) que, compreendida neste sentido inverso, é um dos maiores erros da filosofia moderna. Por outras palavras, a implícita dicotomia Cartesiana da mente e da matéria, é desprezada no pensamento tradicional em favor de uma visão em que a matéria é uma tradução do espiritual, de uma forma em que a mente participa na matéria através do símbolo, o que resulta em que a matéria seja metafisicamente transparente ou traduzível em termos espirituais.

Em segundo lugar, a arte interpretativa do tradutor não é representativa mas simbólica: representar é apenas ilustrar, enquanto que simbolizar é transportar. O objectivo não é retratar mas transmitir. A tradução, entendida metafisicamente, acarreta uma dimensão ontológica de participação no sujeito que vai para além o mero acto de ilustrar ou imitar. Funcionando uma tradução como uma ponte entre a Origem e a nossa distância a ela, uma tradução fiel pode ser entendida como uma eliminação dessa distância ou como uma redução desse espaço até ao limite: assim, paradoxalmente, transcender o espaço é abrir uma nova dimensão de espaço, a qual é livre e sem limites. Este é um dos significados da hadith: “Na minha comunidade existem pessoas que irão entrar no Paraíso com almas semelhantes às dos pássaros.”

As trajectórias da gnose são a ascensão através do conhecimento da Verdade (o pólo objectivo da realidade, representado pelo Absoluto), e a descida do ser para a Presença (o pólo subjectivo da realidade, representado pelo Homem Universal). O Homem Universal (ou a santidade) é, assim, uma tradução do Absoluto (ou do divino), tal como a Verdade é o protótipo da Presença. A fidelidade do tradutor ao protótipo é função da receptividade do tradutor ao texto original. Na medida em que o texto fala para, ou ressoa no interior do tradutor, podemos dizer que o tradutor participa no texto através do acto da tradução. Aquilo que é envolvido por parte do tradutor é simultaneamente um exercício das suas capacidades (na busca do significado e da sua expressão) e um acto de entrega (uma abertura para com a musa da tradução). Este esforço dialéctico e graça correspondem às trajectórias de ascensão através do conhecimento (ou da ignição do Intelecto para a iluminação) e de descida através do ser (ou da vitalização do espírito em santidade), referidas anteriormente. Sem esta participação não poderá existir fidelidade na tradução. Como uma semente plantada nas areias geladas do Inverno, a Verdade reside no interior do coração gelado do homem. Por esta razão, a tradição ensina-nos que o conhecimento espiritual é o processo de intuir aquilo que foi enterrado, de descobrir o que foi velado, recolhendo o que foi disperso, ou relembrando o que foi desmembrado. Isto envolve, quer um esforço de receptividade (abrindo as pálpebras do Coração), quer a graça da luz (a luz que sustenta a Presença divina: “uma luz que brilha nela própria em silenciosa quietude” escreve Eckhart).

Existem dois erros a ser evitados na arte da tradução: um é uma abstracção do significado do texto que leve à total perca da qualidade de ressonância com o original, enquanto que o outro é o ignorar do seu significado, sacrificando-o em detrimento da novidade, em nome da expressão criativa. Metafisicamente, estes erros correspondem à redução da realidade aos pólos objectivos e subjectivos, respectivamente. Ao isolar o pólo objectivo, a realidade é abstraída ou reduzida a fantasia. A abstracção da realidade cria um monstro de falsas utopias, nas quais a ressonância da teofania sagrada é meramente “externa”, rapidamente sacrificada por ideais fantasiados e utópicos. Desta forma, na tradição, o ideal não é uma mera abstracção (ou ilusão), mas sim uma realidade ontológica do protótipo divino, o qual deve ser entendido simultaneamente como Verdade e Presença. Assim, Frithjof Schuon refere:

"Nada é mais falso do que a convencional oposição entre “idealismo” e “realismo”, a qual insinua que o “ideal” não é “real”, e o inverso; como se um ideal situado fora da realidade não tivesse o mais pequeno valor, ou como se a realidade estivesse sempre situada a um nível inferior aquilo que se designe por “ideal”. Qualquer um que defenda este ponto de vista está a pensar em termos quantitativos e não qualitativos."

O segundo erro é uma forma de hipertrofia. Ao isolar o pólo subjectivo, a realidade é desconectada do seu Princípio basilar. Assemelha-se ao idolatrar o calçado, confundindo-o com o chão que este pisa. Desligado das suas raízes espirituais, a realidade torna-se subjectiva, sacrificando o sentido moral e cognitivo pelas preferências pessoais, o que resulta, na ausência de um Centro e Origem espiritual, no materialismo. O materialista esquece que não pode existir qualquer originalidade (ou valor criativo) fora da sua ligação à Origem, nem ordem (ou significado) fora da sua ligação ao Centro.

A tradução é, em ultima análise, a arte de auto-interpretação. É identificar a fonte de toda a criatividade com a Origem e a sua localização no interior do Centro espiritual de nós próprios. Este Centro espiritual de cada um, para o qual e a partir do qual tudo o que existe está conectado, como que através de uma rede sagrada, é o Coração. Assim, pode-se afirmar que não existe fidelidade na tradução excepto quando esta brota a partir do Coração. Este é o critério para a autenticidade: evitar a falsa atribuição de originalidade a outra coisa senão a Origem, reconhecendo a sua identidade com o mais profundo do nosso ser, esse Espírito ilimitado e inextinguível que eternamente Se verte em Si mesmo numa expressão de constante e infinita misericórdia.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

M. Ali Lakhani

M. Ali Lakhani formou-se na Universidade de Cambridge antes de fixar residência em Vancouver, Canadá, onde pratica advocacia há 25 anos. Em 1998, fundou o periódico tradicionalista Sacred Web, com o objectivo de identificar os princípios primeiros da metafísica tradicional e promover a sua aplicação às circunstâncias contingentes da modernidade. Este periódico bi-anual tem vindo a publicar contribuições dos mais prestigiados tradicionalistas, sendo considerado pelo Professor Nars, como um dos mais importantes periódicos em língua inglesa, a par com o Sophia Journal, dedicado ao estudo da Tradição.

