quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

A renovação do interesse na Tradição - parte I

Esta publicação apresenta uma tradução de um texto de Whitall Perry publicado inicialmente na obra "The Unanimous Tradition: Essays on the Essencial Unity of All Religions", editado por Ranjit Fernando para o Sri Lanka Institute of Traditional Studies em 1991. Foi recentemente republicado na obra "The Underlying Religion: An Introduction to the Perennial Philosophy", editado por Martin Lings e Clinton Minnaar para a World Wisdom Inc.

Dada a sua extensão, o texto será separado em duas partes.



PARTE I (Parte II)

Uma vez que o conceito de renovação é contingente com a noção de perda, de uma forma ou de outra, de algo antecedente – neste caso a Tradição – é necessário, ao falar de renovação, compreender em primeiro lugar em que consiste esta perda.

A Religião, tomada com o actual significado da palavra, não pode ser considerada como o equivalente de Tradição, pois a prática ritual da Religião é um acto específico produzido num local específico e num instante específico com a exclusão de outros actos, locais e instantes, enquanto que a Tradição, por extensão, abarca todos os actos, locais e instantes, não deixando nada de fora de si própria; adicionalmente, grande parte do que é considerado Religião pode ainda ser encontrada no mundo, enquanto que a Tradição no seu sentido integral e vivo dificilmente sobrevive. Assim, pode soar paradoxal afirmar, como agora o fazemos, que a Tradição tem a sua origem na Religião. Da redução a uma fórmula temos que: a Religião é a Revelação de Deus ao homem, e a Tradição as suas aplicações e extensão total a todos os domínios.

Toda a Revelação, para além do mais, proclama a sua autenticidade ou ortodoxia através da participação no ternário Unidade-Infinidade-Perfeição, atributos estes inseparáveis do Absoluto. Unidade, no facto da mensagem única que todas as grandes religiões promulgam ser a Realidade de Deus e o carácter de ilusão do mundo, com um Caminho pelo qual o homem pode trocar o irreal pelo Real. Infinidade, pela plenitude de originalidade que caracteriza cada revelação em exclusão de todas as outras: uma pessoa num mundo Budista, por exemplo, nunca o poderia confundir com um Islâmico, e vice-versa, enquanto uma religião heterodoxa trai a sua própria natureza ao caricaturar a fonte original ou as fontes a partir das quais se desviou; não tem qualquer “perfume avatárico” fresco e espontâneo por si próprio. Em relação à Perfeição, cada religião verdadeira a manifesta através da beleza sobrenatural das suas formas.

A humanidade inicial – de acordo com todas as escrituras, e contra aquilo que os evolucionistas querem que acreditemos – participou de forma unitiva numa Religião Primordial, a qual era um estado “transparente” de beatitude em que a intelecção humana duplicava espontaneamente a Revelação Divina ou, em linguagem Bíblica, em que o homem falava com Deus.

À medida que ele perdeu a sua visão unificadora e o nosso ciclo da humanidade se revelou em concordância, surgiram as divisões raciais, com as correspondentes revelações adaptadas às necessidades dos diferentes períodos e sectores da humanidade. Aquelas por nós conhecidas compreendem: o xamanismo Hiperbóreo com os seus ramos Taoistas, Bön e Shinto; o xamanismo da Sibéria e os indígenas do Hemisfério Ocidental; as fés animistas de África e do Sudeste da Ásia; as culturas Indo-Iranianas e Indo-Europeias manifestadas sobretudo no Hinduísmo, Budismo, Zoroastrismo, Orfismo, e religiões Celto-Germânicas – com elementos de outros grupos do Próximo Oriente, nomeadamente o Hermetismo Egípcio; e por fim os monoteísmos Semitas das religiões Abrâmicas: o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão.

Pode acontecer que as formas tradicionais se mantenham onde o seu contexto religioso tenha expirado, e o oposto é igualmente verdade. Assim, por exemplo, as correntes Órficas foram transmitidas, através do Pitagorismo, Platonismo e Neo-Platonismo, até às esferas Cristãs e Árabes. Da mesma forma, as formas Germânicas deixaram os seus traços na ornamentação, nas mitologias e nas superstições Europeias – de superstare, significando algo que “sobressai” quando a sua “compreensão” foi perdida – e nas histórias de encantar.

