domingo, 13 de junho de 2010

Dos picos do mundo

Trecho extraído de "Peaks and Lamas", de Marco Pallis, obra fundamental publicada pela primeira vez em 1939 e revista em 1949.

 
Em tempos antigos, Nako, tal como todo o Vale Spiti, pertencia ao reino de Gugge, o qual atingiu um extraordinário nível civilizacional. Desde a extinção desse reino tem ocorrido um contínuo declínio. As áreas cultivadas foram diminuindo, as populações minguaram e as areias do deserto vêm invadindo os povoados sobreviventes. Gugge foi a primeira província do Tibete a ser visitada por missionários europeus, em 1624. Um grupo de franciscanos portugueses estabeleceu uma missão na capital Tsaparang, a moderna Chabrang Dzong. Foram recebidos pelo rei com todas as honras que os Tibetanos naturalmente oferecem a todos os portadores de doutrinas desconhecidas. Os frades, por um momento, tiveram algumas razões para pensar que estariam prestes a produzir uma magnífica conversão; mas é também possível que o seu optimismo possa ter sido algo exagerado. Os Tibetanos estão sempre preparados para oferecer veneração a qualquer objecto sagrado e não confinam necessariamente a sua reverência a formas mais familiares. Eles não sentem que ao fazê-lo estão tacitamente a admitir a superioridade da tradição estrangeira ou a mostrar infidelidade para com a sua própria tradição. Eles tão naturalmente se curvariam perante o Crucifixo como o fariam aos pés de um Buda, enquanto os nossos conterrâneos, acostumados ao exclusivismo sectário da Europa, sentem que ao oferecer reverência numa igreja com princípios com os quais estão em desacordo estão a perdoar os seus erros.
 
Os Hindus têm um nome para essa secção da humanidade, a qual consideram espiritualmente imatura e onde não se prestam honras a nenhuma divindade excepto a sua. Os homens desse sector da humanidade são chamados Pashu (da raiz pash = limite) e supõe-se que estão cegos para a profunda Unidade da Divindade, apesar de dentro dos limites paroquiais que estabelecem para si próprios poderem ser merecedores de todo o respeito e louvor. Eles são descritos como homens de tendência muito forte para o obscurantismo, que exageram nas distinções de mera forma ou nome; isto torna-os muito propícios a falar com desrespeito das crenças e das práticas de outros. Bastante superiores aos Pashus são os homens da classe conhecida como Viras, ou os heróis. Eles são aqueles que reconhecem que, apesar de existirem muitos modos de pensamento, a realização metafísica, sempre que obtida através de uma identificação intuitiva e directa entre o conhecedor e o conhecido, é apenas uma. É isso que importa; é essa verdade que está na base de todo o simbolismo e que é o objecto de todo o ritual tradicional. O Próprio Buda aconselhou os Seus seguidores contra o corte abrupto das ofertas que estavam habituados a oferecer aos Brahmans; esse espírito prevalece até aos dias de hoje. Um jovem lama disse-me que eles são ensinados desde crianças a não falar desrespeitosamente de outras religiões e sim, pelo contrário, a tratá-las com o máximo de respeito. Com efeito, ao longo da fronteira entre a China e o Tibete, é dito ser convencional que em qualquer encontro com estranhos se pergunte ao outro, depois das primeiras saudações: “Senhor, e a que sublime tradição pertence?”

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