Editou e contribuiu para o livro The Sacred Foundations of Justice in Islam, tendo ainda contribuído com um trabalho seu no livro da World Wisdom The Betrayal of Tradition: Essays on the Spiritual Crisis of Modernity.


Publicações no “Sabedoria Perene”:

The Golden Chain

Este fantástico livro revela-nos o verdadeiro significado de filosofia, aqui entendida como uma prática sagrada e um método experimental para a percepção do Real. Como diz Platão, a filosofia é uma preparação para a morte (Fedro) e o seu objectivo é que nos tornemos como Deus (Teeteto).

Esta antologia de textos da Tradição Pitagórica e Platónica, editada por Algis Uždavinys para a World Wisdom, contrasta em importantes aspectos com o actual entendimento do que é a filosofia em geral. De facto, o autor considera a filosofia, neste caso a filosofia antiga, como essencialmente uma forma de vida, inseparável de uma prática espiritual e de acordo com os mitos cosmogónicos e os rituais sagrados. Para os antigos filósofos, a tarefa a cumprir consistia na contemplação da ordem cósmica e da sua beleza, vivendo em harmonia com esta ordem, procurando, no entanto, transcender as limitações impostas pela experiência sensorial e pela razão discursiva, despertando a luz divina que residia no seu interior. Para eles, a teoria nunca era considerada com um fim nela própria, sendo antes posta ao serviço da prática, entendida em termos de uma transformação “alquímica” e elevação da alma através de rituais de purificação e cultivação das virtudes.

Outro aspecto contrastante com a visão dos historiadores modernos de ciência e filosofia que sobressai desta antologia, é o facto destes filósofos se considerarem os herdeiros ou estudantes de civilizações Orientais muito mais antigas. Platão, por exemplo, estaria aparentemente muito em dívida para com a designada tradição Órfica (parcialmente baseada em influências Indianas e Egípcias) e à tradição oral Pitagórica. Na realidade, os Platónicos acreditavam numa revelação oferecida aos sábios antigos e teólogos, ou seja, a poetas e hierofantes divinamente inspirados. Esta revelação primordial era entendida como inalterável, não podendo existir nada de novo em relação à metafísica e às verdades divinas. O termo “Golden Chain”, imagem Homérica de uma corrente a ligar o Céu e a Terra, era usada na escola de Atenas de Syrianus e Proclus para descrever a ligação vertical inquebrável com os primeiros princípios, e a sucessão horizontal, ou histórica, dos mestres qualificados ou intérpretes. Esta corrente era simultaneamente uma corrente de teofania, de manifestação ou descida, e uma escada de ascensão.

A filosofia, tal como entendida por Proclus e outros Neoplatónicos era, assim, algo muito distante de um treino da razão ou de um desporto da mente emersa em dúvidas. Ela era o “nicho de profecia”, combinando a filosofia discursiva com a prática espiritual com o objectivo de atingir a iluminação, a visão directa da verdade e a união com os princípios divinos. Nas suas Gifford Lectures, S.H. Nars refere que: “a eventual redescoberta nos dias de hoje do carácter sagrado do conhecimento conduziria, antes de qualquer outra coisa, a uma redescoberta da sabedoria Grega de Platão, Plotino e outros sábios Greco-Alexandrinos, bem como dos escritos do Hermetismo, não como simplesmente filosofia humana mas como doutrinas sagradas de inspiração divina, comparáveis mais com as darsanas Hindus do que com as escolas filosóficas tal como actualmente entendidas”.

Nesta antologia, estes aspectos da filosofia irão desvendar-se por eles próprios e nas palavras dos grandes sábios da filosofia Helénica. Os textos escolhidos foram agrupados em quatro partes, começando por se apresentar vários relatos da vida de Pitágoras deixados por escritores Helénicos e Bizantinos mais recentes. Com a escolha destes relatos procura-se, mais do que com uma preocupação histórica, apresentar as bases arquétipas e mitológicas da tradição Platónica, bem como importantes conteúdos hermenêuticos. Na segunda parte são apresentados excertos de textos Pitagóricos, frequentemente desprezados pelos académicos modernos simplesmente porque os seus reais autores ou editores viveram em alturas posteriores às reclamadas, ignorando o facto de na antiguidade, um “autor” ser considerado como auctoritas, sendo usual usar-se o nome da escola, a qual estava associada a nomes arquétipos, tais como Hermes, Salomão ou Pitágoras.

A terceira e quarta parte contêm trechos seleccionados das obras de Platão e de autores devotos ao Neoplatonismo Helénico, desde Plotino e Porfírio até Damascius, focando essencialmente os vários aspectos da hermenêutica da metafísica Platónica e da mitologia sagrada, bem como da ética e teurgia filosófica.

A redescoberta desta antiga sabedoria Helénica permite-nos ver a importância crucial das doutrinas Neoplatónicas na formação do pensamento tradicional Cristão, Judaico e Islâmico, sentindo-se a tradição Pitagórica e Platónica como um dos pilares intelectuais da sophia perennis.