O Cristianismo Ocidental é um perfeito exemplo de uma religião que sobrevive à perda da sua estrutura tradicional, pois o que durante a designada Idade das Trevas e final da Idade Média era uma florescente, apesar de precária, civilização tradicional, o humanismo Prometeico da Renascença trouxe uma cisão mortal, separando o Interior do Exterior, o Espírito do Cosmos, as Igrejas do Estado. O Cristianismo passou, a partir daí, a ser um assunto das igrejas e dos mosteiros, com o resto da vida mais ou menos abandonada a um individualismo relativista que iria, com o seu pensamento analítico e ciências experimentais, explorar as propriedades de uma matéria agora selada das mais altas ordens da Realidade, conduzindo, assim, à busca de todos os aspectos da sociedade que eram irremediavelmente profanos, e ainda mais pelo fascínio que a novidade e o desconhecido produz nas almas.

Por Cristianismo não nos referimos aos cultos dispersos e às seitas geradas pelo Protestantismo, apesar de incluirmos as principais correntes derivadas do evangelicalismo inicial [Luterano]. E ainda menos nos referimos à Igreja Conciliar de João XXIII e dos seus sucessores, sendo esta um trabalho de falsificação realizado por homens dos quais o melhor que se pode dizer é que não estavam cientes do que se deve a um legado espiritual de dois mil anos. Finalmente, o parágrafo anterior não inclui estritamente os ramos Orientais do Cristianismo, os quais, de certa forma, retiveram a sua forma tradicional apesar dos impactos da Renascença, e que se encontram hoje mais num estado de dormência do que de dissolução.


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Definimos Religião como uma Revelação de Deus ao homem; o conteúdo revelado é uma Doutrina, um Método e um Caminho. O Um Supremo, através do Acto criativo inerente à Generosidade da sua Infinidade, tornou-se multiplicidade, e agora é esta multiplicidade que tem que ser recolhida de volta à Unidade; a palavra “religião” partilha com a palavra “yoga” a mesma raiz, “unir.” Seguindo o esquema base proposto por Frithjof Schuon, a Doutrina é um discernimento dirigido ao Intelecto, interessando a distinção entre o Absoluto e o relativo, Realidade e Ilusão, Ātmā e Māyā; o Método é uma técnica dirigida aos poderes da vontade do homem para manter a concentração no Real; e o Caminho é uma vida dirigida à alma para se conformar, através da inteligência, virtude e beleza, à natureza da Realidade.

É o Caminho que é propriamente a província da Tradição, uma vez que cobre todos os aspectos da relação do homem com o Cosmos; o Caminho é, assim, um Sacrifício – no sentido de “tornar sagrado” – de todos os actos e atitudes do homem em concordância com os Exemplos Divinos (“Faz todas as coisas de acordo com o padrão que te foi mostrado no monte” [Êxodo 25:40; Hebreus 8:5] – o “monte” simbolizando aqui os arquétipos originais que são reflectidos no nosso mundo por semelhança).

A Tradição é a continuidade da Revelação: uma ininterrupta transmissão, através de inumeráveis gerações, dos princípios espirituais e cosmológicos, ciências, e leis resultantes de uma religião revelada: nada é negligenciado, desde o estabelecimento de ordens sociais e códigos de conduta, aos cânones que regulam as artes e arquitectura, ornamentação e vestuário; inclui as ciências matemáticas, físicas, médicas e psicológicas, incluindo, ainda, as resultantes dos movimentos celestiais. O que a faz contrastar totalmente com o nosso método de aprendizagem, o qual é um sistema fechado restrito ao material, é a referência a todas as coisas até aos planos superiores do ser e, eventualmente, aos Princípios últimos; considerações totalmente estranhas ao homem moderno.


