Esta publicação é uma tradução de um curto texto de Frithjof Schuon, intitulado "Christian Gnosis", publicado no Sophia - The Journal of Traditional Studies, Vol. 8, Nº. 1 em 2002 e reeditado no livro “The Essencial Sophia”.
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O Cristianismo é “Deus fez-Se o que somos, por forma a nos fazer o que Ele é” (St. Ireneu); é o Céu tornado terra para que a terra se possa tornar Céu.
Cristo recorda no mundo exterior e histórico o que se passou, desde o início dos tempos, no mundo interior da alma. No homem, o Espírito Puro torna-se ego, por forma a que o ego se possa tornar Espírito Puro; o Espírito ou Intelecto (Intellectus, não mens ou ratio) torna-se ego, incarnando-Se na mente na forma de intelecção, ou verdade, e o ego torna-se Espírito ou Intelecto, unindo-se a ele.
O Cristianismo é, assim, uma doutrina de união ou a doutrina da união: o Princípio une-se com a manifestação, por forma a que a manifestação se possa unir com o Princípio; resultando daqui o simbolismo do amor e a predominância do caminho “bhaktic”. Deus tornou-se homem “devido ao seu grande amor” (St. Ireneu), e o homem deve unir-se a Deus igualmente através do “amor”, seja qual for o significado – volitivo, emotivo ou intelectual – que se lhe atribua. “Deus é Amor”: Deus – como Trindade – é União e deseja União.
E qual é o conteúdo do Espírito ou, dito noutras palavras, qual é a mensagem de Cristo? Pois a mensagem de Cristo é, no nosso microcosmos, o eterno conteúdo do Intelecto. Esta mensagem ou o seu conteúdo é: ama Deus com todas as tuas faculdades e, em função deste amor, ama o teu vizinho como te amas a ti; isto é: une-te – porque “amar” significa essencialmente “união” – com o Intelecto e, em resultado (ou como condição) dessa união, abandona todo o egocentrismo e discerne o Intelecto, O Espírito, o Ser Divino, em todas as coisas. “Saibam que todas as vezes que fizeram isso a um destes meus irmãos, foi a Mim que o fizeram.”
Esta mensagem – ou esta verdade inata – do Espírito prefigura a cruz, porque também aí existem duas dimensões, uma “vertical” e outra “horizontal”, nomeadamente o amor a Deus e o amor ao outro, ou União com o Espírito e união com o ambiente que nos rodeia, entendido como a manifestação do Espírito. De um ponto de vista algo diferente, estas duas dimensões são representadas respectivamente por Conhecimento e Amor: “conhece-se” Deus e “ama-se” o outro, ou ainda: amamos Deus conhecendo-O e amamos o outro amando-o.
Mas a mensagem mais profunda de Cristo, ou a verdade conatural com o Intelecto, é a de que a manifestação não é mais do que o Princípio; esta é a mensagem do Princípio para a manifestação.
Na prática, a grande questão é saber como é que nos podemos unir com o Logos ou o Intelecto. O principal meio é a “oração” [ver post Sobre a Oração (...)], cuja quinta-essência é objectivamente o Nome de Deus e subjectivamente a concentração, logo a obrigação de invocar Deus com fervor. Mas esta “oração”, esta união de todo o ser com o seu princípio ou origem divina, continuará ilusória sem a união com a totalidade, o “outro” universal, ao qual pertencemos como um fragmento; a cisão entre o homem e Deus não pode ser abolida sem a cisão entre o “eu” e o “outro” ser também abolida; não podemos reconhecer que Deus está em nós sem ver que Ele está também nos outros e de que forma Ele está neles. A Manifestação deverá unir-se com o Princípio e – no plano da manifestação e em função desta união “vertical” – a parte deverá unir-se com o todo.
Interiormente, se desejarmos compreender que a alma inteligente é “essencialmente” – não na sua acidentalidade – Intelecto ou Espírito, devemos igualmente compreender que o ego, incluindo o corpo, é “essencialmente” a manifestação do Intelecto ou o Ser [sobre o "Ser" ver nota de rodapé no post Tradição e Modernidade]. Se desejarmos compreender que “o mundo é falso, Brahma é verdade”, devemos igualmente compreender que “todas as coisas são Ātmā.” Este é o significado mais profundo de amor ao próximo.
O sofrimento de Cristo é o sofrimento do Intelecto no seio das paixões. A coroa de espinhos é o individualismo, ou “orgulho”; a cruz é o esquecimento ou a rejeição do Espírito e, com ele, da Verdade. A Virgem é a alma em submissão ao Espírito e unida a ele.
A própria forma dos ensinamentos de Cristo é explicada pelo facto de Cristo dirigir a sua mensagem a todos os homens, do primeiro ao último; Ele não poderia dar à sua mensagem um modo de expressão que fosse ininteligível para algumas inteligências, e ineficiente ou mesmo prejudicial para alguns. Shankara pôde ensinar gnose pura porque não se dirigia a todos, podendo-o fazer porque na tradição Hindu já existia e incluía a priori vias espirituais adaptadas a inteligências modestas e temperamentos passionais. Mas Cristo, como fundador de um universo espiritual e social, tinha a necessidade de se dirigir a todos.
Se é errado censurar Cristo por não ter ensinado explicitamente gnose pura – o que na realidade ensinou pela sua própria vinda e pela sua pessoa, gestos e milagres – é igualmente errado negar o significado gnóstico da sua mensagem e, assim, negar a contemplativos intelectivos – os quais se centram na verdade metafísica e pura contemplação, ou na pura e directa Inteligência – todo o direito a existirem e a lhes oferecer uma via espiritual em conformidade com a sua natureza e vocação. Isto é contrário à parábola dos talentos e ao ditado “em casa de meu Pai existem muitas moradas”.
A totalidade do Cristianismo é expressa na doutrina da Trindade, e esta representa essencialmente uma perspectiva de união; ela revela uma união in divinis: Deus prefigura na Sua própria natureza as relações entre Ele e o mundo, relações que apenas são “externas” de uma forma ilusória.
“A Luz brilha na escuridão e a escuridão não o compreende”: a verdade destas palavras foi manifestada – e ainda é manifestada – no Cristianismo, pela incompreensão e rejeição da gnose. E isto explica, em parte, o destino do mundo Ocidental.