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Os danos infligidos às estruturas tradicionais pelo novo humanismo (recuperado a partir dos resíduos da decadência Greco-Romana), foram interpretados de forma inversa, pelos padrões da Renascença, como um arrojado impulso em direcção à “realidade”; o encerramento do Céu foi considerado como um desvendar de possibilidades terrenas; a matéria foi, a partir daí, considerada uma propriedade inesgotável a ser explorada e consumida, como se fosse esse o seu propósito, gerando, assim, noções espúrias como a Evolução e o Progresso, que têm actuado como uma espécie de fermento para a nossa civilização orientada de forma ateísta e tecnológica.

No entanto, graças à lei da compensação cósmica que reina através de todas as vicissitudes, não faltaram certamente homens de compreensão espiritual que representaram aqueles valores geralmente em profundo abandono – figuras da Renascença como Nicolau de Cusa, Marcilio Ficino, Paracelso, e incluindo numerosos intelectuais que garantiram a continuidade das doutrinas e práticas tradicionais nas correntes Herméticas e Cabalísticas. O século dezassete deu-nos alguns casos isolados de gnósticos como Jacob Boehme e os Platónicos de Cambridge; bem como Thomas Taylor no período seguinte – distinto apenas pelo seu racionalismo – que sobressaiu como um solitário transmissor da gnose Helénica.

O alastrar global do materialismo do século dezanove em conjunto com a sua grosseira e auto complacente obstinação, estava destinado a provocar, por reacção, vários esforços sinceros, apesar de fragmentários, para a restauração da tradição. No domínio estético existiu tipicamente o desafio de William Morris contra a “arte” produzida em fábricas, enquanto que um Viollet-le-Duc usou o seu génio para a preservação da nossa herança Gótica. Entretanto, o Ocidente estava a estabelecer um extenso contacto com as doutrinas e escrituras Orientais através do trabalho de Max Müller e outros ilustres orientalistas. E ocultistas, variando entre os mais empenhados e os francamente dúbios, contribuíam a sua cota parte no que respeita às tradições esotéricas e pseudo-esotéricas. Por outro lado, a voz de Sri Ramakrishna vinda do Oriente despertava as pessoas para as verdades universais subjacentes a todas as religiões. O Oriente tinha, por seu lado, os seus próprios porta vozes que condenavam o modernismo e que relembravam os seus conterrâneos do património negligenciado, homens como B. G. Tilak, Ku Hung-ming e Okakura Kakuzo; pois não deve ser desconsiderado o facto de que os Orientais, quando confrontados com as inovações Ocidentais, demonstram uma alarmante confusão entre o fascínio e a subserviência: o Ocidente pode dispensar o veneno, mas o Oriente, com uma excessiva ansiedade e uma deplorável carência de discernimento crítico, despeja o copo.

Aquilo que foi descrito até aqui representa, no seu todo, uma acumulação de tentativas isoladas para salvar o sagrado, a verdade e o belo, de uma civilização onde estas coisas já não apresentam qualquer relevância. Mas foi precisamente esta aparente incompatibilidade entre duas atitudes que pareciam irreconciliáveis – a síndroma da Ciência versus a Religião – que gerou, no nosso século, uma resposta devastadora e irrefutável, reclamando uma reanálise de todos os valores em termos dos Princípios Primeiros. Este testemunho recaiu nos ombros de três gigantes metafísicos, cujas mensagens – apesar de necessariamente sobrepostas – podem ser classificadas com os títulos de Doutrina, Caminho e Método.


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René Guénon (1886-1951) foi o primeiro a entrar em cena, com os seus artigos a aparecerem na La Gnose – uma publicação Hermético-ocultista – por volta de 1909. Proveniente de uma família Católica Francesa conservadora, Guénon foi desde a sua infância um frágil mas precoce aluno que, pelo seu vigésimo aniversário, já havia abandonado os seus estudos em filosofia e matemática para enveredar pelos ciclos ocultistas Parisienses, perseguindo um interesse criado por alguns dos seus anteriores instrutores.

Aquilo que nele se manifestou durante este período foi um enigmático génio para discernir o essencial por detrás dos fragmentos e resíduos dos ensinamentos tradicionais, que eram as únicas posses que as sociedades secretas que ele frequentou tinham em comum. Passados três anos, tinha perscrutado todo o meio, incluindo os seus níveis mais profundos, emergindo deste com uma refutação dos erros perniciosos, aliada a uma rectificação do restante, com base em princípios verdadeiros. O elemento catalisador foi, sem dúvida, um contacto, sobre o qual não se sabem detalhes, que Guénon teve com um Hindu ou Hindus da escola Advaita Vedānta, precisamente na época anterior aos seus primeiros textos, e cujo efeito foi o de polarizar o seu já considerável entendimento para uma real adequação em relação às verdades últimas, que são a propriedade comum a toda a Revelação. Adicionalmente, e na mesma altura, recebeu ensinamentos de alguns Ocidentais mais ou menos ligados ao Taoísmo e ao Islão.

Sabemos, pelos títulos das lições que se propôs a dar e pelas contribuições na La Gnose, até esta ter cessado a publicação no inicio de 1912, que Guénon já estava, nessa altura, na posse intelectual da totalidade de todo o trabalho que iria aparecer a partir de 1921 nos livros e nos artigos que dão lhe hoje notoriedade.

Para uma civilização pragmática, mergulhada na relatividade, Guénon trouxe uma mensagem baseada em princípios e certezas, expressas num tom tão autoritário que repelia muitos leitores antes destes examinarem a evidência objectivamente. Ele explicou e distinguiu o Absoluto do relativo, o Princípio da manifestação, os Universais dos particulares, o Intelecto da razão. E demonstrou a correlação entre a Revelação e a Ortodoxia, a única que permite uma fundação legítima para os conceitos e práticas que reclamam o direito à infalibilidade.

Para uma sociedade materialista cativada exclusivamente com o universo fenomenológico, Guénon, com o Vedānta como ponto de partida, revelou um ensinamento metafísico e cosmológico, quer macrocósmico, quer microcósmico, sobre os níveis hierárquicos do ser ou estados de existência, com início no Absoluto e descendo pelo Ser Puro, passando pelo Arquétipos supraformais, seguido do domínio subtil, terminando na nossa esfera da manifestação vulgar. Ele elucidou as muito incompreendidas exposições Orientais sobre os estados póstumos do ser, aqueles que são centrais e os periféricos, as possibilidades paradisíacas e as infernais, os níveis de realização espiritual – incluindo a distinção entre salvação e libertação – e a doutrina da Suprema Identidade ou União final com a Divindade1. Em resposta a quem afirme que muito disto se pode encontrar em Dante e em outras fontes Ocidentais, pode referir-se que, em primeiro lugar, sendo Guénon um porta-voz de ideias tradicionais, sempre rejeitou afirmar algo de novo ou “de sua autoria” e, em segundo lugar, que Dante é actualmente entendido como apenas um Poeta, enquanto que Guénon se dirige aos seus críticos contemporâneos num idioma científico próprio à sua compreensão, mesmo se o seu conteúdo – devido aos seus preconceitos materialistas – não o seja.

Avançando na nossa análise, ele expõe a doutrina dos Ciclos Cósmicos e as Quatro Eras da humanidade, seguindo os ensinamentos de todas as anteriores civilizações, mostrando claramente que estamos, presentemente, num período conhecido no Hinduísmo como o Kali yuga ou Era Negra, e inclusivamente nos seus instantes mais dolorosos, à medida que o nosso ciclo acelera em direcção à dissolução material e ruptura temporal que marca a transição entre dois mundos. O trabalho de Guénon, visto desta perspectiva, pode ser considerado como preparatório, como que surgindo de uma forma providencial num momento cósmico em que é imperativo que qualquer forma de restauração tradicional ocorra, e que o núcleo de uma elite seja formada, com o duplo papel de reclamar os valores perenialistas e de actuar como uma força de reacção às aberrações do mundo moderno. A sua rejeição do modernismo é categórica:

Nada e ninguém está mais no lugar correcto; os homens não mais reconhecem qualquer autoridade efectiva na ordem espiritual ou qualquer poder legítimo na ordem temporal; o “profano” toma a presunção de discutir o que é sagrado, de contestar o seu carácter e mesmo a sua existência; o inferior julga o superior, a ignorância estabelece os limites da sabedoria, o erro prevalece sobre a verdade, o humano sobrepõe-se ao divino, a terra cobre o céu, o individual estabelece a medida de todas as coisas e reclama ditar para o universo leis estabelecidas totalmente a partir da sua relativa e falível razão. “Tristeza para vós, guias cegos,” diz o Evangelho; e, de facto, em toda a parte se vê hoje nada mais do que cegos a guiar cegos, os quais, a não ser que sejam restritos por um qualquer limite temporal, irão inevitavelmente guiá-los até ao abismo, onde todos perecerão.

Como parte do seu testemunho, Guénon expõe sem misericórdia as falsas seitas e doutrinas subversivas, incluindo os rompantes ensinamentos perniciosos na filosofia e psicologia moderna. Mas esta tarefa é feita com o afastamento de quem vê as causas cósmicas por detrás dos fenómenos, por alguém que sabe que “é necessário que surjam ofensas.”

Em vários dos seus livros ele pesa as diferentes formas a partir das quais uma regeneração tradicional pode surgir. A solução mais favorável no Ocidente, diz Guénon, seria o retorno às suas próprias fontes intelectuais, mas a única organização constituída para tal tarefa é a Igreja Católica, e as dúvidas que expressa em relação à sua competência para tal, dado o estado de cegueira da mesma, à data em que escreveu, para os perigos que surgiam, quer do interior, quer do exterior, têm-se, em larga medida, confirmado. Na sua perspectiva, o mais provável, apesar de menos expediente, resultado seria o Ocidente se sentir forçado a voltar-se para o Oriente em busca de algum repositório tradicional ainda existente. Isto implicaria, da parte dos Ocidentais qualificados para a tarefa, uma readaptação, no seu mundo, de uma tradição Oriental ainda em posse de uma aristocracia espiritual, totalmente consciente da necessidade de tal empreendimento e disponível para dispensar o necessário apoio. Pela sua natureza, uma resposta deste tipo poderia envolver apenas uma reduzida minoria, mas a simples presença dessas pessoas, apesar de desconhecidas pela maioria, teria imediatamente uma influência espiritual e serviria de veículo para a transmissão de verdades, acarretando repercussões indefinidas.

Apesar da sua afiliação ser Islâmica tendo, a partir de 1930, vivido no Egipto, a modalidade da sua visão manteve-se essencialmente Vedântica e Hermética. Vamos apenas adicionar que o Oriente, após a sua morte, tem mostrado um crescendo de necessidade de certas qualidades positivas que alguns Ocidentais iluminados podem oferecer, pois apesar dos mundos Hindu, Budista e Islâmico reterem a fidelidade de inumeráveis milhões, estas religiões sobrevivem mais num passado momentum “horizontal”, do que numa presente consciência “vertical” de tudo o que representa a Tradição em termos de Princípios Primeiros; e, não tendo efectivamente uma aristocracia intelectual, encontram-se quase cegos para as devastadoras forças do modernismo que ganham o ascendente neste perigoso momento cósmico. É aqui que os intelectuais Ocidentais despertos podem oferecer as apuradas faculdades críticas necessárias, nas palavras de Guénon, “para proteger a “arca” da tradição, que não pode desaparecer, e assegurar a transmissão de tudo aquilo que deve ser preservado.”

Regressando aos ensinamentos doutrinais de Guénon, ele deu grande ênfase, ao longo dos seus textos, à ciência dos ritos e dos símbolos: as ordens mais elevadas do ser têm as suas reverberações nas mais baixas, e é através da linguagem, rito, símbolo e imagem, que uma comunicação espiritual é mantida entre o nosso universo fenomenológico e o seu Protótipo celestial. As fórmulas reveladas nas línguas sagradas – orações, litanias, encantamentos, invocações, mantras – são as vibrações da palavra Primordial e, assim, participam misteriosamente na natureza da própria substância de Deus, falando em linguagem eucarística. Isto significa que qualquer tradução destas fórmulas para as línguas vernaculares, quebra imediatamente a comunicação e anula o seu poder salvífico. Guénon mostra-nos como as formas simbólicas que permeavam as construções e o pensamento das sociedades tradicionais são representações de verdades universais, passíveis de ser interpretadas a múltiplos níveis da realidade, e mostra-nos como as imagens sagradas e ícones têm o papel indispensável de transportar presenças divinas.

Na passagem contra o modernismo anteriormente citada da Crise do Mundo Moderno, Guénon alude a uma autoridade espiritual e a um poder temporal – conceitos fundados na natureza da realidade. Ele relembra que a repartição da ordem social, com as suas diversificadas vocações baseadas nas distinções de casta, seja tomando em consideração o sistema formal observado na Índia, seja adoptando as divisões menos rígidas predominantes na Europa medieval, longe de ser arbitrárias, correspondem a diferenças íntimas nas naturezas humanas e, de facto, a diferenças obtidas ao longo da criação. E a explicação cosmológica para este facto é dada explicitamente na doutrina Hindu das gunas: Prakriti, a Substância primordial não manifestada do Universo, contém em si três tendências ou pólos de atracção, sem os quais não existiria manifestação; a primeira é sattva, por natureza ascensional e luminosa, a segunda é rajas, expansiva e impetuosa, e a terceira é tamas, o princípio descendente e obscuro. São estas três gunas que, em última análise, regulam a ordem social, e não podemos simplesmente desejar que desapareçam; podemos, no máximo, ignorar estes princípios, sendo o preço a pagar a criação de desordens sociais intermináveis.

E qual é que foi o impacto da mensagem de Guénon nos leitores a ele receptivos? A incontestabilidade das doutrinas expostas deveriam, em princípio, estabelecer a base para respostas espirituais infalíveis, mas na prática isto não é de forma alguma simples. O próprio facto de Guénon ser forçado a se dirigir aos seus contemporâneos de uma forma científica, acarreta em si dificuldades. De facto, uma sua leitura desprotegida resulta na tendência de tornar as pessoas em “cientistas espirituais,” o que pode provocar a morte da espiritualidade. As sedutoras dimensões da iniciação e do esoterismo têm, para além do mais, um propensão para apelar à cabeça mais do que ao coração, de fazer esquecer que “o medo do Senhor é o princípio da Sabedoria” e que a Tradição não tem qualquer significado se afastada do caminho de regresso a Deus – um caminho que tem as suas fundações na submissão, devoção e rectitude.

Aqueles que deificam Guénon, ao ler no seu trabalho mais do que ele pretendia oferecer, acabam por lhe prestar uma tão má homenagem como aqueles que rejeitam globalmente a sua mensagem devido a alguns erros factuais compostos com certas hipóteses indefensáveis, embora contingentes. É necessário distinguir as principais ideias, as que devido à sua intemporalidade e origem não humana são infalíveis, e as que correspondem ao elemento especulativo, inerente ao que Schuon designa de “margem humana”. Curiosamente, na procura de, nos seus textos, se manter livre de todo o tipo de individualismo, Guénon empregou um modo de pensar que foi “impessoal” a um ponto quase inumano, na sua unilateralmente matemática embora cristalina abstracção, e que, de alguma forma, derrota o seu propósito, dado que a individualidade humana é, intrinsecamente, um factor legítimo na imagem cósmica total e deve, dessa forma, ser incluído com o resto. Mas aqui trata-se também de uma questão relacionada com o seu carácter absolutamente excepcional, e de forma alguma altera o essencial da sua mensagem.

Os referidos erros factuais podem ser uma consequência indirecta da sua inata sabedoria metafísica: a sua certeza sobre os princípios tornou-se algo insensível aos pedestres, mas inescapáveis, requisitos do estudo académico; e, em paralelo com este aspecto, existia igualmente uma certa impaciência com as convenções da erudição moderna, que confunde a informação quantitativa com o conhecimento.

Guénon tinha plena consciência da natureza preparatória e teórica do seu trabalho. “Tudo o que fizermos ou dissermos,” escreveu, “servirá para dar àqueles que vierem de seguida, as facilidades que a nós próprios não foram dadas; aqui, como em toda a parte, é o início do trabalho que é o mais penoso.” E pede aos seus leitores que, “acima de tudo evitem atribuir responsabilidades a qualquer doutrina pelas imperfeições e lacunas que existam no nosso tratado.”

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